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Francisco, da Misericórdia

O grande adversário – inimigo implica querer a morte de alguém – da guerra, Francisco, o Papa, o homem que sempre apelou evangelicamente a que não se tenha medo, mostrou-se, neste dia da Páscoa do Senhor do ano da graça de 2025, como um soldado sentinela que não abandona o seu posto, os seus camaradas, neste caso e por vontade própria, todo o humano mundo: «todos, todos, todos».

Enternecedoramente, o sentinela Francisco lançou, para lá da sua benévola bênção, as suas últimas palavras de alerta, ao modo de exemplar e minuciosa esperança, ao povo de que, de modo amoroso e universal, cuidava.

Sem a habitual vaidade de vã erudição – que também a há não vã – Francisco, o Papa, pensava e vivia em modo ontológico: era sempre o sentido do absoluto do ser que fundava a sua palavra e o seu gesto: assim, podia afirmar substantivamente do amor de Deus que «Aos seus olhos, todas as vidas são preciosas!». Todavia, ‘todas, todas, todas’: não apenas as que um eu qualquer assim considere ou uma lei qualquer assim positive, qual extensão universal da validade das ‘leis’ de Nuremberga.

Cada vida humana é um absoluto ontológico «aos olhos de Deus»; então, por que razão não aos nossos olhos? Para lá de todo o lixo ideológico variegado, que, em suprema hipocrisia, ergue barreiras ontológicas – de possibilidade de ser –, Francisco, o Papa, expressa indubitavelmente, indelevelmente, que o absoluto ontológico do bem possível se estende não apenas a quem eu e a minha camarilha consideramos como verdadeiramente humano, mas que tal preciosidade do ser implica «tanto a […] criança no ventre da mãe, como a […] idoso ou a […] doente, considerados como pessoas a descartar num cada vez maior número de países».



A justiça de que fala Francisco, o Papa, é essa que é subsumida pela misericórdia; sem esta, aquela não existe. Todavia, para que a paz sucessiva à guerra seja possível, é necessário que a humana misericórdia – participante imperfeita da divina – seja universal. E quando é tal?



Ecologicamente – e a ecologia é realidade ontológica ou é mera farsa burguesa de quem nunca pisou lama ou bebeu água diretamente das nuvens –, ou o bem possível é possibilidade para todos ou cai-se em regime de parasitismo, infelizmente isso que permeia a história da humanidade: é parasitismo o que se faz com o abuso do uso da natureza, mas também com a construção da nossa felicidadezinha mundana à custa da infelicidade mundana dos outros.

A criação «não foi feita para a morte, mas para a vida»; assim, a «nossa existência», para a qual a Páscoa significa, para lá de todo o efémero – ainda que literalmente excruciante – sofrimento, «esperança», vida, paradigmatizados, como expectativa e como realidade, na ressurreição de Cristo: «Cristo ressuscitou».

O terrível drama final, possivelmente em final tragédia de nada absoluto, que Platão põe como única possibilidade de teleologia – de fim último – para a humana vida, como dito pelo amado Mestre Sócrates, entre o absoluto do nada e a metamorfose da vida em outra vida – outro absoluto, convém não esquecer –, recebe, com a metamorfose/ressurreição de Cristo a sua única resposta positiva possível: não há nada, mas Vida.

E é este o sentido grandioso da misericórdia divina, que não é coisa reativa – a noção de um ‘deus’ reativo é sumamente néscia, feita à imagem e semelhança de quem a criou –, antes define o que é ontologicamente a ação de Deus como absoluto grátis e grácil de doação de possibilidade de bem.



A misericórdia não é reação ao pecado, é pura ação de Deus, mesmo quando tem em conta a necessária metamorfose do pecador. Ora, é este sentido profundíssimo da relação misericordiosa de Deus com as criaturas que permite a Francisco, o Papa, pensar e agir do modo como podemos rememorar



A misericórdia de Deus manifesta-se, na sua absoluta grandeza ontológica, no ato em que apenas de si próprio retira o absoluto de ato do criado. É a diferença entre o absoluto do ‘nada’ da criatura e o seu relativo tudo – mas, em si próprio, no que é, absoluto e irredutível – que define o que é a misericórdia de Deus em sentido ontológico.

A misericórdia não é reação ao pecado, é pura ação de Deus, mesmo quando tem em conta a necessária metamorfose do pecador.

