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Kim Ki-duk: Os clarões de genialidade de um cineasta austero

Com Kim Ki-duk, falecido esta sexta-feira, na Letónia, aos 59 anos, devido a complicações causadas pelo Covid-19, desaparece um talento inconstante, mas sempre capaz de reservar clarões de genialidade, e, sobretudo, um autor que não se assemelhava a nenhum outro.

O cineasta sul-coreano impõe-se à atenção da crítica ocidental com “Primavera, verão, outono, inverno… e primavera” (2003), narração de um monge budista através das estações da sua vida. Na pátria, o realizador foi acusado de banalizar o misticismo oriental para fazer dele uma versão apropriada para a exportação. A dúvida de um certo simplismo em relação à dimensão filosófica e espiritual pode, com efeito, surgir.

Todavia, como será evidente mais à frente, o fulcro da arte de Kim não consiste tanto na inspiração transcendente das suas histórias, que aqui e ali se sente, mas na capacidade de sugerir as magias da existência ainda que só numa ótica totalmente terrena.

O seu estilo impressionista, apoiado numa montagem de extraordinária leveza e uma encenação espartana, áspera, esvaziando o fútil para privilegiar o essencial, sublinha as misteriosas correspondências do real. Porém, o olhar de Kim não é só existencial, mas também social e antropológico, e é impiedoso ao assinalar a crueldade ínsita no ser humano.



Com “O arco” (2005), história de três personagens que se desenrola cabalmente numa barca, de novo com pouquíssimos diálogos, o realizador confirma saber condensar significados profundos em poucos gestos, e exprimir simbolicamente o curso da vida humana



Sobre tudo, depois, o cineasta deposita uma boa dose de hermetismo que pode ser confundido com astúcia. Mas o espetador que tem a paciência de entrar em sintonia com o seu ponto de vista atónito, sempre pronto a espantar-se ou a lamentar-se, só pode colher dele sobretudo os aspetos mais sinceros.

Com o sucessivo “Ferro 3” (2004), o cinema de Kim alcança o equilíbrio perfeito. Nesta história de amor que desafia as fronteiras do espaço, a quase total ausência de diálogos testemunha a força expressiva de uma realização que tem a misteriosa determinação de um sonâmbulo. As heranças do espiritualismo oriental são colocados ao serviço de uma metafísica que é, sobretudo, cinematográfica, e não por coincidência reevoca os exemplos de “amour fou” da “Nouvelle Vague”.

Em “A samaritana”(2004), a pureza do estilo funde-se de novo perfeitamente com o conteúdo num apólogo sobre o mal no mundo. A esperança que se entreabre no epílogo é confiada a relações familiares anteriormente disfuncionais, e é representada através de uma das típicas epifanias finais do cinema de Kim.

Com “O arco” (2005), história de três personagens que se desenrola cabalmente numa barca, de novo com pouquíssimos diálogos, o realizador confirma saber condensar significados profundos em poucos gestos, e exprimir simbolicamente o curso da vida humana. Em “Time” (2006), aquilo que parece uma narrativa moral de tintas quase horríveis sobre o abuso da cirurgia estética, torna-se um lírico hino ao amor que vai para além do corpo, a par de uma metáfora da perda de identidade induzida por um forte sentimento.



Como todos os realizadores que confiaram cegamente no cinema, Kim confiava-se quase exclusivamente à montagem e à ação para exprimir a sua visão do mundo, que no grande ecrã raramente consegue ser tão pessoal



Depois deste período prolífico e criativamente intenso, a filmografia prossegue no sulco da mesma poética, mas com menos verniz, e durante alguns anos a estrela do cineasta parece ofuscar-se.

O regresso à ribalta chegou com o Leão de Ouro no festival de Veneza, graças ao filme “Pietà”. No entanto, esta história de redenção torna-se mais previsível quando comparada com obras passadas. Se, antes, o cinema de Kim levantava interrogações, neste filme avança com muitas respostas, ainda que poeticamente impecáveis.

O hermetismo e a liberdade narrativa parecem ter dado, inesperadamente, espaço a uma estrutura dramatúrgica mais aridamente cartesiana. Ainda assim, o filme reserva ainda momentos preciosos, e a capacidade de Kim de exprimir a vertiginosa profundidade das relações humanas volta, em certos momentos, a ser íntegra. Sobretudo, permanece intacto o desprezo pela composição destilada dos enquadramentos ou por uma fotografia invasiva.

Como todos os realizadores que confiaram cegamente no cinema, Kim confiava-se quase exclusivamente à montagem e à ação para exprimir a sua visão do mundo, que no grande ecrã raramente consegue ser tão pessoal.


 

Emilio Ranzato
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 12.12.2010 | Atualizado em 22.04.2023

 

 
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