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Manuel Braga da Cruz: um magistério de cultura, cidadania, humanismo e fé

1.
Entendeu o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura conceder, em 2022, o seu Prémio «Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes» ao Professor Doutor Manuel Braga da Cruz. Em boa hora o fez, na 18.ª edição deste galardão, pelo qual a Igreja singulariza figuras cuja vida e obra refletem o humanismo e a experiência da fé no mundo contemporâneo. Gostava, pois, de começar por cumprimentar a Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, na pessoa de Sua Excelência Reverendíssima, o Senhor Bispo de Viana do Castelo, D. João Evangelista Lavrador, e de agradecer ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, na pessoa do Professor Doutor José Carlos Seabra Pereira, o muito amável convite para aqui hoje fazer a laudatio do nosso galardoado, a quem dou, desde já, os meus mais sinceros parabéns.

É uma enorme honra, que não podia recusar, pela muita consideração intelectual e estima pessoal que tenho pelo Professor Manuel Braga da Cruz. Recordo bem a ocasião em que nos conhecemos, em abril de 1992, era eu finalista da licenciatura em História, quando o ouvi, num seminário no ISCTE sobre o Estado Novo e o salazarismo. Dois anos depois, em fevereiro de 1994, chamou-me para ingressar na Universidade Católica Portuguesa, onde até hoje desenvolvo a minha carreira académica, tendo sempre usufruído, ao longo dos anos, do seu muito saber, judicioso incentivo e generosa disponibilidade. Mas o convite para aqui falar hoje coloca-me, também, numa posição difícil. Tendo muito a agradecer ao Professor Manuel Braga da Cruz, não é fácil abarcar todos os frutos que a frondosa árvore da sua vida e da sua obra disponibilizou a tantos, na academia ou fora dela. Peço, pois, benevolência para o retrato que se segue, no qual vai uma assumida componente congratulatória, porque recensear um magistério académico e pessoal de elevados méritos é sempre uma forma de homenagear o seu autor, sublinhando, deste modo, a justeza da escolha do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

 

2.
Manuel António Garcia Braga da Cruz nasceu em setembro de 1946, na freguesia de Tadim, nos arredores de Braga, 6.º filho dos nove (cinco raparigas e quatro rapazes) de Ofélia da Fonseca Azevedo Garcia Alvarenga e Guilherme Braga da Cruz. Frequentou o Jardim Infantil Amor de Deus e, na adolescência, o Instituto Nun’Álvares, em Santo Tirso, onde beneficiou do modelo de educação jesuíta (de responsabilidade e dever) que notabilizou também a vida do Padre Manuel Antunes. Aos 18 anos, em 1964, ingressou na Faculdade de Filosofia da futura Universidade Católica, em Braga, onde se licenciou em 1968, e onde dirigiu a revista académica estudantil. Regressou, durante dois anos, ao Instituto Nun’Álvares, para ali dar aulas, antes de se fixar em Roma, como Bolseiro do Instituto de Alta Cultura, entre 1970 e 1974, ali se licenciando em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Gregoriana. Regressado a Portugal, e enquanto cumpria o serviço militar, frequentou o curso do Centro de Estudos Psicotécnicos do Exército e exerceu funções de assessoria governativa, em 1974-75, tendo integrado várias missões a organismos internacionais, como a UNESCO. Dessa curta incursão nos bastidores da política ficou-lhe, decerto, a experiência, mas não a saudade. Os tempos eram de agitação revolucionária e de radicalismos contendores – e a política, como dele diz António Barreto, “nunca foi o seu primeiro interesse intelectual”, embora dela tenha vindo a cuidar, mas “na sua versão sociológica e académica”.

Uma vez constitucionalizada a democracia, Manuel Braga da Cruz encetou, em 1976, a sua carreira académica como assistente eventual no ISCTE, lecionando Análise Sociológica e Sistemas e Instituições Políticas, e assistente convidado no ISCSP, onde regeu um curso sobre Mudança Social e Revolução. Entre 1977 e o início da década de 1980 deu também aulas no Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, no Instituto de Formação Social e no Instituto de Orientação Profissional, em temas que iam desde a marginalização social à sociologia da educação. Já na segunda metade dos anos 80 e na década de 1990, foi docente convidado e membro do Conselho Científico do ISLA, lecionando Vida e Instituições Portuguesas e Introdução à Sociologia, da Faculdade de Direito de Lisboa, onde ensinou Sociologia Eleitoral, e da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, ali regendo a cadeira de Sociologia. Em 1987, 1991 e 1994, integrou também os quadros docentes do Curso de Auditores do Instituto de Defesa Nacional e do Curso dos Serviços de Informação da República.



