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Entrevista

D. Manuel Clemente analisa o momento social do país

Chega atrasado ao paço episcopal, de gabardina e guarda-chuva, O tempo, na Invicta, está deprimido, londrino, com nevoeiro a condizer, mas D. Manuel Clemente, 60 anos, natural de Torres Vedras, nunca perde a boa disposição. Durante hora e meia, numa sala onde repousam os quadros retratando os seus antecessores, o bispo escolhido para a diocese do Porto pelo Papa Bento XVI há quase dois anos, falará animado, por vezes com ironia gélida, de Portugal e dos portugueses - tema do seu livro editado recentemente - mas também do mundo, sempre sem perder de vista as doutrinas e os valores da Igreja. Não foge aos temas nem se acomoda na não interferência do religioso no político. Frontal, embora elegante e diplomático, o antigo bispo auxiliar de Lisboa não peca por omissão. Reclama medidas mais «humanistas» e considera perigoso seguir «liberalismos que desarmem a administração pública».

No seu livro, escreve que Deus continua à procura do seu lugar na cidade dos homens. O que pretende dizer?
Deus, enquanto religião, não é uma coisa acabada. O tempo, a história, a evolução das sociedades, trazem sempre novos contornos e possibilidades a essa realidade a que chamamos Deus e à religião em geral. O próprio homem também se vai descobrindo. Mas hoje, por andarmos tão ocupados e distraídos com questões imediatas, temos pouco vagar para indagações e procuras.

Isso cria dificuldades acrescidas à Igreja?
Hoje, na vida da Igreja, há uma realidade ainda muito ligada à religiosidade popular, aos locais, aos santos, aos usos e costumes, ao mesmo tempo que existem movimentos e realidades novas, transversais, perspectivas mais próprias de ver o Evangelho. Por isso, a resposta da Igreja só pode ser a procura activa e permanente de integração dessas realidades. Não é fácil...

No território da sua diocese, que sinais lhe chegam da crise?
Chegam-me situações de grande preocupação e isso acentuou-se nos últimos tempos. Por todo o lado se sente o desemprego e, às vezes, quando existe emprego, é distante e sazonal. Depois, há os empréstimos que desestruturam famílias, falta dinheiro para o resto. E tudo isto acaba à porta das nossas 477 paróquias.

A contestação social é reflexo, de facto, de preocupações reais ou há orquestração por parte das oposições e dos sindicatos?
Sobre a maior ou menor orquestração, não tenho elementos para me pronunciar. Uma coisa é certa: uma adesão tão prolongada, com tanta gente, tem de ter alguma razão. Não é possível persistir numa exigência e reivindicação com tanta gente e durante tanto tempo se não houver razões para isso. As pessoas não protestam por protestar.

O direito à indignação é respeitado, mas a verdade é que não tem consequências...
A repetição não ajuda. Há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo e a própria dinâmica dos «media» faz com que umas indignações sejam substituídas por outras. E isso enfraquece.

No conflito entre professores e ministra da Educação ainda haverá espaço para o bom senso?
Tem de haver. As partes envolvidas têm de pensar no bem dos alunos. É para isso que existe a escola.

Em que medida tudo isto não é consequência da desvalorização do papel do professor?
Eles queixam-se disso. E uma coisa é factual: o papel que o professor tinha como transmissor de uma cultura e garantia dos alunos está esbatido. Há um esvaziamento do seu papel social. Os professores devem ser constantemente estimulados pelo Governo e pela sociedade. E isso é uma batalha cultural de longo prazo.

Promove-se uma Educação para estatísticas ou para saberes?
É uma grande questão. Por um lado, a sociedade tem de ser rentável e os desempenhos devem ser averiguados para depois serem premiados. Mas os saberes são uma coisa de longo prazo, não podem ser reduzidos à escolaridade oficial. O saber envolve toda a existência. Hoje, em matéria de ensino, nem sequer podemos esquecer as pessoas com 60 anos, que não podem ser tratadas como uma coisa residual. A escola é apenas uma pré-escola de algo que dura a vida inteira. E mesmo a última etapa da existência tem de ser valorizada e encarada como uma fase nova de aprendizagem.

Estamos a construir um Portugal tecnocrático?
É sempre um risco, sobretudo com a desvalorização das humanidades. O fazer não é apenas técnica, é também realização e valorização da pessoa. O que se faz é importante, mas não é indiferente quem faz.

