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Isabel Jonet, figura nacional do ano 2007

Num ano pontuado por inúmeros acontecimentos marcantes, Isabel Jonet foi escolhida pelo Expresso para figura nacional de 2007. Mais do que distinguir o percurso pessoal, a designação assinala o crescimento de uma cultura marcada pela caridade e pelo voluntariado. E revela também, para que não esqueçamos, o drama da fome, pobreza e falta de esperança em que vivem diariamente muitos milhares de portugueses.

Da edição de 29.12.2007 da revista “Única”, retiramos, com a devida vénia, um extracto do artigo sobre esta nomeação.

Isabel Jonet, 47 anos, economista, mãe de cinco filhos, é a presidente da Federação Portuguesa de Bancos Alimentares, e lidera o Banco Alimentar contra a Fome em Lisboa. Por junto, estas estruturas garantem comida a 219 mil pessoas em todo o país. Um trabalho colossal, que nunca está acabado, sobretudo em anos como este, de pico de desemprego, aumento das taxas de juro e do sobrendividamento, surgimento de novos fenómenos de pobreza.

Num país de tradição assistencialista e acomodada, que espera que o Estado faça e desespera com o que o Estado faz, Isabel não se acomodou. Faz há 14 anos, com o entusiasmo do primeiro dia, o que em Portugal ainda se pratica pouco: voluntariado, caridade. No seu dicionário, caridade vale mais que solidariedade. “Caridade é amor, solidariedade é serviço.” É também a sua “opção de vida”, para “mudar o mundo”.

Tinha 33 anos quando, em 1993, mudou de vida. Regressada de Bruxelas, decidiu não procurar trabalho, para se dedicar à família. O trabalho encontrou-a. Cada um é para o que nasce – ou, como ela diz, “as pessoas desassossegadas não têm vidas sossegadas”. Tinha tempo livre e voluntariou-se no Banco Alimentar (BA). “Ofereci-me duas tardes por semana, ao fim de dois meses trabalhava oito horas por dia.” Hoje trabalha bastante mais que isso, ainda como voluntária.

Levou o saber de economista, que aprendeu na universidade, a sensibilidade de gestora, que é a sua queda natural, e o pragmatismo de quem é talhado para resolver problemas. Sob a sua liderança, o BA organizou-se, profissionalizou-se e cresceu. O lema de Isabel podia ser “no aproveitar é que está o ganho”. Oitenta e nove por cento do que o BA distribui seria destruído se a instituição não existisse. Peras, maçãs, tomate ou batatas, que os produtores não escoam ou que as vendedoras já não querem nas bancas. Leite, iogurtes ou enlatados que os supermercados retiram das prateleiras. “É um mundo ao contrário – vive com o que os outros não querem.”

Uma logística que se foi afinando e sofisticando ao longo de anos permite que esses produtos cheguem a quem precisa, disponibilizados por 13 Bancos Alimentares e distribuídos por 312 instituições (há 14 anos eram 30). Do BA de Lisboa dependem as refeições de 65 mil pessoas – foram 8.200 toneladas de comida em 2006, o que faz desta estrutura a maior entre 202 bancos alimentares europeus, e um caso de estudo. a ideia das campanhas de recolha de alimentos, como a que aconteceu em centenas de supermercados a 1 e 2 de Dezembro, já foi copiada por outros países.

 

Necessidade e engenho

Diz-se que a necessidade aguça o engenho. Para quem tem a necessidade como área de negócio, a imaginação não é um luxo, é uma ferramenta. Por isso, Isabel Jonet e a sua equipa todos os anos põem em prática ideias novas. O desassossego é uma característica sua, mas também é a imposição de um trabalho que nunca acaba. “Sou desinquieta porque não me posso dar ao luxo de assistir impávida a um mundo que tem recursos limitados e nada fazer quando estes são esbanjados. Recuperar alimentos é um desafio diário.”