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Foi no ISCTE e no Instituto de Ciências Sociais (ICS) que Manuel Braga da Cruz fez todo o cursus honorum da ascensão universitária. No ISCTE, foi bolseiro entre 1979 e 1982, tendo-se doutorado (sob a orientação de Adérito Sedas Nunes), em Sociologia Política, em março de 1987, e agregado, também em Sociologia Política, em março de 1992. No ICS, então ainda designado Gabinete de Investigações Sociais, ingressou em 1977, e ali fez toda a carreira de investigador, tendo sido aprovado para a categoria de Investigador Coordenador em fevereiro de 1994. Foi membro do seu Conselho, membro da redação e diretor, entre 1990 e 1998, da revista Análise Social (uma das maiores obras de Adérito Sedas Nunes, que o escolheu para seu sucessor no cargo), e também do Serviço de Edições (hoje Imprensa de Ciências Sociais) do Instituto.

Foi também Adérito Sedas Nunes que o fez ingressar na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, em 1981, para seu assistente na disciplina de Doutrinas Políticas e Sociais. Regressaria uma década depois, em 1992, para ajudar a sedimentar a recém-fundada licenciatura em Comunicação Social e Cultural, de cujo departamento foi diretor, entre 1994 e 1997. Em 1996-97, passou a integrar o também novel Instituto de Estudos Políticos, com Mário Pinto e João Carlos Espada, ensinando no Mestrado e Doutoramento em Ciência Política. Na UCP liderou o Instituto de Apoio à Investigação Científica, a Comissão Instaladora do Instituto Ásia-Portugal, e foi diretor-adjunto da Faculdade de Ciências Humanas. No verão de 2000, foi escolhido para o mais importante cargo que desempenhou, até hoje, na sua vida – o de Reitor da Universidade Católica Portuguesa. A função ocupou-o durante 12 anos – 12 anos que, sob a sua liderança inspiradora, redefiniram a UCP e a posicionaram para o futuro no século XXI. Quando encerrou esse ciclo, tendo combatido bons combates e guardado sempre a fé (na fórmula do apóstolo São Paulo), regressou a tempo inteiro ao que tão bem sabe fazer: ler, pensar, investigar, escrever e ensinar. Seguiu dando aulas nas áreas da Sociologia e da Política, tanto na Faculdade de Ciências Humanas quanto no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, de onde se aposentou (embora a UCP, e bem, o mantenha por perto), a partir de 2016-17, quando atingiu a idade da jubilação.

Nenhuma vida humana é redutível a números; mas a grandeza da vida e da obra de Manuel Braga da Cruz pode porventura começar a perceber-se por um número: 1128 (por coincidência, a data da Batalha de São Mamede). 1128 é a soma de todas as menções que enchem as 82 páginas do seu extenso curriculum vitae. Já referi as 5 habilitações académicas e as 25 funções, cargos e docências que acumulou ao longo de 50 anos, numa dúzia de instituições diferentes, o que evidencia a reputação conquistada e reconhecida pelo nosso homenageado.

Mas há mais, muito mais, que não posso senão resumir. Se um universitário é um investigador que ensina, ele deve também ser um cidadão de causas e de compromisso cívico, tanto dentro como fora dos muros da academia. Desde 1985 até hoje, Manuel Braga da Cruz acumulou 42 atividades consultivas – em Conselhos Gerais ou Editoriais, Comissões, Fundações, Assembleias Gerais, Centros, Fóruns ou Associações, nas áreas da cultura, literatura, educação, história, religião, ética, saúde ou empreendedorismo –, 6 missões, de alta responsabilidade, no âmbito da avaliação do ensino superior, e 22 outras missões públicas, a mais recente das quais, de que me fala sempre com entusiasmo, a da instalação do Centro Interpretativo da Batalha de Castelo Rodrigo, já dotado de site e folheto, edifício e núcleo expositivo, auditório e loja.



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É, além disso, académico ou sócio de 6 academias ou associações portuguesas, com destaque para a das Ciências, a da História e a da Marinha, e de 2 das mais famosas academias espanholas – a Real Academia de História de Espanha e a Real Academia de Ciências Morais e Políticas de Madrid. É igualmente membro de confrarias, irmandades e instituições religiosas, desde a internacional Ordem Equestre do Santo Sepulcro à nacional Irmandade do Santíssimo Sacramento de Nossa Senhora da Lapa (uma função de serviço à igreja que um dos seus netos muito admira, descrevendo o avô como um “guardador do Jesus”!), para além de Comendador da Real Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, honras recebidas em 2001 e 2014, respetivamente.

