Nada mais estulto do que considerar o Papa Francisco («Franciscus», de ora em diante, como o próprio ordenou que fosse posto sobre a campa em que repousam os seus restos mortais) como um Homem de pensamento débil, fácil, quiçá improfundo. A haver algumas destas qualidades, estarão presentes não no próprio, mas nos que o leem.
Exemplo da sua extraordinária profundidade de pensamento é o pedaço de texto sobre que se irá brevemente ponderar, retirado de Evangelii gaudium, § 222: «Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O “tempo”, considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço.» (versão constante da edição Paulus Editora, sem identificação de quem traduziu, pp. 157-158). O texto continua, no § 223, explicitando as consequências de tal princípio. Dedicamo-nos à compreensão do § 222, eventualmente recorrendo ao § 223 sempre que se justifique.
Franciscus começa por trazer a terreiro teológico – intelectual e pastoral – a referência a uma tensão bipolar entre duas categorias fundamentais (literalmente), a «plenitude» e o «limite». Há, assim, quatro termos sobre que tem de se refletir, quer sobre cada um deles quer sobre tais em relação: «tensão», «bipolar», «plenitude» e «limite».
Um dos termos de que mais se tem abusado culturalmente, afogando-o em equivocidade e, assim, em insignificância, é o termo «limite». Dificilmente se encontra expressão mais ignara do que “ultrapassar os limites”, pois precisamente, o limite é isso mesmo que Franciscus põe na afirmação aqui em apreço: metaforicamente, um «muro». Tal muro representa um absoluto incontornável, invencível, que não convém confundir com, por exemplo, «obstáculo», que significa uma dificuldade – maior ou menor –, mas que é passível de ser contornada, escalada, ultrapassada, vencida.
O limite é isso que baliza ontologicamente de modo absoluto a possibilidade de algo, logo, também do ser humano: por exemplo, o ser humano pode vencer uma distância de mil quilómetros marchando a pé, mas não pode realizar tal em dois segundos; neste caso, a velocidade possível em tais condições constitui um limite.
Ora, a chamada de atenção para a polaridade ontológica necessária do limite feita por Franciscus neste §222 marca uma rutura com a inanidade do ilusionismo da “superação dos limites”. O Papa realiza tal sem ferir o absoluto do possível de ser do mundo e dos seres humanos, a que chama «utopia». Deste modo e com um realismo inaudito, Franciscus mostra que, ao ser humano – e ao mundo com ele –, está aberto um campo ontológico absoluto de possibilidades, não se tratando, todavia, de um campo anárquico, quiçá caótico: há infinitas possibilidades de possível ontologia para o Homem e o mundo, mas a tais possibilidades correspondem limites necessários, quer dizer, que não podem não ser.
Em linguagem mais comum: a abertura para o futuro, como absoluto de possibilidades ontológicas, é real, mas é balizada por limites, também eles absolutos.
Em «tensão» «bipolar» com tal sentido de «limite», encontra-se a «plenitude». Há que intuir que a plenitude é, antes de mais, uma possibilidade, pelo que respeita, no que é, o que ficou estabelecido acerca do «limite». Isto significa que há um absoluto de possibilidade de plenitude, mas que tal absoluto não é sem-limites necessários.
O próprio Papa exemplifica um de tais limites: «a vontade de possuir tudo». Todavia, não se terá Franciscus aqui equivocado? Então, uma atenta observação não mostra que, de facto, as pessoas ‘têm’ «a vontade de possuir tudo»? No entanto, tal não é logicamente possível, embora possa haver confusão a nível psicológico entre «vontade» e «desejo». O desejo oscila entre uma total passividade – é totalmente recebido pelo sujeito, deixando este como pura passividade recetora – e uma passividade parcial, pois, ao modo platónico, pode pensar-se o desejo como a matriz motora dos entes, que, por serem incompletos, ‘desejam’ a completude possível (é precisamente este o ambiente metafísico em que o parágrafo em estudo se insere), operando, por sua vontade, no sentido da realização de tal possível plenitude (Banquete, «discurso de Sócrates»).
