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Liturgia e corporeidade na poesia de José Augusto Mourão

«Se o homem é feito à imagem de Deus, então Deus tem um corpo. Talvez ele seja mesmo um corpo, ou o corpo eminente entre todos. O corpo do pensamento dos corpos (...). O corpo fabrica a auto-imunidade da alma, no sentido técnico deste termo médico: ele defende a alma contra si própria, impede-a de ser toda espiritualidade íntima. Provoca na alma uma rejeição da própria alma» (1).

 

Este ensaio debruça-se sobre a poesia de José Augusto Mourão, lendo-a sob o signo do corpo. Mais do que o dito sobre o corpo, interessará o corpo, ou o ser humano enquanto corpo, que se diz neste trabalho poético. Sendo no dito que se descortina o dizer, é pelo enunciado que se chega à enunciação: na sua matriz textual, esta poesia litúrgica vai além das coordenadas da sua oralidade, chegando a novos leitores que, no exigente trabalho de leitura, a assumem no seu corpo e por ela se deixam marcar. Após a introdução à natureza litúrgica da poesia de Mourão, segue-se a leitura de três poemas considerados paradigmáticos da enunciação poética de um corpo de desejo, relevando três possíveis dimensões de compreensão do viver crente.



A criação textual de Mourão para a liturgia inclui textos que encontram na recitação a sua finalidade. Texto e música, como poema e hino, têm no trabalho de Mourão uma grande proximidade



Uma poesia litúrgica

José Augusto Mourão (1947-2011), presbítero da Ordem dos Pregadores e com um extenso percurso académico na área da semiótica, é autor de uma densa e polimórfica obra, que podemos agrupar em três eixos: poética, homilética e ensaística. A sua formação teológica colocou-o em contacto, durante a década de 70, em Lyon, com um grupo de investigação, o CADIR – Centre pour l'analyse du discours religieux. Seguindo o método de trabalho semiótico desenvolvido por A. J. Greimas e pela Escola de Paris, este grupo dedica-se à leitura semiótica de textos religiosos, nomeadamente dos textos bíblicos, como alternativa ao paradigma histórico-crítico dominante.

O ponto de partida do trabalho de Mourão consistiu na análise de textos litúrgicos, relevando o estatuto semiótico dos vários registos de linguagem litúrgica: relato, narrativa, súplica, ação de graças, exortação. Aos textos bíblicos e litúrgicos seguiram-se textos de autores espirituais portugueses do início da Modernidade – Tomé de Jesus, Bartolomeu dos Mártires, José de Anchieta. Neste campo, a figura do jesuíta Michel de Certeau foi tutelar na busca dos traços do “desejo” e do “Outro” na linguagem mística, como também na convicção de que a questão de Deus, da sua enunciação e do lugar do Cristianismo enquanto corpo, exige uma demanda que não se satisfaz, nem com um tipo único de saber, nem com a defesa de uma verdade por via das autoridades que regulam a vida de um grupo.

Fatores profissionais, mas também de convicção pessoal, encaminharam Mourão dos textos religiosos para os textos literários, no quadro da Universidade Nova de Lisboa (aí foi professor, entre 1981 e o ano da sua morte, 2011), sempre com o método de leitura semiótica. José Saramago, Gabriela Llansol ou Natália Correia foram alguns dos autores cujas obras mereceram a sua atenção. Na passagem do milénio, as novas formas de comunicação – o ciberespaço, a virtualidade em rede – conduziram Mourão a um saturado trabalho ensaístico de questionamento antropológico e da experiência do religioso. Mas a pertença dominicana com as suas referências – São Domingos, Mestre Eckhart, Tomás de Aquino, como também os teólogos do Concílio Vaticano II, Y. Congar, E. Schillebeeckx – situaram Mourão, não apenas como um leitor ou estudioso da linguagem mas também na busca criativa de uma palavra que nomeie a Deus (2).