A vida, académica e de cidadania, e a obra de Manuel Braga da Cruz são interinfluentes e ambas excelentes. Tem coordenação ou participação em 19 projetos de investigação, a maioria deles vertidos nos seus numerosos escritos: 24 livros de autoria individual, 7 livros em colaboração ou como editor/coordenador, 12 outros volumes, contendo antologias, nas áreas da sociologia e dos sistemas eleitorais, ou relatórios, sobre a condição da juventude ou o desenvolvimento do Ensino Superior em Portugal, bem como no âmbito do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Artigos em revistas científicas e capítulos de livros são exatamente 200, com estreia em 1969, quando, recém-licenciado, escreveu para a Revista Convergência um texto intitulado «Para uma filosofia da revolução». Somam-se a eles 91 introduções, prefácios, posfácios ou evocações, 61 recensões por si feitas a obras várias (sendo 29 as recensões existentes sobre a sua obra), mais 61 textos de imprensa – o mais antigo de 1964, sobre a Mensagem, de Fernando Pessoa – e uma vintena de textos inéditos. Ainda quanto a números, entre 1978 e 2022 (45 anos), apresentou quase quatro centenas de comunicações, conferências, alocuções, discursos, lições inaugurais ou orações de sapiência, em universidades, instituições da igreja, políticas e militares, em fóruns de cultura ou em agremiações cívicas, em todo o país e em 24 universidades estrangeiras, em Espanha, França, Itália, Alemanha, Bélgica, Suécia, Hungria, Polónia, Líbano, Moçambique, Angola, Brasil ou Estados Unidos. Finalmente, e porque um académico é também um mestre de discípulos, integrou 29 júris de doutoramento, 15 de mestrado e 4 de agregação (uma delas, recordo-o com gosto, a minha), e foi (ou ainda é) orientador de 6 teses de doutoramento e de 12 de mestrado, sem contar coorientações (entre as quais também me orgulho de figurar). Por tudo isto, já se vê a vastidão da sua bem diversificada atividade, e a influência que por ela exerceu sobre tantas iniciativas, instituições e pessoas, quer como investigador, docente e orientador, quer na multiplicidade dos cargos já desempenhados.

 

3.
Os temas, enfoques e figuras que ocuparam e ocupam a investigação, a reflexão e a escrita de Manuel Braga da Cruz compõem um puzzle de imensas peças, agrupáveis em oito grandes áreas, ou macro temas. Em todos eles, as suas obras constituíram-se como textos de referência, tanto pelo caráter inovador da investigação, como pelas visões globais de enquadramento e síntese que resistem à usura do tempo. O exercício de análise que se segue revela, assim, a amplitude de uma obra que deixou pouca coisa de fora daquilo que cada um de nós imagina poder caber nas ciências sociais e nas humanidades, ambas sempre iluminadas por uma dimensão de espiritualidade e de fé.

Entre os oito macro temas vem, à cabeça, a Sociedade, no seu mais amplo conspecto, a saber: os autores, modelos e escolas da sociologia; as tendências evolutivas do desenvolvimento em Portugal (com o interior e a cidade, a sustentabilidade, a regionalização e os interesses sociais e corporativos); o Estado social, sua evolução e reforma; a desigualdade económica e a condição da pessoa idosa; a família e as políticas de família; a liberdade de educação e de ensino, e os modelos educativos; as culturas, valores e comportamentos da juventude, na sua integração social e na sua relação com a política; a economia, a inovação, o desemprego e a formação de novos quadros; a solidariedade estatal e societal; a emigração e a identidade na pós-modernidade; ou a dignidade e valor da pessoa humana. Em todas estas alíneas, o seu pensamento de cientista social nunca foi estanque a um pensamento também filosófico, ético, político, económico e histórico.


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Lida diacronicamente, a reflexão de Manuel Braga da Cruz sobre a sociedade em geral evoluiu da descoberta e consciência da mudança a um talvez irreprimível desencanto atual. Em 1995, no livro Instituições Políticas e Processos Sociais, cimentou a sua postura de “institucionalismo sistémico”, sem “qualquer intuito de intervenção na realidade” sociopolítica que estudava, e concluiu estar Portugal, passada a normalização democrática e uma década de integração europeia, a deixar de ser “a sociedade débil e lentamente industrializada, fechada sobre si mesma e conservadora, que foi, para se tornar uma sociedade dinâmica e aberta, como os tempos futuros vão exigindo que ela seja”. Anos volvidos, contudo, em 2009, num seu discurso reitoral na UCP, haveria de apelar a um regresso à ética e à verdade na sociedade, perante a ofensiva do relativismo ético que estava a corroer – “ora em nome de um historicismo sociologista, ora de um ceticismo subjetivista, ora de uma liberdade desenfreada” – os pilares fundacionais de qualquer sociedade. Essas, e outras ameaças foram retomadas num pequeno, mas significativo texto de 2016, intitulado «O desencanto do Natal». Num mundo cada vez mais secularizado e liquefeito, a data sagrada dos homens e mulheres de fé via o seu sentido de salvação dissolvido em sociedades envelhecidas e atomizadas, e em famílias vítimas de agressões legislativas e fiscais, onde faltava “o calor da fraternidade de irmãos e do convívio intergeracional”.

