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Meritocracia: Ilusão que justifica as desigualdades

A meritocracia goza hoje de uma estranha fama. Muitos políticos, empreendedores, expoentes da sociedade civil promovem a sociedade meritocrática como uma sociedade à medida do ser humano, a única à altura das suas exigências de justiça social; muitos filósofos, economistas, politólogos, sociólogos veem na meritocracia uma ideologia que legitima as desigualdades, uma falsa promessa de mobilidade social e igualdade de oportunidades. Ela é o doutor Jekyll no debate público e o senhor Hyde na academia – com as devidas exceções em ambas as partes. A interrogação não se coloca nas razões e nos erros de uma parte em relação à outra, mas sobre a natureza da ambivalência ínsita na meritocracia.

A meritocracia agrada a muitos por causa das promessas inseridas no seu ideal: valorização do empenho e do trabalho individual, combate aos privilégios, mobilidade social que, para usar as palavras de Adam Smith, corresponde ao desejo de melhorar as nossas condições. Seria um erro, na crítica à meritocracia, não reconhecer a importância e a legitimidade destas promessas. Fora dos facciosismos, perguntemo-nos antes o que comportam e quais são mantidas nas sociedades meritocráticas. Em primeiro lugar, procuremos compreender se o sucesso é sempre equivalente ao mérito. Se assim fosse, a pretensão da meritocracia de separar os poucos “merecedores” dos muitos “desmerecedores” seria plenamente fundada. Na história, as oligarquias, os governos dos poucos, tentaram sempre apresentar-se como aristocracias, os governos dos melhores (poucos). A meritocracia parece precisamente adaptada a esta função. No entanto, quando vemos mais em profundidade os sucessos individuais na escola, no desporto, na política, na economia, vemos que há muito mais que o simples mérito.

Há a ajuda de outras pessoas, uma boa dose de talento natural, a possibilidade de uma educação gratuita, mas também o que Rober H. Frank denomina “luck”, a sorte ou o puro acaso. Tudo fatores não meritocráticos que, somados aos nossos méritos, contribuem para o nosso sucesso. No seu texto “Success and luck”, Frank narra como, embebidos pela ideologia meritocrática e pela ideia de que a medida do próprio sucesso é a soma dos seus méritos, alguns políticos dos EUA se opuseram a políticas redistributivas e de estado-providência. Porquê ajudar os outros se eu, só com as minhas forças, cheguei ao topo?



Se o talento é mérito, e portanto abençoado, o não-talento torna-se demérito e maldito. A pobreza como maldição cresce a par da meritocracia



É curioso que um raciocínio deste género está muito espalhado também no mundo dos negócios, como se houvesse uma ligação secreta entre meritocracia e economia de mercado. Na realidade, a tradição liberal, e vários dos seus animadores, como Knight, Hqyek e até Rawls, souberam sempre que o mercado não é um espaço meritocrático. Sugden, herdeiro desta tradição, explicou-nos que o mercado é antes uma escola de humildade para o ideal meritocrático, porque a recompensa das ações individuais não depende do seu valor intrínseco, mas sobretudo do valor que os outros atribuem aos nossos esforços. Se eu me empenho em produzir coisas que ninguém quer comprar, não poderei invocar os meus “méritos” para ter uma recompensa. Diferentemente, poderei produzir coisas muito apreciadas e receber uma alta compensação, mas depois, ao mudarem-se os gostos e as preferências, ou outras circunstâncias socioeconómicas, as pessoas poderão estar menos dispostas a pagar o fruto do meu trabalho: a quem, então, apelarei?

Quem procura meritocracia no mercado está destinado a permanecer (parcialmente) desiludido. Certo é que, como dizia Friedrich Hayek no seu livro “Direito, legislação e liberdade”, uma sociedade de mercado dificilmente sem «a ilusão do mérito» - quem se levantaria da cama para trabalhar sem o pensamento de que os esforços de hoje serão adequadamente recompensados amanhã? Talvez seja por isto que está muito espalhado entre os “desmerecedores”, isto é, os perdedores da competição meritocrática, aquilo que Jo Littler definiu como o défice meritocrático, ou seja, a aceitação da equidade e legitimidade das lógicas da meritocracia, até diante das provas irrefutáveis de que sucesso e mérito não são a mesma coisa. Como se tivéssemos uma necessidade inata de meritocracia, para além da esfera do bom senso.

Este mecanismo de autoengano está tão espalhado, que por vezes as pessoas criam “méritos imaginários” para quem tem sucesso e, talvez mais preocupante, “deméritos imaginários” para quem está no fundo da escala social, os últimos, os descartados, os pobres. Regressa, prepotente, a ideologia dos amigos de Job: aquele que não tem mérito é culpável. Ninguém nunca o diz explicitamente, mas por trás de muitos discursos, hoje como ontem, há a ideia de que a pobreza é uma culpa. No fundo, o verdadeiro e grande problema da meritocracia é que justifica e legitima as desigualdades. Como se as desigualdades, que existem desde sempre, e talvez sempre existam, tivessem necessidade de advogados de defesa. É evidente que se colocarmos em confronto meritocracia e clientelismo o discurso já está falseado. O verdadeiro ponto é que a meritocracia se tornou a legitimação ética da desigualdade, em nome de um grande equívoco: que o talento seja mérito (e não dom). O outro efeito colateral diz respeito à pobreza: se o talento é mérito, e portanto abençoado, o não-talento torna-se demérito e maldito. A pobreza como maldição cresce a par da meritocracia, basta ver o que acontece nos países mais meritocráticos do mundo.


 

Luigino Bruni, Paolo Santori
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: olly2/Bigstock.com
Publicado em 19.05.2021

 

 
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