A textualidade litúrgica, em Mourão, situa-se no oposto da forma de compulsividade de que se reveste, na experiência da ritualidade, a repetição mecânica de fórmulas rígidas; mas não se trata de substituir esta deriva ritual por uma outra forma de compulsividade, a do discurso espontâneo que se converte na expressão do mesmo



É no quadro da renovação litúrgica do pós-Vaticano II que a poesia de Mourão encontra a sua genealogia. O esforço de transição da liturgia para as línguas vernáculas implicou um profundo trabalho de tradução do latim de textos rituais e musicais que tendeu, naturalmente, a envolver também um trabalho de criação. No contexto concreto da Ordem dos Pregadores em Portugal, a figura de referência no campo da criação musical foi a de frei André Gouzes (1943), na abadia de Sylvanès (3). Mourão desenvolveu um extenso trabalho de adaptação para a língua portuguesa e de criação de raiz de textos para músicas de André Gouzes, para utilização nas comunidades dominicanas em Portugal.

Em paralelo, a criação textual de Mourão para a liturgia inclui textos que encontram na recitação a sua finalidade. Texto e música, como poema e hino, têm no trabalho de Mourão, como na criação musical de Gouzes, uma grande proximidade, em virtude da ênfase no canto oral e do recurso moderado ao acompanhamento instrumental, seguindo neste aspeto uma tradição muita habitual nas Igrejas da Ortodoxia. A poesia de Mourão circula inicialmente de forma independente, conhecendo-se tentativas poéticas ainda na década de 70 no contexto do Seminário Maior do Porto, à luz do período de experimentação litúrgica que então se vivia. Também em França é possível detetar pontos de contacto com este percurso poético: a figura de Patrice Tour du Pin é a este nível paradigmática. Já com uma obra poética consolidada, Tour du Pin é convidado, no pós-concílio, a colaborar com a comissão episcopal francesa encarregada da tradução dos textos litúrgicos latinos, consistindo o seu contributo no cuidado com a qualidade poética dos mesmos. O processo de tradução do latim para o francês é entendido como um processo delicado que supera a mera transcrição de vocábulos. Progressivamente, Tour du Pin desenvolve um trabalho de criação de raiz de textos para a liturgia, seja como resposta a pedidos concretos, seja por livre labor do poeta. (4)

Embora a obra poética de Mourão se inscreva numa matriz litúrgica, a sua publicação em livro transporta-o para outros ambientes. Em alguns dos títulos destes poemas esta matriz é explícita: «vésperas», «comunhão», «ofertório», «momento penitencial». Estes textos poéticos são progressivamente reunidos em pequenas publicações que, em termos editoriais, conhecem uma circulação limitada, até serem reunidos numa edição completa em 2009 (5). Inscrevem-se no âmbito do “próprio” da liturgia que, em relação ao “comum” (cânon eucarístico, leituras bíblicas), abre um espaço de apropriação por parte das comunidades locais (introito, cânticos, preces, pós-comunhão), não obstante tais possibilidades serem relativamente pouco trabalhadas por motivo da rotina, do temor da inovação ou do apego à letra dos textos litúrgicos. Utilizando uma metáfora musical, os textos rituais podem ser considerados uma pauta que é executada de modos diferentes pelas comunidades que deles se apropriam para a celebração da sua fé. A poesia de Mourão situa-se nesta problemática entre a tradição e a inovação da linguagem: «Falar de Deus é interromper o “já dito” e arriscar-se no “dizer”, que implica a presença àquilo que se diz. O recurso às “autoridades” é como que suspenso para que seja cada um, a partir do corpo de desejo que o constitui como sujeito, fale. E falar é expor-se» (6).



O discurso poético, pelo seu trabalho de linguagem, possui uma dimensão de vigilância crítica em relação aos lugares-comuns, estereotipados e de sentido único que caracterizam a sociedade comunicacional



A textualidade litúrgica, em Mourão, situa-se no oposto da forma de compulsividade de que se reveste, na experiência da ritualidade, a repetição mecânica de fórmulas rígidas; mas não se trata de substituir esta deriva ritual por uma outra forma de compulsividade, a do discurso espontâneo que se converte na expressão do mesmo, nos limites do ambiente fechado e “quente” de um grupo. O registo textual da poesia de Mourão contém um trabalho prolongado, quer de criação literária, quer de acolhimento por parte das comunidades, num exercício de discernimento. A sua poesia litúrgica não tem a pretensão da universalidade (substituir um cânon litúrgico por um outro), mas move-se no quadro do concreto e do provisório: de um corpo, pessoal e comunitário, que nela encontre uma pauta para expressar o seu desejo, aceitando, pelo exercício poético das palavras, o movimento de travessia ou de êxodo em direção ao Outro, ao Novo e ao Diferente.

