Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Leitura: “John Henry Newman – Perfil de um buscador da Verdade”

A canonização do cardeal inglês John Henry Newman no passado domingo, 13 de outubro, motivou a Paulinas Editora a «oferecer aos cristãos, e ao público em geral, uma oportunidade de explorar e apreciar melhor a sua notável figura»

“John Henry Newman – Perfil de um buscador da Verdade”, de Paolo Gulisano, «oferece a riqueza de um mestre da fé que continua a ser ponto de referência num mundo inquieto, capaz de tocar as mentes e os corações dos homens de hoje com uma frescura e impacto que não se desvaneceram», sublinha a editora.

A sua vida e obras evocam «um homem “moderno”», porque a ele se deve, «entre outras coisas, a visão dos leigos como um elemento-chave na formação da Igreja, mesmo que na época não fosse compreendida, e levou cem anos para que a sua intuição se tornasse realidade».

«Tendo-se tornado católico, não faltaram a Newman outras contrariedades, se não até hostilidades. O seu génio teológico e a grande liberdade com que antepunha o primado da consciência a qualquer dogmatismo simplicista suscitaram invejas e suspeitas. Na própria hierarquia, não faltou quem considerasse Newman não suficientemente «romano», nem suficientemente polémico em relação ao Anglicanismo que tinha abandonado», lê-se no primeiro capítulo.

Depois de ingressara na congregação de São Filipe Néri, «estabeleceu-se em Birmingham, onde fundou um Oratório. Aí, o grande pensador, o intelectual brilhante, deparou-se com a miséria dos bairros pobres daquela grande cidade industrial. Foi precisamente aí, e a partir daí, que a Graça de Deus que estava nele começou a semear com profusão».

 

Fé e razão
Paolo Gulisano
In “John Henry Newman – Perfil de um buscador da Verdade”

Além do tema da consciência, Newman aprofundou a ligação entre fé e razão, produzindo um pensamento que hoje, nos alvores do terceiro milénio e com o ressurgir de antigas polémicas e a apresentação de um novo laicismo agressivo, é muitíssimo atual, devendo ser redescoberto.

A vivência biográfica de Newman, bem como a sua produção científica, representa um itinerário pascal, um caminho difícil e ao mesmo tempo fascinante, que o conduziu até à luz da verdade, da verdade inteira, feita de fé e de razão.

Uma compreensão, resultado não só de estudos e de leituras, mas também de encontros, com pessoas ou também com lugares da memória, como quando escreveu que em Milão, «na cidade de Santo Ambrósio, compreende-se melhor a Igreja de Deus do que na maior parte dos outros lugares, e somos induzidos a pensar em todos aqueles que são os seus membros».

A verdade é apreendida por ele através de uma experiência muito complexa em que convergem os elementos objetivos – investigações e estudos rigorosíssimos –, e o contributo integral e direto de toda a sua pessoa que procurava, esperava e estava disposta a encontrar. A verdade alcança-se, como ele viria a documentar, através da chamada «gramática do assentimento», que é clara no seu proceder – não é confusa ou insegura, equívoca ou ambivalente – e que, ao mesmo tempo, também exige um claro e em penhado envolvimento de quem indaga, um obséquio da sua mente e do seu coração, uma experiência de assombro, reconhecimento e obediência. A verdade, portanto, dá-se apenas num encontro histórico e real.

Concretamente, a verdade é uma relação profunda que se estabelece com a pessoa de Jesus, sendo isso que acontece a Newman.



Sobre a oração: «Trata-se do eco de uma pessoa que fala comigo. Ela traz consigo a prova da sua origem divina. A minha natureza sente-a em tudo e através de tudo como uma pessoa. Quando lhe desobedeço, sinto-me aflito, precisamente como me sinto quando agrado ou ofendo um amigo digno de respeito»



Aderir à Revelação divina, para ele, não era uma questão simplesmente intelectual, racional, mas profundamente antropológica, que envolvia a totalidade da pessoa na sua relação com a pessoa de Cristo, mais precisamente, com Cristo sofredor, que morre e ressuscita por nós, que nos promete o seu Espírito – verdadeira alma da história, alimento de todo o nosso pensar e sentir –, o Espírito que reúne e dispõe, na Igreja, todos os pontos de chegada de qualquer busca e fidelidade.