Por ser, na base, um sociólogo político, a sua segunda grande macro área de investigação e reflexão foi, justamente, a política. Como o reconheceram já, entre outros, Mário Pinto, Adriano Moreira ou José Manuel Durão Barroso, o nosso homenageado foi nada menos do que um dos fundadores da Ciência Política em Portugal, que cultivou, entre muitas outras disciplinas lecionadas, nas de Política Comparada, Regimes e Sistemas Políticos, Instituições Políticas ou Sistemas e Comportamentos Eleitorais. Foi uma ciência política autonomizada do velho e jurídico Direito Constitucional e muito imbrincada numa visão socio histórica comparativa. Nela estudou, por exemplo, os impasses existentes e as reformas a fazer no sistema político português; os mecanismos de representação, governação e regulação, tanto da cidadania como do consentimento e responsabilidade do Estado; o debate científico, bloqueios e reformas do sistema eleitoral; os órgãos de soberania e a sua inter-relação; as revisões constitucionais; as forças armadas e a defesa nacional; a soberania do país, a regionalização administrativa e a integração europeia.

Em Política Comparada (livro de 2015), O Sistema Político Português (livro de 2017), ou A Democracia e o Estado em Portugal (livro de 2022), culminou uma longa abordagem sobre esta macro área, historiando o enviesamento fundacional da vida política lusa, oriundo das circunstâncias da revolução de 1974-76, os muitos sinais de “erosão”, “degradação” ou “fechamento” que hoje se acumulam nas instituições e na relação entre o país e o poder, e as grandes linhas de reforma que defende para uma maior “qualificação da democracia” que nos rege – no sistema eleitoral, para mitigar o abstencionismo, reaproximar eleitores e eleitos e operacionalizar maiorias estáveis; no sistema dos partidos, para reduzir a partidocracia, a corrupção nos financiamentos e o enfeudamento ao Estado; no sistema parlamentar, para o qual defende a restauração do bicameralismo histórico português; na figura do chefe de Estado, para o qual sugere revisão do seu método de eleição; e na relação entre o poder, a sociedade e a cidadania, com declarada ênfase para a liberdade destas em relação àquele.

Julgo que os que hoje são políticos ativos no nosso país têm bastante a aprender com os alertas globais que Manuel Braga da Cruz lhes faz: “O Estado” – e cito-o em 2017 – “anda a fazer menos bem em Portugal o que deve, porque anda demasiado ocupado em fazer menos bem o que porventura não deve. O Estado está sobrecarregado de funções e de expetativas, tornando-se menos capaz de responder ao fundamental”; e por isso urge que ele se concentre “nas funções de soberania, na representação dos seus interesses externos, na segurança e defesa, no bom e atempado funcionamento da justiça. Nos restantes domínios, deve saber estabelecer parcerias com a sociedade civil, pôr-se ao serviço dela e não pôr a sociedade ao serviço dele, respeitando sempre o princípio da subsidiariedade”. Ideia cara à chamada Doutrina Social da Igreja, a subsidiariedade é a chave de uma sociedade civil livre e robustecida; e só assim se poderá redimensionar um Estado que, de acordo com a análise de Manuel Braga da Cruz, tem sido politicamente autista, financeiramente autofágico e moralmente invasivo, e que precisa de “desburocratizar, desideologizar, desclientelizar e descentralizar” a vida pública.