 

Um corpo que se diz e celebra

Uma convicção fundamental preside a este projeto poético, emprestada do núcleo da história da salvação: «sabíamos todos / que se Deus não vinha em corpo inteiro / ao nosso corpo / nada estava salvo» (7). Transitando do “dito” para o “dizer”, passamos do corpo que é dito ou celebrado para o corpo que se diz e que celebra. Entre o corpo que é celebrado e o corpo que celebra, a diferença reside no movimento de transitoriedade ou de deslocação, que o Evangelho designa como “conversão”. Atenda-se ao poema intitulado “do corpo”:

 

«a nós que vivemos no espaço
tempo do corpo
da morte na vida e da vida na morte

concede-nos a graça de vivermos
humanamente a nossa condição,
descobrindo o sentido da nossa existência
onde tu nos encontres
cumprindo a carta das Bem-aventuranças para este mundo

nós to pedimos por Cristo Jesus,
que nos ensinou uma outra
maneira de estar contigo
e com os outros;
nós to pedimos
pelo Espírito de comunhão
que como um nó nos une» (8)

 

A linguagem do corpo permite aproximar o leitor de uma condição humana que é comum: um «nós» que vive entre as coordenadas do espaço e do tempo, da vida e da morte. Esta lucidez, que nos transporta para um corpo situado, pode à partida ser motivo para uma ausência de deslocação: reconhecer as margens que marcam a existência humana pode significar uma resignação passiva, uma perda de um sentido de rumo.



A poesia de Mourão inscreve-se num corpo eclesial e no interior da experiência crente com as marcas da sua vivência humana, buscando um modo diverso de a formular e declinar



Mas «viver humanamente a nossa condição», «onde tu nos encontres» é considerado uma graça, situando a mesma existência no concreto das Bem-Aventuranças, onde se fala a linguagem do corpo: a fome e o ser saciado, o chorar e o ser consolado, a perseguição e a mansidão. O termo «carta» aponta para uma constituição normativa, um paradigma ético, mas é também um “mapa” para um território, de orientação e não apenas de prescrição, de reconhecimento e não apenas de utopia, para esse território que é a existência humana.

A poesia surge como um discurso que gera um corpo enquanto uso da linguagem que pressupõe e constitui uma forma de vida, uma interação comunitária, uma ética da escuta do quotidiano, do singular e do comum. O discurso poético, pelo seu trabalho de linguagem, possui uma dimensão de vigilância crítica em relação aos lugares-comuns, estereotipados e de sentido único que caracterizam a sociedade comunicacional. Não se trata de uma poesia feita à margem ou fora do seu corpo social, mas no seu interior, com um modo de estar e de dizer diverso.

Analisando o trabalho poético realizado em Portugal nas últimas duas décadas, no quadro da pertença a um corpo social, com as suas crises e aspirações, Rosa Maria Martelo refere «o entendimento da poesia como uma prática discursiva libertária e susceptível de desestabilizar e recentrar as versões-do-mundo inculcadas pelo senso comum, temática que se corporiza na condição experimental em que o poema articula a significação com a produtividade da significância. A poesia é, assim, uma forma de linguagem que não se separa de uma forma de vida (...), é uma experimentação da linguagem que corresponde à exigência de uma outra vida» (9).



Se encontramos o corpo do poeta exposto nesta obra, não o é enquanto sujeito individual lidando a sós com uma experiência individual, mas enquanto corpo entre corpos, membro de um corpo comunitário reunido para o ato orante e celebrativo



No caso da poesia de Mourão, esta inscreve-se num corpo eclesial e no interior da experiência crente com as marcas da sua vivência humana, buscando um modo diverso de a formular e declinar. Esta deslocação é apontada na missão do Cristo Jesus, «que nos mostrou uma outra maneira de estar contigo e com os outros». Outro poema solicita «que o pão e o vinho desta eucaristia / nos transformem / em corpos de louvor e de solicitude» (10). Se uma primeira leitura nos conduz para uma poética de programa, com o traçar de linhas de ação, uma releitura atenta coloca-nos, por outro lado, no estabelecimento de linhas de horizonte, de condição e de orientação, na concretude do corpo que «está com», sob o signo do Outro.