Na busca sincera da verdade, Newman ensinou-nos a alegria do diálogo e a valorização, o apreço pela honestidade intelectual do nosso interlocutor e, ao mesmo tempo, o respeito recíproco frente a qualquer coisa que nos precede e que é maior do que nós. Nunca punha de parte o princípio do diálogo, mesmo com quem não lhe respondia, mesmo com quem o hostilizava.

Tinha dialogado pacientemente – embora de forma arrebatada – com os anglicanos, com os seus amigos Pusey e Keble, antes e depois da conversão. Tinha dialogado com os seus confrades mais obstinadamente intransigentes, como Ward e Faber, com os seus superiores, como Ullathorne e Wiseman, e, por fim, com a sociedade circunstante, nunca lhes faltando ao respeito, mas também sem nunca esquecer o primado da verdade.

A verdade, com efeito, não depende sobretudo do sujeito que indaga, apresentando-se, antes, sob a forma de uma revelação gratuita: é precisamente isso que torna frutífero o encontro entre aqueles que dialogam de verdade.



Newman ensina a reencontrar um pensamento robusto e uma prática cristã aberta e abrangente, dentro da qual a investigação teológica, a interpretação da cultura e o sentimento eclesial sejam sempre acompanhados por uma verdadeira experiência espiritual



E, com o diálogo, Newman introduziu na sua experiência de vida e de busca da verdade o conceito de missão. Para ele, ser missionário – não esqueçamos que em Roma se tinha preparado para o sacerdócio estudando no Colégio Urbaniano da Congregação da Propaganda Fide, destinada a formar os evangelizadores dos povos mais distantes, os missionários – significava não tanto percorrer Inglaterra de lés a lés, como tinham feito os passionistas padre Bàrberi e padre Spencer, mas estabelecer uma relação direta entre mestre e discípulos; significava que o espírito de um se encontrava com o espírito dos outros, que uma boa predisposição os ligava e os obrigava a um confronto benéfico, ensinando-lhes a verdadeira escuta e o respeito.

Há outro aspeto da espiritualidade de Newman a assinalar: o da oração.

A oração, sob todas as suas formas e expressões, sempre vivificou a mente e o coração de Newman, desde a sua infância até ao dia da sua morte. Nutria um amor particular pelas Litanias Lauretanas, sobre as quais escreveu um comentário ardente e teologicamente profundo. Ele próprio escreveu orações, entre as quais a Lead Kindly Light [em português: Luz, terna e suave] fruto da iluminação que tivera na Sicília e que os irmãos do Oratório tinham traduzido para o canto, um canto ao qual Newman nunca se conseguiu unir, por humildade e comoção.

De qualquer modo, a oração, para ele, sempre se fundou na fé num Deus pessoal. No romance Calista tinha colocado estas palavras sobre a oração na boca de um dos seus personagens: «Trata-se do eco de uma pessoa que fala comigo. Ela traz consigo a prova da sua origem divina. A minha natureza sente-a em tudo e através de tudo como uma pessoa. Quando lhe desobedeço, sinto-me aflito, precisamente como me sinto quando agrado ou ofendo um amigo digno de respeito».



A verdadeira «súmula» da vivência especulativa de Newman, que fundamenta com singular coerência e continuidade todo o período da sua longa e intensíssima existência, é "A gramática do assentimento", que hoje, mais do que nunca, apresenta um extraordinário e atraente ideal



No entrelaçamento indissolúvel entre a afirmação de um Deus pessoa, a formação da consciência e o conhecimento do dogma, Newman sempre considerou a oração um dever e um privilégio. Sentia-se profundamente fascinado com a oração de intercessão, por ele definida como «a prerrogativa e o dom dos obedientes e dos santos». Na oração de intercessão, põe em destaque a dignidade divina, a possibilidade de que o pecador se torne amigo e confidente de Deus, capaz de reunir o universo inteiro e de o apresentar ao seu Senhor. Nesta oração, Deus concede-nos o poder fortíssimo de influenciar não só o percurso vital da nossa alma, mas o futuro de toda a história.

