«Que teologia para o nosso tempo?» A pergunta arrisca a converter-se numa questão ainda mais radical: «Ainda precisamos da teologia?». O facto é que hoje a necessidade da teologia é colocada em discussão “ad extra” e “ad intra”: a sociedade secular não tem confiança numa indagação da verdade que pressupõe a sua verdade, isto é, em que a verdade é pensada como ponto de partida mais do que de chegada. Quanto à comunidade eclesial, por um lado há quem pense que ter acolhido a verdade significa possuí-la, ser dela titular, e por outro há quem considere que a verdade cristã pode ser testemunhada somente como intervenção prática no mundo, como “diakonia” ao ser humano, sem necessidade da mediação sacerdotal da sua transcendência, da salvaguarda real da sua sacralidade e da crítica profética àquilo que lhe é adverso. Para uns, a verdade só é ensinada, como um pacote de saber indiscutível e imutável; para outros, só se acede à verdade na ação e no serviço, e não, complementarmente, no percurso lento e paciente do exercício reflexivo e contemplativo da racionalidade humana.
Acossada por esta tripla fonte de ceticismo, externo e interno, secular e eclesial, a teologia enfraquece, e com ela perdem o vigor a Igreja e a sociedade. Estou, com efeito, profundamente convicto de que não há evangelização sem teologia. A sociedade não escutará o anúncio da Palavra, a Igreja não poderá levar a Palavra a todos os seres humanos se a missão de evangelização não se realizar na dinâmica daquele peculiar duplo exercício teológico que é pensar a Palavra de Deus à luz da História humana e pensar a História humana à luz da Palavra de Deus.
Se ensinar o Evangelho é a missão confiada por Jesus aos discípulos, se sem anúncio não há Igreja, não há possibilidade de conversão (“metanoia”) da humanidade e da História, então não há Igreja sem teologia. Considerar que o ensinamento é algo que prescinde do pensamento, da interrogação, da novidade, pensar que ensinar seja simplesmente transmitir aquilo que já é conhecido, é (como nos ensinam todos os verdadeiros mestres) a morte do ensino. A Igreja é “magistra” não porque sabe tudo, e não precisa mais de pensar (tendo eventualmente necessidade somente de agir), mas porque se confia a uma verdade que é ao mesmo tempo caminho, direção, ponto de partida e meta, uma verdade que faz caminho e é comunhão, que se doa unicamente como Pão e Vinho partilhados pelos seres humanos à mesa da História. Como ensinar uma verdade que não seja um simples conteúdo conhecido, mas uma experiência de comunhão que se faz carne, sacramento de vida?
A crise da teologia tem a ver com a crise da palavra “ensinar” e com a dificuldade da transmissão. Não tenho, como é evidente, soluções para um problema de proporções epocais: nenhum de nós individualmente, somente a comunidade eclesial no seu conjunto, sob a orientação de Cristo, seu Bom Pastor, poderá encontrar uma resposta, uma via de saída desta crise. Estou, porém, convicto de que o caminho acertado será percorrido, mais uma vez, à luz do Evangelho, e que a ele devemos sempre voltar para compreender quem somos e o que nos é pedido. Não recuperaremos uma compreensão adequada do que significa ser evangelizadores, testemunhas e teólogos – intérpretes da Palavra na experiência dos seres humanos – sem entender até ao fundo o que é o magistério segundo o Evangelho. Toda a vida de Jesus, o “Rabbuni”, é neste sentido uma catequese a meditar e interiorizar, mas há algumas páginas do Novo Testamento que nos oferecem um bom ponto de partida, porque nelas encontramos indicações muitos claras e concretas sobre este tema. É o caso das indicações dadas aos doze por ocasião da sua primeira missão de apóstolos, “enviados”, representantes, pregadores do Evangelho (Marcos 6, 6-12; Mateus 10, 5-15; Lucas 9, 1-6; 10, 1-11). As instruções de Jesus definem a missão de ensinar a Boa Nova como uma obra teológica de inculturação e de exploração, bem diferente da imagem estática e vertical que habitualmente associamos ao papel do magistério da Igreja.
«Jesus percorria as aldeias vizinhas a ensinar» (Marcos 6, 6). O original grego e a tradução latina (“et circuibat castella in circuitu docens”) comunicam-nos de maneira icónica o facto de que, para Jesus, ensinar não é acomodar-se numa cadeira a falar, à espera que as pessoas vão escutar, mas é caminhar, andar no meio das pessoas, na variedade dos lugares por elas habitadas. Ensinar é deslocar-se para onde encontra a pessoa, onde vive, chegar a ela no seu concreto contexto ambiental, social, mental, na pluralidade das suas expressões históricas e geográficas, é passar de um âmbito ao outro, percorrer. Ensinar é uma prática “peripatética” (como já sabia Aristóteles), que constrói uma topografia. Infelizmente, na Igreja e não só, perdeu-se o sentido desta dinâmica própria do ensinar, o seu ser movimento, exploração, viagem. É por isso que quando o papa Francisco fala de uma Igreja em saída, ficamos surpreendidos: estávamos habituados a considerar os pastores como protagonistas de um discurso “ex cathedra”, enquanto agora há quem nos diga que ensinar é andar pelo mundo, descobri-lo, atravessá-lo, criar conexões e ligações (“in circuitu docens”). Ensinar não é simplesmente transmitir uma lição, mas pensar o mundo, visitá-lo, conhecê-lo, desenhar e realçar circuitos, continuidades, interdependências, pontes na diversidade. Não há evangelização sem teologia, sem este sair da palavra humana da Palavra, para dar a volta à Terra, decifrá-la e redesenhá-la.