Ora, é este sentido profundíssimo da relação misericordiosa de Deus com as criaturas que permite a Francisco, o Papa, pensar e agir do modo como podemos rememorar.

Que é isso da «paz» sem misericórdia? Paz justa? Mas tal nunca poderá acontecer, pois a mera ocorrência do ato de guerra introduz no mundo algo que nunca poderá ser ‘justiciado’ ou «justificado»; como, exatamente? Devolvendo a vida aos assassinados? Magicamente, voltando atrás, não no tempo, mas nos atos? Des-matar? Des-destruir? Quem, com o mínimo de inteligência, pode acreditar em tais imbecilidades, por mais beatíficas que pareçam ser?

A justiça de que fala Francisco, o Papa, é essa que é subsumida pela misericórdia; sem esta, aquela não existe. Todavia, para que a paz sucessiva à guerra seja possível, é necessário que a humana misericórdia – participante imperfeita da divina – seja universal. E quando é tal? Francisco, o Papa, tinha fé em que tal seja possível. Esperemos que tenha razão.

Para a concretização do desarmamento, exige-se um tipo de ação semelhante ao que se percebeu ser necessário para a instauração da paz pela via da misericórdia: tem de haver universalidade de tal ação, sem o que, diabolicamente, esse que não se desarma facilmente obtém a escravização ou morte do que se desarmou. De nada serve invocar posições como as que advogam unilateralidade, pois apenas servem para dar o cordeiro a matar aos carniceiros, assim satisfeitos e fortalecidos para continuar em sua senda de morte e escravização.


Desde que Deus criou, não há trevas, por mais escura que seja a ‘noite’: na criação, no seu mais profundo – como Agostinho (e o mítico Job) descobriu –, está presente a luz da misericórdia criadora de Deus



Se há movimento humano complexo que é antimágico, tal é o cristianismo, que vive da ação real, concreta, histórica de um Homem de carne – que se acredita ser de imediata origem divina –, o que implica que tenha de agir materialmente, mediacionalmente, para poder ‘fazer coisas’. A vida de Cristo é, não um espetáculo de magia de casino religioso, mas um complexo percurso de labor, de obras, de dores, penas, sofrimento, mas também de alegrias, de prazer de ser perfeito, como é possibilidade humana e dever divino.

Perfeito, mesmo na morte. Perfeito mesmo na ressurreição, em que se assume as marcas vitais dos meios de morte: vida nova que não renega a antiga, mas a assume, a metamorfoseia sem a negar, assumindo, segundo a palavra de Cristo, o próprio Cristo isso que constitui a sua recompensa. Recompensa que é ontológica: então, compreende-se bem o sentido das marcas de morte como instrumentos vitais, ainda, pois tudo é vida e não há trevas, pois, como diz Francisco, o Papa, relembrando um princípio ontológico fundamental: «A luz venceu as trevas».

Melhor, a luz não vence as trevas, como se estas existissem; antes as impede, desde sempre.

Desde que Deus criou, não há trevas, por mais escura que seja a ‘noite’: na criação, no seu mais profundo – como Agostinho (e o mítico Job) descobriu –, está presente a luz da misericórdia criadora de Deus.

Francisco, o Papa, foi e é, como realidade espiritual presente entre nós pelo que nos legou, o grande profeta contemporâneo da Misericórdia.

Esperemos que a sua esperança, ainda tão bem manifestada e fundamentada nesta Páscoa de ’25, se mostre profética. Todavia, se a misericórdia de Deus está criaturalmente em todos, todos, todos, a misericórdia segundo o tempo, sendo dom de Deus – mesmo quando é posta em nossas mãos – não é mágica e quem a não quiser, não a terá: eis o diabo, em pessoa, em pessoas.

O mundo, misericordioso incoativamente no ato criador, pode rejeitar toda a misericórdia, num ato de guerra universal. Terá, assim, a sua recompensa.

Esperemos, com Francisco, o Papa, que tal não seja a escolha ‘do mundo’, quer dizer, de cada um de nós.

Viva-se, então, uma «esperança responsabilizadora», pois, o que se viver será a ‘nossa recompensa’.

Bem hajas, Francisco, o Papa.

Bem-haja, Deus, por nos ter dado, em misericórdia, Francisco, o Papa.


 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: softdelusion/Bigstock.com
Publicado em 22.04.2025

 

 
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