A sua longa experiência de oração, de mortificação e de penitência, sempre acompanhada por uma adoração humilde e perseverante, foi o leitmotiv da sua longa viagem: continuaria nele um heroico e incessante combate interior, sempre acompanhado de uma grande liberdade de consciência.

As questões religiosas e filosóficas da sua época ir-se-iam resolvendo progressivamente mediante uma singular capacidade de diálogo com muitas pessoas. O método apologético que seguia tornava-o metódico e preciso. Com a sua capacidade de humildade e de perseverança, tornou-se um modelo de guia espiritual, temperado pelas lutas que enfrentava e pela desconfiança de que, em diversas ocasiões, se sentia rodeado.

Nas preocupações e nos difíceis discernimentos que a sociedade contemporânea nos impõe, Newman ensina-nos, através dos seus escritos e com o seu exemplo, a manter um certo desapego em relação às preocupações materiais da vida, para dar lugar ao crescimento do amor de Deus, para que cada afã, cada atitude de fé e cada movimento interior da oração nasçam e encontrem o seu cumprimento apenas na caridade divina.

Newman ensina a reencontrar um pensamento robusto e uma prática cristã aberta e abrangente, dentro da qual a investigação teológica, a interpretação da cultura e o sentimento eclesial sejam sempre acompanhados por uma verdadeira experiência espiritual.

 

A gramática da fé

Após mais de um século, o pensamento de John Henry Newman começa hoje a manifestar plenamente a sua fecundidade.

Newman detém uma extraordinária atualidade para a cultura, muitas vezes marcada pelo niilismo e por uma radical desconfiança. O ato de fé, adesão à verdade sobrenatural, era um dos maiores problemas da teologia do século XIX. O cristão como que balançava entre as duas correntes principais da sua época: a aprendizagem intuitiva, e por vezes vaga, do Romantismo, e a via racional e dedutiva apoiada na confiança, por vezes exagerada, na ciência.

Newman demonstra que entre fé e razão não há conflito algum, pelo contrário: «Fundamentada numa profunda assimilação espiritual da tradição cristã e da íntima comunicação entre razão e fé, a hermenêutica elaborada por Newman tem uma única referência: a verdade do conhecimento, radicada na evidência original da realidade que se manifesta ao longo de todo o espetro de formas possíveis da experiência e do pensamento».

A verdadeira «súmula» da vivência especulativa de Newman, que fundamenta com singular coerência e continuidade todo o período da sua longa e intensíssima existência, é A gramática do assentimento, que hoje, mais do que nunca, apresenta um extraordinário e atraente ideal.



A «infância espiritual» é fixar um olhar assombrado nas coisas, pronto a procurar, a fazer perguntas, a interrogar a realidade com o desejo, não de lhe impor as próprias teses, mas de conhecer a verdade



O texto foi publicado em 1870, ano do Concílio Vaticano I – em que é formulada a doutrina do ato de fé –, propondo uma abordagem pessoal ao problema que dá testemunho da maturidade do seu pensamento, forjando conceitos adequados e até um vocabulário original.

Perante as teses do niilismo contemporâneo que proclamava – e continua a proclamar – a impossibilidade e, portanto, a inutilidade de qualquer tentativa de identificar o sentido da existência, Newman propõe, pelo contrário, uma investigação paciente, tenaz e aderente à realidade para chegar às raízes a que se deve ligar o itinerário humano, desde a consciência primordial às formas mais elevadas e complexas da intuição de universos e mundos que, por último, se projetam para lá do próprio horizonte do mundo presente.