Como estão as relações da Igreja com o Governo? Notam-se conflitos, o atraso na regulamentação da Concordata é um deles...
A Santa Sé celebrou com o Estado, em 2004, uma nova Concordata. Houve algumas alterações na maneira como o Estado e a Igreja devem colaborar em diferentes sectores, como é o caso, por exemplo, do funcionamento das capelanias hospitalares, prisionais e outras, ou da forma como se garante a formação moral e religiosa católica aos filhos dos pais que o desejem. Já lá vão quatro anos e era bom que houvesse mais celeridade na aplicação destas coisas.

Na área de intervenção social directa da Igreja não há queixas, presumo. O Governo anunciou 100 milhões de euros para as IPSS e, destas, quase metade pertencem à Igreja Católica...
O Governo não administra dinheiro seu, administra dinheiro da sociedade. Por isso, deve entregá-lo a quem possa fazer melhor aproveitamento dele. Mas nunca é suficiente. Há imensas instituições que continuam a viver no limite das suas possibilidades e a depender de muitas boas vontades.

Quando chegou à diocese do Porto disse que se viviam tempos rarefeitos, concentrados no imediato e no imediatamente gratificante. Com a crise dos mercados financeiros, acha que essa realidade ficou mais exposta?
Pelo menos, é curioso verificar que se tem feito um apelo aos valores. Afinal, os valores contam! E não são os financeiros! Se a crise servir para isto, já serviu para alguma coisa. Havia indícios de que este mundo financeiro era pouco realista. Faziam-se castelos no ar e a verdade é que a alguém aproveitavam.

No caso português, o sistema financeiro deu exemplos quase pornográficos a esse respeito, se me permite a expressão...
Tive algumas surpresas...

Choca-o que o Estado socorra esse sistema?
Se o Estado o fizer para equilibrar a vida económica do País e socorrer quem tinha os seus depósitos nos bancos, parece-me bem. Mas aqueles que participaram em fraudes ou tiveram comportamentos menos correctos devem ser responsabilizados. Houve quem fez sucesso muito rapidamente, andou na crista da onda e no «prime-time» e se valeu de tudo para lá chegar.

Estamos numa fase de refundação do capitalismo?
O Estado, como promotor do bem comum, tem uma responsabilidade: evitar que as pessoas sejam excluídas do funcionamento dos mercados e dos seus lucros. O mercado não pode funcionar apenas em benefício de uma pequena parte da humanidade. Como católico, há pilares da doutrina social da Igreja dos quais não abro mão. A base de uma sociedade é a dignidade da pessoa humana e essa nunca é um valor relativizável. A saúde de uma sociedade vê-se na verdadeira promoção da pessoa humana. Se isto é dispensável, se conta pouco, então a economia perdeu a sua dimensão humanista.

Foi por isso que alertou, recentemente, para a perda de alguns direitos e criticou aspectos da nova legislação laboral?
E perigoso perder a noção da nossa escala local, do que se passa ao nosso lado. Sabemos que o global, o grande investimento e o lucro que se pode atingir transferindo as coisas daqui para acolá podem gerar distorções. Mas não podemos perder o princípio da subsidiariedade e o que os direitos representam à escala familiar, local e regional para o conjunto da sociedade. A pressão social
serve, por vezes, para que o Estado não se esqueça dos seus deveres, O Estado é o que a sociedade deixa ser.

O Estado também foi bastante diabolizado, sobretudo por quem agora precisa dele...
Espero que alguma coisa se aprenda com a experiência. A reivindicação do papel do Estado é muito importante. Não vamos, com certeza, voltar ao Estado totalitário da primeira metade do século XX, de esquerda ou de direita, mas também não devemos caminhar para liberalismos que desarmam a administração pública. É bom que existam estes debates sobre o que vamos fazer agora, pensar se afinal vale tudo ou não vale. A sociedade será o que nós quisermos. Se não fizermos nada, se as sociedades não forem convertidas, continuarão a repetir os mesmos erros.

Assusta-o que se fale num regresso ou reabilitação de Marx?
O marxismo foi um fenómeno interessante do século XIX, teve a sua projecção. Mas nós estamos no século XXI. De resto, as suas aplicações políticas no século XX não deram resultado.

Emocionou-se com a eleição de Obama?
Emocionado talvez seja forte de mais, mas gostei. Não só pelo que representou para a sociedade norte-americana, mas pela vontade que ela demonstrou de se refazer em termos políticos, interna e externamente. Além disso, é a chegada ao poder de uma pessoa que vem de grupos que eram relativamente secundarizados. O facto de o novo Presidente ter essas origens é uma manifestação de saúde social importante.

Está optimista em relação a Obama ou os entusiasmos têm de ser temperados?
Sim, devem ser temperados! No mundo em que vivemos, com tantas coisas interligadas, a capacidade de uma só pessoa de resolver problemáticas gerais é modesta. Mas vamos ver, vamos ver...