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Sei que o nosso homenageado já poderia ter levado o seu compromisso cívico com uma sociedade que ele sonha dever ter (e cito-o) “a verdade como fundamento, a justiça como regra, o amor como motor e a liberdade como ambiente”, ao ponto de assumir responsabilidades políticas ativas ao mais alto nível. Tenho a certeza de que o seu contributo para a res publica que estuda e de que fala seria decerto muito útil para esta república que nos rege. E haveria a esperança de que ainda o pudesse e quisesse fazer, porque fazem falta vozes públicas como a sua, de um cientista social com larga cultura, que o é na e para a sociedade. Mas, hélas, julgo que não vamos ter essa sorte, mais não seja porque o Professor Manuel Braga da Cruz decerto levou bem a peito a recomendação que um dia, em carta de novembro de 1970, lhe fez o seu pai, o Professor Guilherme Braga da Cruz: “Estuda-me essa sociologia com afinco…mas não te deixes ‘politizar’ através dela, pois o reino que nos cumpre buscar – e foi Ele quem o disse – não é deste mundo”.

Duas outras macro áreas da sua obra têm pontos de sobreposição: são a Cidadania e a reflexão sobre a Europa e o Mundo. Os temas de estudo foram e são, nestas, a formação cívica, no encontro entre liberdade, responsabilidade e participação; o nacionalismo, o patriotismo, a identidade nacional e a inserção na globalização; a solidez do Estado-nação, no seu todo e regiões e perante os desafios culturais do século XXI; o mar e a lusofonia; as interligações entre ética e bioética, media e educação, ciências sociais, mercado, economia e direitos das pessoas; as culturas universitárias e identidades europeias; o presente e o futuro institucional, social e religioso da Europa; a fé, a razão e o direito no Ocidente; a Igreja aberta ao mundo, ou o mundo como agenda de Deus; e os nacionalismos ou europeísmos do Reino Unido, da Polónia ou da Hungria.

Vozes que já opinaram sobre a valia do nosso homenageado singularizam-lhe, por um lado, a sua abertura internacional e cosmopolita, iniciada nos seus estudos em Roma, e maximizada na gestão reitoral da Universidade Católica e na reputação de que goza em universidades estrangeiras, e, por outro lado, o facto de ser (nos termos de Luísa Leal de Faria) “um português orgulhoso do seu país e da sua história, dos valores associados à monarquia portuguesa, à Igreja católica, à devoção a Nossa Senhora de Vila Viçosa”. Em tudo o que investiga, pensa, diz ou faz, Manuel Braga da Cruz é, de facto, um grande português, exemplar num patriotismo sem sombras de xenofobia, que ama a sua terra – as suas raízes minhotas e beirãs – sempre em diálogo com a identidade nacional do seu país e sociedade. O amor a Portugal não necessita de diminuir-se na relação aberta que mantém com a Europa e o mundo. Conforme recentemente explicou no seu livro A Globalização, Portugal e a Europa (em 2022), nenhuma destas realidades é incompatível, porque são “necessariamente articuláveis”; “os espaços globais” (continuo a citar) “requerem identidades específicas, que poderão ser reforçadas se assentarem nas identidades inferiores, entre as quais avultam as identidades nacionais” – e por isso “a Europa é um conjunto de nações não apagável”, e qualquer cidadania europeia será “sonho inconsistente e impossível” se não assentar nas cidadanias nacionais.

É por tudo isto, pela busca e cultivo de uma portugalidade que se percebe ser nele ADN e guia, introspeção cultural e caminho ético, que Manuel Braga da Cruz é também – a 5.ª e 6.ª das macro áreas que cultiva – um grande historiador e um dos mais destacados leigos católicos na reflexão sobre a Igreja e a Religião.


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A obra historiográfica é vastíssima, sobretudo concentrada nos aspetos políticos e institucionais da contemporaneidade, embora com incursões a tempos anteriores. Escreveu sobre a conquista de Lisboa aos mouros; as terras e fronteiras de Alcanises e Ribacôa; a guerra da Restauração; as invasões francesas (que remetem para a memória de dois antepassados seus) e a guerra peninsular; os Congressos de Vestfália e de Viena; a monarquia e a república; o Integralismo Lusitano e a revolução de 1926; múltiplos aspetos do Estado Novo e da figura de Salazar, nas suas relações e contrastes com o franquismo, o fascismo e o nazismo; Marcelo Caetano e o marcelismo; o ultramar e as questões coloniais; as forças armadas, os partidos políticos e a política externa entre o 25 de abril e o 25 de novembro; a democratização e o Estado democrático.

Num país com quase 900 anos de existência, o catolicismo foi sempre um dos seus elementos enformadores mais importantes. Por isso, e porque são os valores do catolicismo que o definem como pessoa, Manuel Braga da Cruz estudou longamente a evolução da Igreja e da religião face à secularização e à laicidade contemporâneas; os Papas, as encíclicas e a doutrina social da igreja; a liberdade religiosa e a relação dos católicos com a política e a cultura; o cisma e o regalismo oitocentistas; o movimento social católico (e seus instrumentos), o CADC de Coimbra e o Centro Católico; toda a relação entre o Estado Novo e a Igreja (a Concordata, o Acordo Missionário e a Santa Sé, as elites, o voto e a oposição católica ao regime); o posicionamento católico face ao 25 de abril e à democracia; e o lugar da fé e de Deus na vida cívica da atualidade. Escreveu também sobre as sés de Coimbra e Lisboa, o Seminário dos Olivais, a Verbo Editora, os Jesuítas e Espiritanos, Fátima e o Concílio Vaticano II.