Todavia, quer num caso quer no outro, há sempre manifesta uma dimensão de passividade no desejo: quando «desejo» sou movido por algo que me transcende, o ‘motor’ do desejo é heterónomo, nunca autónomo; tal é a razão pela qual, podendo, dentro de certos limites, controlar o desejo, não é possível escapar-se-lhe (eis um limite bem real).
Ora, a vontade não é ‘algo’ que se possua ou cuja motricidade possa ser encontrada em transcendência ao sujeito. A vontade é sempre um ato. Nunca é da ordem do passional. A vontade é o ato em que se inicia o movimento para a realização de algo – de um desejo, por definição.
A vontade, a haver, é sempre da ordem do imanente ao sujeito e deste indistinguível. Aliás, sem vontade, sem atos de vontade, o sujeito não passaria de uma entidade totalmente passional; o que é pensável, mas altamente indesejável.
Então, se é possível desejar qualquer forma de plenitude – por exemplo, de tipo divino (‘querer ser Deus na vez de Deus’, desejo diabólico por excelência, e paradigmático) –, não é possível querer tal, pois não se pode «querer» o que não é possível. Para que fique claro: é possível desejar o impossível, mas não é possível querer o impossível, pois nenhum acto pode realizar tal.
A «utopia» de que Franciscus fala neste § não deve ser confundida com qualquer forma de impossibilidade, mas com, precisamente, a plenitude possível, que é absoluto de possibilidade de realização do desejo humano, apropriadamente balizado pelo que constitui o limite do humano. Esta limitação, lembre-se, é ontológica, não é ética, política, psicológica, etc., sendo, todavia, antropológica, onto-antropológica, pois qualquer eventual metamorfose que crie algo que desrespeite os limites do humano, cria algo de não-humano. Não se trata de ‘ultrapassar’ quaisquer limites, mas de criar algo de diverso do humano.
Está-se, assim, perante uma bipolaridade da realidade – mormente da humana – ontológica como possível, entre «plenitude» e «limite». Estes dois polos estão em «tensão». Esta tensão não significa algo de violento – embora o possa ser, não o é necessariamente –, mas a necessária «relação» entre dois princípios de possibilidade ontológica. Estes princípios são isso que faz que a possibilidade de realização, por um lado, não seja relativa a mais nada que a tais princípios, por outro, que não possa ser realmente caótica.
Não há limite para o puro horizonte de possibilidade que não seja a plenitude própria (apropriada a cada ente em movimento, em diferenciação, em realização de possibilidade de plenitude); o limite que há diz respeito à adequação de meios a fins próprios: se são mil quilómetros os possíveis para andar a pé, não são só novecentos, mas também, não são mil e um (a morte é um limite à possível plenitude humana no espaço e no tempo, mas apenas aí). Se a possível plenitude são os mil quilómetros, então são ‘mesmo’ os mil quilómetros, não outra ‘coisa qualquer’.
Todavia, se não há outro limite de plenitude senão este mesmo, já quanto ao modo de o realizar, há limites. Por exemplo, o tempo e a velocidade na relação com tal espaço. Este frustre exemplo serve para que se perceba que, em relação com o absoluto de possibilidade de plenitude – a «utopia» –, há limites, limites que constituem as condições de realização de tal mesmo absoluto de possibilidade, sendo, por tal, positivos.
Estes limites são ontologicamente positivos, pois são isso que permite que a diferenciação que constitui o movimento em realização de uma possível plenitude não se transforme em algo de caótico. São, assim, princípios ontológicos de possibilidade de movimento próprio em sentido de realização de plenitude possível.
O limite de que Franciscus aqui fala é algo de positivo, pois é o que torna distinto ontologicamente cada ente dos demais, assim impedindo a possibilidade do caos.
Não só a plenitude é um bem possível como o limite, na sua concretização, é um bem sempre real.
Muito mais haverá a refletir sobre este § do pensamento de Franciscus, mas este apontamento manifesta claramente a grandeza implícita em suas explícitas palavras.
A continuar.