Enquanto vão abrindo mais bancos alimentares, multiplicam-se outras iniciativas, como a Entreajuda (2005), ou o Banco de Bens Doados, aberto em Outubro. Esta iniciativa permite levar aos mais pobres coisas de que as empresas ou as pessoas não precisam ou não conseguem vender – computadores ultrapassados por modelos topo de gama, mobiliário em bom estrado que não resistiu ao novo design do escritório, roupa de cama ou de banho que os hotéis renovaram…

A ideia é sempre a mesma: aproveitar. Sejam alimentos, coisas ou talentos. Para estes últimos, a Entreajuda tem projectos de parceria com empresas para levar «know-how» e competências às organizações de solidariedade. A boa-vontade e a carolice não chegam. Isabel apercebeu-se de que estas instituições se debatem com muitas carências e problemas de gestão. Dotá-las da autonomia necessária para melhor ajudarem os seus beneficiários é o objectivo do projecto, que conta com a experiência e sabedoria de voluntários em áreas cirúrgicas para estas instituições. Podem ser juristas, economistas, informáticos, professores, contabilistas… “Podemos acrescentar valor e mudar a sociedade, mas só com estruturas e boas-vontades organizadas.” Num país com mais de quatro mil organizações de solidariedade social, a prioridade é maximizar a eficiência de instituições que têm pouca capacidade para se apetrecharem de quadros, aproveitando quem tem vontade de ajudar. Há dois anos, quando surgiu, a Entreajuda tinha em mãos 64 instituições. Hoje são quase 500.

 

Os voluntários

São protagonistas anónimos os voluntários que fazem a maior rede de solidariedade social do país, no Banco Alimentar ou na Entreajuda. Nas campanhas de recolha de alimentos ultrapassam os 17 mil. O lançamento da Bolsa do Voluntariado e do programa de voluntariado associado a empresas, em 2006, já permitiu constituir uma rede com 5.900 pessoas disponíveis para colaborar com instituições de solidariedade. “O voluntariado não se pede, dá-se”, frisa Isabel Jonet, “porque tem uma componente afectiva, de adesão a um projecto.”

 

Mudar o mundo sem brilhar

As prioridades estão bem definidas: primeiro, o Banco Alimentar. Depois, iniciativas para arrancar os pobres à pobreza. “Queremos é criar condições para que os pobres não nasçam e morram pobres.” Para isso pode ser preciso, por exemplo, um batalhão de dentistas. Prece estranho? Pense: daria emprego a alguém que, para além de ter poucas habilitações, lhe aparecesse com os dentes todos podres? A Entreajuda também achou que não e, na sua Área de Saúde Solidária, lançou um programa ao qual aderiram mais de 500 dentistas: cada um aceitou tratar dos dentes a um menino pobre, durante quatro anos. Mas, desta vez, não chegaram a boa-vontade nem a organização – a lei meteu-se na engrenagem. Ao contrário de quem dá dinheiro ou bens, quem presta serviços não pode deduzir esse donativo no IRS ou no IRC. “A lei, neste caso, atrapalha. E para contornar o problema, a solução assaria por malabarismos pouco transparentes.”

Só o Estado pode fazer a alteração fiscal, “que é de pequena monta”, e isto é tudo quanto Isabel Jonet espera dos políticos: que não atrapalhem. Aliás, por uma questão de “autonomia e respeitabilidade”, no BA, político não entra. Até Cavaco Silva, quando visitou as instalações, o fez como cidadão. “Nunca ninguém se aproveitou de nós. Nem políticos, nem missões religiosas, nada. Não é útil nem necessário neste projecto. Somos como a água – transparente, inodora, incolor.”

Curiosa aspiração: mudar o mundo permanecendo transparente. Isabel interiorizou a fábula da cobra que queria comer o pirilampo só por causa do seu brilho. “Queremos mudar o mundo brilhando o menos possível. O brilho é muitas vezes prejudicial.” Leva a regra a sério. Foi um problema convencê-la a deixar-se fotografar. Isabel só dá a cara nas alturas cruciais das campanhas de recolha de alimentos. “Não estou aqui para ganhar protagonismo. Têm mesmo de me tirar fotografias?”

 

Artigo relacionado:

Entrevista a Isabel Jonet aquando do ciclo de conferências "Eis o Homem".

 

Saiba mais:

Federação Portuguesa dos Bancos Alimentar contra a Fome
Entreajuda
Banco de Bens Doados
Bolsa do Voluntariado

Filipe Costa Santos | Isabel Vicente

in Expresso, 29.12.2007

Publicado em 03.01.2008

 

 

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Isabel Jonet









































Oferta de alimentos






























































Trabalho no armazém de recolha









































































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