O facto de ser assumidamente católico e discretamente conservador nunca contaminou o rigor axiológico da sua análise histórica. E ela foi tanto mais importante porque abriu pistas e caminhos originais, sobretudo na caracterização de Salazar e do Estado Novo e nas nuances da relação entre a Igreja e o regime ditatorial. Quando iniciou os seus estudos sobre estes temas, no antigo GIS/ICS, no final da década de 1970, tinham passado poucos anos sobre o fim do regime de Salazar. Juntamente com outros colegas, como Manuel de Lucena ou Maria Filomena Mónica, teve o enorme mérito de retirar o Estado Novo do ruído ideológico revolucionário para o situar no campo da historiografia, com independência e objetividade, sem concessões à revisitação nostálgica ou ao ajuste de contas. No seu livro de estreia, em 1980, fixou a ortodoxia ainda hoje reinante de que Salazar e o seu regime tinham origens ideológicas no amplo movimento social católico e democrata cristão, muito vivo em Portugal desde finais do século XIX, e que, por consequência, o Estado Novo fora um caso ditatorial diferente da matriz dos fascismos e totalitarismos laicos. Na sua tese de doutoramento, editada em livro em 1988, analisou com largo suporte arquivístico e detalhe analítico a evolução da União Nacional ao longo do salazarismo, estabelecendo em páginas antológicas as diferenças entre diversos regimes de partido único, entre totalitarismos e autoritarismos, entre fascismos e conservadorismos, cimentando a definição do regime como uma ditadura constitucionalizada do chefe do governo, e concluindo com uma formulação que era bem mais do que uma nuance semântica, a saber, que o Estado Novo não fora um regime de partido único, miliciano e de movimento, mas um regime com um partido único, civilista e de recrutamento de quadros. Por isso, mesmo que inequivocamente repressivo, pela censura e pela ditadura policial exercidas, era “bem mais decisivo o que afasta o salazarismo do fascismo do que aquilo que deste o aproxima”. Finalmente, em escritos vários e num livro dado à estampa em 1998, ficou também desmontado o mito, em que alguns até hoje insistem, da cumplicidade estreita e servil da Igreja Católica face ao Estado Novo, fixando-se antes a ideia de que as relações entre a religião e a política no quadro do regime ditatorial evoluíram de uma “separação concordatada” e “catolaica” para uma crescente desafeição dos leigos e da hierarquia diante do autofechamento repressivo dos últimos anos do salazarismo.

A 7.ª das macro áreas de estudo de Manuel Braga da Cruz diz respeito à “sua” Universidade Católica, onde lecionou quatro décadas e da qual foi Reitor. Sobretudo no exercício deste cargo, refletiu, falou e escreveu longamente. Foi o primeiro reitor leigo da UCP e os seus reitorados, entre 2000 e 2012, foram tempos desafiantes, marcados pela tendência estatizante do ensino superior nacional, pela reforma de Bolonha e pela bem-sucedida aposta na internacionalização. Ao longo dessa dúzia de anos, a UCP racionalizou a sua dimensão nacional, concentrando recursos e renovando modelos de gestão, e liderou na oferta formativa, reforçando a sua autonomia e recebendo o respeito e o reconhecimento da sociedade, das famílias, dos ex-alunos e benfeitores e das agências de acreditação e rankings. Como reitor, o grande combate de Manuel Braga da Cruz foi sempre o de defender e afirmar a identidade universitária, católica e portuguesa da UCP, como uma grande obra de espírito, cultura e serviço à Igreja e à sociedade. “A UCP não é uma universidade neutra”, disse-o em 2001, “mas uma universidade com identidade […]. Deve estar onde a defesa da dignidade do homem o exige e não apenas onde outros não estão. Deve estar, com mais razão, onde outros já estão, mas descurando essa dignidade humana”. A isso acrescentou, em 2004, ser missão da Universidade Católica contribuir não só para a educação integral de quem nela estuda, “mas também para a humanização da sociedade e da cultura portuguesas, e para a formação de uma ética social, política e económica pautada pelos valores do evangelho”. Já no seu farewell address, no dia nacional da UCP, em 2012, haveria de salientar o quanto a Católica sempre esteve, e deveria continuar a estar, “implicada na reevangelização da cultura” pelo “sentido do sagrado” e pelo “equilíbrio da verdade, da bondade e da beleza”, na “reevangelização da ciência, que se julga autossuficiente para responder aos enigmas da natureza humana”, e na “reevangelização da sociedade, dissolvida no individualismo desagregador, carente de solidariedade, de coesão e de inclusão”.