A interrogação inicial sobre a natureza e a validade do conhecimento de fé conduz assim a um caminho para montante, articulado segundo as estruturas internas da realidade em direção ao fundamento primordial da experiência, em que a existência e o conhecimento se conjugam numa união misteriosa e muito firme. Nisso reside a originalidade deste texto fundamental, que manifesta o método natural do pensamento, referência ao carácter imediato do diálogo com a realidade, convite a reencontrar a simplicidade e o assombro da infância espiritual, origem única de toda a forma de autêntica edificação humana.

Anos mais tarde, um professor anglo-irlandês de Oxford, Clive Staples Lewis, que tinha regressado à fé cristã graças a um colega católico e newmaniano, chamado John Ronald Tolkien, colocou estas palavras na boca de certo personagem de um seu romance: «Houve um tempo em que fazias perguntas porque procuravas respostas, e eras feliz quando as obtinhas: volta a fazê-lo, menino, pergunta mais uma vez».



Fortemente convicto da verdade ensinada pela Igreja, Newman não sofre a modernidade como um destino inevitável, mas interroga-a: é mesmo verdade que o secularismo é o destino de uma sociedade iluminada? É mesmo verdade que o racionalismo é a realização da razão?



A «infância espiritual» é fixar um olhar assombrado nas coisas, pronto a procurar, a fazer perguntas, a interrogar a realidade com o desejo, não de lhe impor as próprias teses, mas de conhecer a verdade.

Newman é um cristão para o qual a fé é adesão à verdade revelada, e por essa verdade está disposto a renunciar a tudo o resto. Contudo, o facto de a fé do cristão de todas as épocas ser a mesma fé dos Apóstolos não significa, em seu entender, que ela não viva no presente. Aqui está a origem do modo peculiar pelo qual Newman vive a relação com o seu tempo. Na Inglaterra da primeira metade do século XIX ele tinha conhecido aquilo que podemos caracterizar como o mundo moderno, tendo visto claramente os seus resultados mais brilhantes e as suas pretensões mais ilusórias. Newman vive numa época em que, aparentemente, as decisões da modernidade, o individualismo, o racionalismo e o secularismo já se tornaram factos irreversíveis que só devem ser aceites ou podem ser rejeitados de forma hesitante.

Se a sua conversão ao catolicismo foi um escândalo, ainda mais escandaloso foi o pensamento por ele elaborado, que não representava uma rejeição em bloco da modernidade, como sucedera naqueles anos com o Sílabo de Pio IX, que Newman não criticou, do qual não se afastou, mas que também não apoiou acriticamente, como fizeram os seus amigos ultramontanos.

Fortemente convicto da verdade ensinada pela Igreja, Newman não sofre a modernidade como um destino inevitável, mas interroga-a: é mesmo verdade que o secularismo é o destino de uma sociedade iluminada? É mesmo verdade que o racionalismo é a realização da razão? É mesmo verdade que o individualismo é a exaltação do indivíduo?

Newman tenta responder, partindo – por assim dizer – das bases, de tal modo que a sua obra se intitula Gramática do assentimento, ou seja, a linguagem fundamental, basilar. Quer estabelecer regras para demonstrar que a fé é razoável. Newman intuiu profeticamente, antes de qualquer outro, o avanço da secularização, e este era para ele causa de grande perturbação. Estabeleceu um princípio que, mais tarde, numerosos teólogos do século XX, desde De Lubac aos últimos pontífices, passando por Barsotti e Bal thasar, viriam a sublinhar depois dele: o normal para o homem é a fé, não a ausência de fé. Hoje vivemos numa situação – que Newman intuiu – em que é tido como um dado adquirido que o homem seja quase naturaliter não-crente. A experiência de toda a tradição, porém, mostra-nos o contrário: o homem torna--se homem frente a Deus.


 

Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 18.10.2019 | Atualizado em 06.10.2023

 

Título: John Henry Newman - Perfil de um buscador da Verdade
Autor: Paolo Gulisano
Editora: Paulinas Editora
Páginas: 172
Preço: 14,50 €
ISBN: 978-989-673-714-6

 

 
 
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Impressão digital
Paisagens
Prémio Árvore da Vida
Vídeos