Como avalia a herança de Bush?
Se calhar, o melhor foi isto mesmo que se viu nas eleições, ter «contribuído» para que a sociedade americana se reencontrasse. A sua herança é muito problemática. Há dias, veio dizer que o seu maior erro foi ter acreditado que havia armas de destruição maciça no Iraque, mas a verdade é que ele foi bastante advertido sobre isso, na altura. Até pela Igreja...

Portugal também não se portou bem?
Mas eles têm mais obrigações, sabem sempre tudo. Os EUA não contribuíram para que o mundo ficasse melhor.

Guantánamo é uma imagem de marca...
E Guantánamo é o que nós conhecemos. Agora imagine outros sítios que estão arredados das luzes mediáticas.

Foi também feita a diabolização do Islão...
O Islão crente em Deus e que ajuda o próximo não pode estar em questão. O Papa João Paulo II, a seguir aos atentados do 11 de Setembro, não deixou de fazer uma leitura muito valorativa do Islão. O antídoto para as perversões que alguma religião possa ter não é menos religião, é mais religião.

Revê-se no que é hoje a União Europeia?
Não me revejo, comprometo-me. O projecto nasceu muito bem, a seguir à II Guerra Mundial, e hoje a Europa está cheia de mundo, há gente de todo o lado. O facto de haver tanto Islão na Europa, por exemplo, é o contributo importante para um reencontro. É preciso, por outro lado, perceber que muitos daqueles que procuram a Europa fazem-no porque não encontram nos seus lugares de origem o apoio sólido que a Europa deveria dar ao desenvolvimento desses territórios.

 

A perspectiva de um percurso autárquico

É verdade que teve a tentação de seguir um percurso político, antes de se decidir pela vida religiosa?
Sim, autárquico! Sempre fui muito bairrista, gostava de estar a par das notícias locais, de fazer algo pela terra. Nunca estive envolvido nas políticas, mas foi uma tendência fortíssima na época, se calhar tinha chegado a candidato [risos]...

Tinha discussões políticas acesas?
Nos anos 60, éramos todos muito politizados, como imagina!

Teria dado um bom político?
Pelo menos, tinha vontade!

É regionalista?
Sou. Penso que ao todo se chega pela parte.

É um tema que deveria voltar à agenda em ano eleitoral?
Se os períodos eleitorais não servem para falar dos assuntos que preocupam as pessoas e
ouvir as opiniões de quem pensa a sociedade, a economia, etc., servem para quê? Não é preciso esperar mais tempo para discutir um tema que está em cima da mesa.

Esteve no mesmo lar universitário que José Magalhães, do PS, e Luís Sá, falecido dirigente do PCP. Como recorda esses tempos?
Foi um período de muito debate e a Academia de Lisboa era, talvez, dos poucos sítios onde isso acontecia, à época. Eram 150 alunos de diversas faculdades. E, entre o final dos anos 60 e início da década de 70, foi um espaço onde tudo se debatia. Havia opiniões muito diferentes, mas era um ambiente muito formativo. Uma das pessoas que mais nos ajudou a pensar foi o professor Adriano Moreira.

 

O caso Renascença e os meios de comunicação social

A Igreja considerou o diploma do PS sobre o pluralismo e a concentração dos meios de comunicação social uma perseguição à Rádio Renascença. Em que pé estamos?
O pluralismo deve ser garantido, mas outra coisa é o Estado sobrepor-se à escolha dos cidadãos e penalizar a Renascença por causa das suas audiências. Quero crer que essa parte do diploma foi um lapso que estará a ser resolvido, em sede de especialidade.

A Igreja ainda sonha com um canal de televisão?
Só se for no cabo, através de algo mais temático. Um canal generalista está posto de lado. mais importante é ter uma presença de vários cristãos, como cidadãos, nos vários meios de comunicação social.

Sendo o bispo com a pasta da comunicação social, nota algum tipo de constrangimento na área dos «media»?
Sinceramente, não. Creio que a liberdade, a troca de ideias, está garantida. Preocupa-me, isso sim, a dramatização da informação. A realidade só passa enquanto drama. Por vezes, não sabemos qual é a diferença entre um telejornal e uma telenovela com capítulos para o dia seguinte. É preciso cuidado: a realidade não corre assim tão depressa como as leis cénicas exigem. O excesso de dramatização pode fazer com que as pessoas pensem que tudo passa. Abstraem-se e não se sentem implicadas.

 

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Entrevista conduzida por Miguel Carvalho

in Visão, 11.12.2008

16.12.2008

 

 

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D. Manuel Clemente
Foto: Lucília Monteiro






























































































































































































































































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