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A atual reitora da UCP, Isabel Capeloa Gil, definiu recentemente o reitorado de Manuel Braga da Cruz como um tempo decisivo, sem o qual “a Católica não seria hoje a universidade forte na investigação, internacional e autoconfiante que é”. A dedicação do nosso homenageado à Universidade Católica não ficou patente apenas na sua gestão académica, mas na ampla reflexão que deixou sobre as ciências sociais, as humanidades e as tecnologias nela cultivadas, e sobre a longa, difícil e quase heroica história da fundação e evolução da UCP, começada bem antes do decreto que a constituiu, em 1967, e muito ligada à figura do seu pai. Como se narra no livro História da Universidade Católica Portuguesa, por si coordenado em 2018, foi Guilherme Braga da Cruz, notável católico, humanista e universitário, antigo Reitor da Universidade de Coimbra, quem mais ajudou a definir, em diversas peças jurídicas, o que viria a ser a UCP, como universidade autónoma, integral, não meramente eclesiástica, nem supletiva das estatais. Recordo isto para sublinhar que houve, assim, justiça divina no facto de Manuel Braga da Cruz ter sido reitor da Universidade a cuja fundação o pai, Guilherme, tão estreitamente esteve ligado. A este chamou o CADC “Reitor espiritual” da Universidade de Coimbra, quando ali cessou funções; o filho será sempre estimado como “Reitor emérito” da Universidade Católica Portuguesa. “O lugar que ocupei”, sintetizou ele no seu livro Os Dias da Universidade, “constituiu um ponto de observação único, que me permitiu medir e admirar toda a grandeza desta instituição que é, por certo, das grandes realizações da Igreja e da sociedade civil portuguesas”.

Universitário de excelência, cidadão empenhado, mentor de gerações de alunos e dedicado colega, Manuel Braga da Cruz é um humanista convicto, sensível e atento ao muito que se pode aprender com vidas valorosas. Por isso, tem feito também escola com uma 8.ª e última macro área de interesses – as biografias, mais longas ou mais curtas, de estudo aprofundado ou de homenagem conjuntural. Sem contar com os verbetes redigidos para o Dicionário de História do Estado Novo, para o Suplemento ao Dicionário de História de Portugal ou para o Dicionário Biográfico Parlamentar (de que foi cocoordenador), escreveu ensaios sobre quase 80 figuras da história e da vida política, social, eclesiástica, cultural, científica e económica nacional, listáveis alfabeticamente desde a letra “A” (de Abel Varzim) à letra “S” (de Sebastião Alves). Com empatia na abordagem e generosidade no ato, nessa lista estão os seus mestres universitários e espirituais (entre os quais apenas refiro, pela circunstância da sessão de hoje, o Padre Manuel Antunes, evocado num seu texto de 2018), os líderes que admira, as figuras que marcaram tempos e histórias, os colegas e amigos com quem concordou, discordou, debateu e aprendeu.

E porque o cultivo da história também se interliga, no seu caso, com a memória de família – as “raízes de mim, que não só não enjeito, como reavivo”, conforme sublinhou na introdução de um dos seus livros – merecem realce as biografias que fez do seu bisavô, Francisco José de Sousa Gomes, homem de ciência e de fé, fundador do movimento social católico; do seu avô, José Maria Braga da Cruz, importante “ceadecista” e deputado do Centro Católico; e, sobretudo, o belo livro que escreveu sobre o seu pai, Guilherme Braga da Cruz, uma obra notável, na rigorosa autocontenção adjectivante com que disseca a riquíssima vida do seu biografado; e nesse texto, que é também um fresco da academia e da cultura portuguesas ao longo do século XX, descobre-se afinal quão exemplar e imorredoura pode ser a influência de um pai sobre um filho, mesmo quando o pai há muito faleceu, e mesmo quando o filho já é pai e avô. Estas obras sobre a família foram escritas amorosamente, sem quaisquer intuitos de exposição mediática, com o único objetivo de deixar aos seus filhos e aos seus netos exemplos de vidas virtuosas, numa celebração da importância familiar que é outra das características distintivas do nosso homenageado – e que há muito o motiva também a dedicar livros (cito) “à Rosarinho”, “pelo apoio discreto, mas atuante”.