 

Um corpo inscrito numa vida diferida

A escrita litúrgica de Mourão apresenta aparentemente poucos traços de exposição do autor – só um trabalho atento de leitura permitirá descortinar nesta poesia os traços de um corpo exposto e atravessado por um desejo. Esta poesia recebe a suspeita de ser uma escrita de programa, de intenção, de uma palavra dirigida a um grupo, colocando em risco a liberdade e gratuidade próprias da criação literária. Atente-se ao poema intitulado “da vida diferida”:

 

«Deus, ensina ao nosso corpo
o seu caminho incerto e frágil
e a humanidade a fazer chegar da condição humana

que viver seja habitar esse lugar
incerto e frágil da abertura,
das relações que alteram,
das manifestações mais altas do humano,
não da violência cega e do dinheiro que faz escravos

empresta ao nosso corpo
o corpo do teu Cristo ressuscitado
que nos congrega
para as fainas do teu Reino e da Terra Prometida,
Deus que ressuscitaste Jesus dos mortos,
por quem vem o Espírito que dá a vida
e como um nó nos une
no cântico da vida diferida e na esperança» (11).

 

O corpo do poeta/orante expõe-se a uma deslocação, figurado nos verbos «ensina» e «empresta», tendo por horizonte quer «a humanidade a fazer», quer o «Cristo ressuscitado / que nos congrega». É um corpo exposto às «relações que alteram», abertura e caminho «incerto e frágil», por oposição a uma linguagem de força que é a da «violência cega e do dinheiro que faz escravos». O corpo rezado é «nosso», unido por um «nó» que é, quer a «condição humana», quer «o Espírito que dá a vida», situando de novo sua a matriz social e comunitária, aberta ao outro e ao diverso.



O gesto, a palavra, o poema ou o hino não contêm ou localizam a Deus, mas constituem uma resposta e uma espera, o trabalho do desejo. Se Deus, perante o desejo do orante, as suas palavras e os seus gestos, é um horizonte não consumável, é também o espaço essencial onde se move esse mesmo desejo



Na expressão «vida diferida» encontramos talvez a figura mais paradoxal deste poema: na sua forma verbal, “diferir” tanto aponta para “adiar” como para “diferenciar”; como adjetivo, “diferido” retoma os significados de algo “adiado” mas também de “transportado”, mantido em aberto ou em suspenso. Um folhear da poesia de Mourão permitirá compreender melhor esta «vida diferida» se a situarmos à luz do mistério pascal, enquanto reconhecimento de que não está tudo dito no presente. «Dá à nossa vida a graça da dissidência, / a centelha da utopia que alumiava a história, / o gosto das coisas transitórias / que permite a marcha» (12).

Se encontramos o corpo do poeta exposto nesta obra, não o é enquanto sujeito individual lidando a sós com uma experiência individual, mas enquanto corpo entre corpos, membro de um corpo comunitário reunido para o ato orante e celebrativo. Se há uma autonomia literária do poeta, no trabalho das palavras e das figuras, esta é em relação aos discursos considerados universais e normativos para a nomeação litúrgica, não em relação aos contextos comunitários, ao corpo que discerniu e adotou este património poético para a sua exposição orante.

Paradoxalmente, se esta proposta poética busca a autonomia, ela dá-se enquanto passagem do universal ao particular ou próprio, isto é, adquirindo um corpo. Se o poeta se entrega à experimentação da palavra, é num espaço por natureza estruturado como é o litúrgico, com as suas formas de discursividade estabelecidas. Um corpo que se descobre e experimenta, não como fuga para um mundo de ideias ou de pensamentos, mas inscrito nas suas próprias circunstâncias. O corpo do poeta expõe-se nestes poemas através do quotidiano que habita, nos acontecimentos datáveis e nomeáveis da vida comunitária com os quais esta poesia se entrecruza. Vejam-se os poemas In memoriam Maria Luísa – «acolhe nos teus braços / esta vida assim colhida no meio da viagem» (13) –, o poema Bodas – «Deus, tu cruzaste todos os caminhos / em que se encontraram o Artur e a Margarida» (14) – ou o poema Teresa de Saldanha – «abençoa, Deus de festas / esta festa de Irmãs» (15).