Ensinar é explorar, descobrir, aprender, e também tornar-se “parte de”, receber hospitalidade da Terra, da sua cultura, das suas tradições. A inculturação da Palavra é tradução em dois sentidos: é dar e receber hospitalidade nas línguas, nas cidades, nos povos, nos indivíduos, e é esta obra cultural de tradução que chamamos teologia, como ilustra em particular uma das instruções dadas por Jesus aos seus enviados: «Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes dali. E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles» (Marcos 6, 10-11). Ensinar é partir, chegar ao ser humano onde se encontra, mas é também ficar em casa com ele, ser por ele hospedado.
As línguas, as tradições culturais, as civilizações são as casas em que a Igreja se estabelece entre a humanidade, em que a Palavra entra e, uma vez acolhida, inaugura permanência que é partilha existencial, um pedaço de História, um pedaço de vida. Certamente que nem todas as tradições e expressões de civilização, as manifestações da inteligência e da vontade humanas, são hospitaleiras em relação à Palavra: pode acontecer, adverte Jesus, que «em alguns lugares não vos acolham e não vos escutem». Onde reina uma cultura da violência, da irresponsabilidade não solidária, da radical negação materialista do bem e da verdade, não há maneira para o cristão, para o teólogo, de instaurar uma relação hospitaleira de partilha da Palavra de Deus. Há contextos históricos e constelações culturais em que o cristão não tem casa. Guerra, malfeitorias, prevaricações, exploração, opressão, materialismo e individualismo radicais são tetos históricos e ideológicos debaixo dos quais o cristão não encontra abrigo, perante os quais testemunha racionalmente e existencialmente a incompatibilidade da verdade que lhe é confiada, na esperança de as erradicar, de lhes promover a conversão. Pensar o ser humano não é assentimento incondicional, mas também profética denúncia do mal e resistência a ele. A verdadeira teologia, como nos ensinam tantos mártires do pensamento, como testemunharam, no século XX, intelectuais da fé como Dietrich Bonhoeffer, Simone Weil e Etty Hillesum, é uma inteligência da História que em nome do amor incondicional pelo ser humano pode dizer “não” ao ser humano, até à morte.
Se ensinar, como trabalho teológico de inculturação da Palavra, é portanto sair, pôr os pés a caminho pela Terra e nela pedir hospitalidade; se ensinar é partir e confiar-se ao acolhimento da parte da História, das linguagens dos seres humanos, das suas experiências, dos seus códices e tradições, ensinar é então também despojar-se, ficar mais pobre, “esvaziar-se”, “kenoticamente”, de recursos materiais e simbólicos, de um património que dá segurança, de garantias preventivas: «Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto; que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas» (Marcos 6, 8-9). A teologia em saída é pobre e humilde: não pode contar com nenhum capital, simbólico ou material. Tendo «os mesmos sentimentos de Cristo Jesus» (Filipenses 2, 5), o Verbo divino que se fez carne e veio habitar no meio de nós (João 1, 14), a teologia renuncia a estatutos privilegiados, à reivindicação da glória divina da verdade transcendente de que é depositária (Filipenses 2, 5-8). Não recorre ao passado como a um dispositivo de controlo do presente e do futuro.
Ao sair para a História, para o mundo, quem evangeliza pode levar consigo apenas três riquezas: a Palavra que anuncia; a comunhão com a comunidade de pertença, a Igreja («e enviou-os dois a dois», Marcos 6, 7); e o cajado que suporta o seu caminho: um laço com a Tradição, com o caminho precedente do povo de Deus, que não constitui uma posse ou um ponto de chegada em que se fica parado, mas um companheiro de viagem, em direção a novas cidades e novas moradas. Neste sair que é evangelizar, neste percorrer a Terra, a História, que é ensinar a Palavra (visitar e conhecer as pessoas, o que pensam, o que querem, o que são, o que podem; partilhar o seu teto e a sua mesa), a teologia perde-se a si mesma se lança fora o cajado da Tradição e se opta por uma solidão individualista. Por outro lado, trai a sua missão (a vocação do envio) se faz das suas riquezas (a Palavra, a Tradição e a pertença eclesial) uma posse, um seguro de viagem, um mapa pré-estabelecido, um poder, uma pré-compreensão que bloqueia, tornando os evangelizadores cegos e surdos à vida das pessoas.
Quem leva consigo a Palavra para a ensinar aos seres humanos deve viajar ligeiro (“traveling light”, como dizem os anglo-saxónicos), porque tudo o resto é estorvo que sobrecarga, retarda, prende. A teologia em saída na sua missão de evangelização é leve, tem boas pernas, é hospitaleira e gosta de ser hospedada. Estabelece circuitos de ligação entre culturas, épocas, geografias, contextos sociais e formas de racionalidade. Faz do passado um cajado para caminhar, faz da pertença à comunidade eclesial uma companheira de viagem, e não uma fortaleza na qual se entrincheira, faz da Palavra um pão de vida partilhado na mesa da ação e da evangelização, do pensamento e do serviço, da ação de graças e da oração.