Para muitos, a grande ocasião para ler vem das férias, quando conseguimos “dar tempo” à quietude, ao silêncio, ao nada fazer, e portanto podemos dedicá-lo a ler um livro. Um livro que lemos e amámos há muitos anos, um livro que está há muito na estante da casa, como um morto no nicho, e aguarda para ser ressuscitado e tornado eloquente. Um livro adquirido no último momento antes de partir ou em viagem. Para mim, o conselho de Flaubert - «ler para viver» - revestiu-se sempre de um significado denso e impeliu-me sempre a ler precisamente em busca de uma vida plena.
Ler, com efeito, não é tanto uma atividade intelectual, mas o esforço cansativo, embora fecundo, de interrogar-se e interpretar-se a si próprio e à realidade circundante: trata-se de ler não um livro, mas o mundo, as situações, os acontecimentos através daquilo que já “está escrito” porque outros o colocaram “preto no branco”.
Mais em profundidade, ainda, ler-se a si mesmo: se pensarmos bem, o próprio corpo da pessoa que lê torna-se muitas vezes ícone de interioridade, uma garantia palpável de recolhimento, diremos quase que o leitor se faz um com o livro, e que dessa maneira envolve no ato de ler inclusive o próprio ao autor dessas páginas.
A leitura, de facto, é uma conversa, um diálogo com quem está ausente e pode estar a milhares de quilómetros no tempo e no espaço: é um receber a palavra de um outro e fazê-la própria, interpretando-a no diálogo da própria intimidade. Marcel Proust, no termo da sua obra monumental “Em busca do tempo perdido”, abria-lhe novos horizontes, ilimitados, asseverando que os seus leitores tinham sido «leitores de si próprios», porquanto o seu livro era apenas o meio a eles oferecido para que lessem dentro de si.
Sim, também e sobretudo na nossa sociedade da imagem, ler continua a ser uma operação de grande humanização, surpreendente na sua simplicidade: não são precisas tecnologias nem instrumentos complicados, nem sequer iniciações particulares, porque, no fundo, como recordava o poeta Fernando Pessoa, «o único prefácio de uma obra é o cérebro de quem a lê». Não foi por acaso que os medievais faziam derivar a palavra latina “intellegere” – literalmente compreender – de “intus leggere”, ler a partir de dentro.
Infelizmente, hoje lê-se pouco, aduzindo-se entre as desculpas o pouco tempo à disposição. Mas as opções que fazemos no uso do nosso tempo são reveladoras daquilo que para nós conta verdadeiramente na vida. Assim, ler pode tornar-se antídoto para a monotonia dos dias, luta contra o desgaste do tempo, manifestação de que somos senhores, e não escravos, do tempo: nesta sua valência, é ato anti-idolátrico, gesto de resistência contra um dos ídolos da nossa época, uma autêntica opção ética.
Ler é dessedentar-se numa fonte que não se esgota. Quem de nós, diante de um livro amado, não fez a experiência de como ele assume cores novas segundo os momentos, de como emana perfumes inebriantes, segundo as estações? O livro é um objeto estranho: vemo-lo, avaliamo-lo, desfolhamo-lo, pousamo-lo, reencontramo-lo. Uma frase é relida, uma passagem familiar ou obscura é novamente decifrada. Ler um livro significa realizar uma operação de leitura do mundo e da história, e aceitar que este desejo já habitou homens e mulheres diversos que diversamente viveram e diversamente escreveram.
Ler é percorrer um itinerário potencialmente infinito, porque «se no fim fechei o livro – escrevia Virginia Woolf – foi só porque a minha mente estava saciada, não porque esgotei o seu tesouro».