A poesia litúrgica de José A. Mourão percorre as experiências e linguagens do quotidiano, apresenta-os em ofertório, mas constitui também o convite a interromper tais experiências, a abrir um espaço e um tempo de louvor, a passar por um não-lugar que representa o Advento de um Deus já presente, mas em desejo, fé e esperança



Um corpo marcado pelo trabalho do limite e do provisório

A linguagem corporal encontra-se de novo presente num terceiro poema que podemos considerar como representativo da linguagem poética de Mourão, intitulado viagem no deserto:

 

«abre-nos, Deus, a porta
através das águas
para a grande viagem no deserto:
o combate com a morte no campo da vida,
a travessia dos limites, a nebulosa dos olhos

não se ensurdeça o nosso coração
porque a luta nocturna com o teu Nome
nos deixou no corpo marcas

dá-nos a graça de atravessar o riacho da vida
mesmo coxeando;
que caminhemos com a ligeireza
e a elegância do animal
que busca o esplendor do verdadeiro
nas coisas provisórias

e que desse combate com as imagens
nos aproximemos do horizonte da tua casa
donde vejamos as sementes do amor cobrindo a eira» (16)

 

A linguagem do corpo envolve uma dimensão agónica: «combate», «luta nocturna», «coxeando» «nebulosa», o trabalho do limite, do provisório e das imagens – de novo a ideia de passagem ou de travessia, de diferimento e de deslocação, pedindo a «ligeireza». A inscrição desta linguagem num poema de oração, em espaço litúrgico, imprime uma corporeidade que funciona como um fator de equilíbrio face ao pendor idealista, mental ou espiritual de que essa oração litúrgica se pode revestir.

A oração cria um círculo, um espaço, através de gestos e de uma orientação, no qual se constrói uma tipografia de sentimentos. Possui uma natureza paradoxal: particulariza, num dado contexto (litúrgico, pessoal, comunitário), uma relação com Aquele que é universal. O encontro dá-se no cruzamento espácio-temporal do orante, no seu corpo, corpo fatigado pela difícil luta do desejo. Corpo de espera, orientado para uma realidade inapreensível. Refere Michel de Certeau:

«Para encontrar o Vivente que habita todo o espaço, o orante não pode utilizar as palavras aptas a captar as complacências humanas e as ideias que lhe submetem as coisas. Como capturar a Deus na rede dos pensamentos humanos? Despojado deste hábito esculpido na linguagem humana, ele encontra-se então, pobre no saber e rico no que espera, numa vigilância física onde a alma é o sentido tácito da linguagem corporal.» (17)



Não se trata de uma poesia que diz ou pensa a liturgia, mas que se diz, como corpo, na liturgia. Situamo-nos ao nível de uma aprendizagem, não do rito, mas pelo rito



Mais do que na alma ou nos pensamentos, é na vigilância do corpo que o orante espera a Deus. Movendo-se para o âmbito mental, a oração busca outras pretensões: é ela verdadeira? É universal? Consegue escutar a voz de Deus? O corpo, ao invés, dá-se numa entrega total: «eis o meu corpo». Aí as palavras reduzem-se ao essencial: «Tem piedade»; «Vem Senhor». Continua Michel de Certeau:

«Para não ser mágico, o gesto precisa de uma palavra que constitua um apelo ou uma recoleção. Ao invés, para não ser uma apreensão ilusória do espírito ou um percurso abstrato e desesperado, a linguagem requere uma residência e uma epifania físicas, formadas por este corpo opaco onde a vida se enraíza e se manifesta, modeladas pelos trabalhos e os amores quotidianos, e ajustadas pelo reencontro do Homem-Deus neste mundo. O orante caminha em direção a Deus. Com a delicada bagagem dos seus gestos e das suas palavras, ele prossegue a sua humilde peregrinação.» (18)

Por seu lado, cada gesto, como cada palavra, situam-se numa peregrinação: Deus não está aí, está alhures. O gesto, a palavra, o poema ou o hino não contêm ou localizam a Deus, mas constituem uma resposta e uma espera, o trabalho do desejo. Se Deus, perante o desejo do orante, as suas palavras e os seus gestos, é um horizonte não consumável, é também o espaço essencial onde se move esse mesmo desejo: «N’Ele vivemos, nos movemos e existimos» (At 17, 28). A teologia cristã exprime esta tensão numa fórmula clássica: “já e ainda não”. Um corpo que, como os hebreus em torno a Jericó (Js 6), circula à volta, entoa os hinos, espera, mas não captura aquela que é a cidade do seu desejo, esperando antes que esta lhe seja entregue. O corpo exprime a Deus algo que é inexprimível pela inteligência: assume em si a história humana na similitude dos gestos e do que eles são, representam e apontam – o ajoelhar, juntar as mãos, elevar-se, prostrar-se. Gestos que, se acompanham a humanidade desde os seus primórdios no sentimento religioso, também a acompanham nas suas relações sociais, quer de repressão, quer de compaixão.