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4.
Por tudo o que já ficou dito, não devem restar dúvidas de que Manuel Braga da Cruz é uma das mais eminentes figuras do pensamento, da cultura e da academia em Portugal, com vasta obra interdisciplinar de sociologia, ciência política, história, filosofia ou ética. Já nos deixou milhares de páginas, redigidas com sobriedade e elegância estilísticas, como grandes sínteses de aplicabilidade possível ao concreto de modelos de atuação sociopolítica, de exercício da cidadania, e de compreensão viva da história, da religião na história e destas na mundividência cultural de quem fomos, somos e para onde vamos, como nação e parte integrante de uma mais vasta comunidade de língua e destino global.

Acontece que as qualidades do autor se encontram também, de forma muito coerente, nas características e qualidades da pessoa, visíveis tanto nas ocasiões públicas mais solenes, como nos momentos de maior informalidade. Recenseando por junto os vários textos de admiradores, discípulos e amigos que integram o volume editado em sua homenagem, em 2020, nele se evidenciam a afabilidade, a autoridade natural, a bonomia, a convicção, a coragem, a cordialidade, o compromisso, a dedicação, a devoção, a dignidade, a diplomacia, o discernimento, a discrição, a disponibilidade, a elegância, a eloquência, o equilíbrio, a erudição, o espírito de serviço, a firmeza, a generosidade, a honestidade, o humanismo, a independência, a inteligência, a liberdade, a liderança, a moderação, a modéstia, a nobreza ética, o rigor metódico, a sensatez, o sentido de humor, a serenidade, a seriedade, a simpatia e a verdade. O ar é formal, a voz é pausada e a persona é uma referência de aprendizagem, porque se aprende tanto melhor quanto mais se confia no que nos diz e como nos diz aquele que nos ensina. Não resisto, aliás, a recordar, subscrevendo-o por inteiro, o retrato feito por João César das Neves: “Aprendi com Manuel Braga da Cruz e passei a imitá-lo como homem, cidadão, académico, cientista e católico. Tomo-o como referência pessoal e profissional. O que ele diz é para aprender, o que ele faz é para imitar, o que ele manda é para executar, o que ele sugere é para cumprir, o que ele pede é para obedecer. Faço assim há muitos anos e nunca me dei mal”.

É tempo de encerrar, com uma última nota que julgo ser mais uma justificativa para a distinção aqui hoje outorgada. Em abril de 1969, no auge da agitação académica coimbrã, Guilherme Braga da Cruz escreveu uma carta ao seu jovem filho Manuel, ao tempo com 22 anos. Nela se lê: “O importante, na vida, é cumprir o melhor possível o nosso dever de cada dia […] e não nos deixarmos apertar nas engrenagens do orgulho e da autossuficiência. Busquemos a alegria interior do dever cumprido e confiemos os resultados ao Senhor. Bons ou maus, são os que Ele quer; e os seus desígnios são insondáveis […] Quando Deus nos dá a graça de saber com rigor qual o caminho a seguir, tudo é fácil na nossa frente, por muito difícil que seja”. Quatro décadas e meia volvidas, o filho Manuel reiterou este humano, devoto e mobilizador sentido de vida ao afirmar: “A identidade católica tem consequências. Ser católico repercute-se na forma de entender a vida em sociedade. A fé não é apenas uma convicção mental, mas também uma atitude perante o mundo e um compromisso na vida social e política […] A dignidade da pessoa humana implica uma conceção da sociedade e do Estado que orienta a atuação dos católicos na vida pública”.

Senhor Professor Manuel Braga da Cruz, estimado mestre, que faz o favor de ser meu amigo: nesta sessão em que junta o seu nome à notável galeria de figuras que já receberam o Prémio de Cultura «Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes», espero que a minha intervenção tenha recenseado e interpretado, com rigor e justiça, e com o registo elogioso que lhe é merecido, a excelência da sua obra científica, o sucesso com que desempenhou os mais variados cargos, e a nobreza de valores, atitudes e eco com que se tem conduzido ao longo da sua vida. E faço votos – fazemos todos esses votos – de que a obra e a vida continuem, servindo de espelho de virtudes e de fé, num tempo e num mundo em que elas vão rareando. A si, sobretudo, e a todos, muito obrigado!


Imagem SNPC


 

José Miguel Sardica
Universidade Católica Portuguesa
Sessão de entrega do Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes, 8.3.2023, Lisboa
Imagens: Rui Jorge Martins
Publicado em 09.10.2023

 

 
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