A poesia litúrgica de José A. Mourão percorre as experiências e linguagens do quotidiano, apresenta-os em ofertório, mas constitui também o convite a interromper tais experiências, a abrir um espaço e um tempo de louvor, a passar por um não-lugar que representa o Advento de um Deus já presente, mas em desejo, fé e esperança. Não se trata de uma poesia que diz ou pensa a liturgia, mas que se diz, como corpo, na liturgia. Situamo-nos ao nível de uma aprendizagem, não do rito, mas pelo rito. A liturgia constitui uma escola de fé na medida em que conduz o crente numa pedagogia do desejo e do corpo, de libertar-se dos impulsos de apropriação e posse, quer da vontade de Deus, quer da liberdade dos irmãos. A beleza e a palavra convidam a uma escuta gratuita, a uma vigília dos sentidos, não para subtrair dos deveres do século, mas para neles viver com a alegria e a esperança do dom maior que é o próprio Deus, corpo de corpos.



(1) Jean-Luc Nancy, “Cinquenta e oito indícios sobre o corpo», em Revista de Comunicação e Linguagens 33 (2004): 17.22.
(2) Um extenso curriculum vitae de José Augusto Mourão foi publicado em Cadernos ISTA 25 (2012).
(3) Alfredo Teixeira apresenta, de forma mais elaborada, esta genealogia: Alfredo Teixeira, “‘Dicção de Deus’: Poética e ritualidade segundo José Augusto Mourão (1947-2011)”, em António C. Gouveia (org.), Os Dominicanos em Portugal (1216-2016) (Lisboa: CEHR, 2016), 279-294.
(4) Este eixo de criação poética foi reunido no terceiro volume da obra completa de Tour du Pin: Patrice Tour du Pin, Une Somme de poésie, tome III: Le jeu de l’homme devant Dieu (Paris: Gallimard, 1983).
(5) A listagem completa das edições da Poesia de Mourão é a seguinte: Vazio Verde – O Nome (Lisboa: CRC, 1985); Dizer Deus – ao (des)abrigo do Nome (Lisboa: Difusora Bíblica, 1991); Declinações: o Nome e a Forma (Lisboa, 2004); O Nome e a Forma – Poesia reunida (Lisboa: Pedra Angular, 2009).
(6) Mourão, O Nome e a Forma, https://www.triplov.com/semas/2009/Santa-Clara.html (consultado a 07.07.22).
(7) Mourão, O Nome e a Forma, 290.
(8) Mourão, O Nome e a Forma, 148.
(9) Rosa Maria Martelo, Devagar, a Poesia, 100.
(10) Mourão, O Nome e a Forma, 158.
(11) Mourão, O Nome e a Forma, 57.
(12) Mourão, O Nome e a Forma, 101.
(13) Mourão, O Nome e a Forma, 61.
(14) Mourão, O Nome e a Forma, 67.
(15) Mourão, O Nome e a Forma, 300.
(16) Mourão, O Nome e a Forma, 116.
(17) Michel de Certeau, La faiblesse de croire (Paris: Seuil 1987), 17. O capítulo de que é retirada a citação intitulado “L’homme en prière, ‘cet arbre de gestes’”, permitiu a Gonçalo Cordeiro criar o cruzamento de leitura da obra poética de Mourão. Veja-se Gonçalo Cordeiro, “Uma árvore de gestos. Vazio e promessa na poesia de José Augusto Mourão”, em Teografias 3 (2013): 9-18.
(18) Michel de Certeau, La faiblesse de croire, 19.



 

Rui Vasconcelos
Doutorando em Teologia, Universidade Católica Portuguesa
In Brotéria, outubro 2022
Imagem: joasouza/Bigstock.com
Publicado em 20.03.2023 | Atualizado em 21.03.2023

 

 

 
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