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Leitura: “'Fioretti' de São Francisco e dos seus frades”

«Num ano incerto do século XIV, entre 1322 e 1396, um frade franciscano de nome igualmente incerto, talvez um tal frei João de Marignoli de São Lourenço, dito de Florença, traduziu do latim, e possivelmente adaptou, um texto que, nessa sua versão toscana, viria a correr mundo com o nome de “Fioretti”», que, por sua vez, se baseou nos escritos denominados “Actus Beati Francisci et sociorum ejus”, compilação de acontecimentos da vida de S. Francisco e de alguns dos seus primitivos companheiros.

É esta a génese do livro “'Fioretti' de São Francisco e dos seus frades”, recentemente reeditado pela Paulinas Editora, explicada pelo seu prefaciador, Pedro Tamen, que mais adianta sublinha que «o que se sabe ao certo ter-se passado com São Francisco e com os seus companheiros está em perfeito acordo» com o que aqui é relatado na obra.

«Nem um dos episódios que se vão ler, nem uma das palavras aqui atribuídas a São Francisco são, ao de leve ao menos, incoerentes com os episódios historicamente comprovados da vida do Pobre de Assis, ou com as palavras que sabemos que pronunciou. Há uma verdade “no espírito”, mesmo quando porventura não haja uma verdade “na letra”. Ainda que alguns destes milagres sejam lendários, é o mesmo fundamental “clima de milagre” que São Francisco e os seus viviam, e tão típico da espiritualidade franciscana», assinala o texto introdutório.

Para Pedro Tamen, é no «sentimento poético do mundo, tornado explosivo por um temperamento meridional e sobrenaturalmente enriquecido e iluminado pela Graça», que se «enraíza toda a maravilhosa lição de São Francisco: a pobreza, a caridade, a simplicidade, o espírito de infância, o amor ao real concreto e próximo, concebido como dádiva do Criador e prolongamento da Cruz».



«Que me manda fazer o meu Senhor Jesus Cristo?» Respondeu frei Masseo que, tanto a frei Silvestre como à irmã Clara e à outra irmã, Cristo tinha respondido e revelado que «a sua vontade é que vás pelo mundo a pregar, pois te não escolheu só para ti, mas também para salvação dos outros.»



«O Santo de Assis não só levou a sua cruz, amou-a. É essa a sua espécie de loucura, a mesma, afinal, de todos os santos, para além da personalidade de cada um e do que cada um sublinhou na vida de Cristo. É a loucura da santidade», conclui.

Após os 53 capítulos do livro, acompanhados por ilustrações de José Escada, Pedro Tamen traduz o “Cântico do Irmão Sol” e o religioso franciscano Henrique Pinto Rema apresenta uma nota histórico-biográfica e comenta o poema anteriormente traduzido. Como habitualmente, transcrevemos três excertos da obra.

 

De como São Francisco recebeu de Santa Clara e do santo frei Silvestre o conselho de pregar para converter muita gente; e fundou a Ordem Terceira e pregou às aves e fez aquietar as andorinhas
In “Fioretti de São Francisco e dos seus frades”

O humilde servo de Cristo São Francisco, pouco tempo depois da sua conversão, tendo já reunido e recebido na Ordem muitos companheiros, entrou em pensar muito e em ter muitas dúvidas sobre o que deveria fazer: ou somente rezar, ou pregar de vez em quando; e sobre isto muito desejava conhecer a vontade de Deus. E porque a humildade que nele havia o não deixava presumir de si nem das suas orações, pensou procurar saber a vontade divina com orações alheias.

Por isso chamou frei Masseo e disse-lhe assim: «Vai à irmã Clara e diz-lhe da minha parte que, tanto ela como outra das suas companheiras mais perfeitas, peçam com devoção a Deus que se digne mostrar-me o que for melhor: que me dedique à pregação ou só à oração. E depois vai a frei Silvestre e diz-lhe o mesmo.» Este tinha sido no século aquele senhor D. Silvestre, que tinha visto uma cruz de ouro sair da boa de São Francisco, que se estendia até ao céu e se alargava às extremidades do mundo; e era este frei Silvestre de tanta devoção e tanta santidade que em tudo o que pedia a Deus era ouvido, e falava muitas vezes com Deus; e por isso São Francisco tinha por ele grande devoção.



Todos os homens e mulheres daquele castelo, por devoção, queriam segui-lo e abandonar o castelo; mas São Francisco não deixou, dizendo-lhes: «Não tenham pressa e não se vão embora, e eu direi o que deverão fazer para salvação das vossas almas.» E então pensou fundar a Ordem Terceira, para a salvação universal de todos



Partiu frei Masseo e, segundo a ordem de São Francisco, deu o recado primeiro a Santa Clara e depois a frei Silvestre. O qual, recebido que o teve, imediatamente se prostrou em oração e, orando, teve a resposta divina; e voltando a frei Masseo, disse assim: «Isto manda Deus que o digas a frei Fran cisco: que Deus não o chamou a este estado somente para si, mas para que produza frutos nas almas, e muitos por ele se salvem.» Recebida esta resposta, frei Masseo voltou a Santa Clara a saber o que tinha ouvido de Deus. E ela respondeu que tanto ela como as companheiras tinham tido de Deus a mesma resposta que frei Silvestre tinha tido.

Com isto voltou frei Masseo a São Francisco, e São Francisco recebeu-o com grandíssima caridade, lavando-lhe os pés e preparando-lhe comida. E, depois de comer, São Francisco chamou frei Masseo ao bosque e, diante dele, ajoelhou-se, pôs o capuz, abrindo os braços em cruz, e pediu-lhe: «Que me manda fazer o meu Senhor Jesus Cristo?» Respondeu frei Masseo que, tanto a frei Silvestre como à irmã Clara e à outra irmã, Cristo tinha respondido e revelado que «a sua vontade é que vás pelo mundo a pregar, pois te não escolheu só para ti, mas também para salvação dos outros.» Então São Francisco, ao ouvir esta resposta e conhecendo por ela a vontade de Cristo, ergueu-se com grande fervor e disse: «Vamos, em nome de Deus.» E tomou por companheiros frei Masseo e frei Ângelo, homens santos.

E andando com ímpeto de espírito, sem olhar a estrada ou o caminho, chegaram a um castelo que se chamava Cannario. E São Francisco pôs-se a pregar, mandando primeiro às andorinhas que cantavam que guardassem silêncio até que tivesse acabado de pregar. E elas obedeceram-lhe. E ali pregou com tanto fervor que todos os homens e mulheres daquele castelo, por devoção, queriam segui-lo e abandonar o castelo; mas São Francisco não deixou, dizendo-lhes: «Não tenham pressa e não se vão embora, e eu direi o que deverão fazer para salvação das vossas almas.» E então pensou fundar a Ordem Terceira, para a salvação universal de todos. E assim, deixando-os muito consolados e bem dispostos à penitência, partiu dali e veio para um local entre Cannario e Bevagno.



Querendo Cristo bendito mostrar a grande santidade do seu fidelíssimo servo Santo António, e com quanta devoção devia ser ouvida a sua pregação e a sua santa doutrina, uma vez entre outras, por meio de animais sem razão, isto é, por meio dos peixes, repreendeu a ignorância dos hereges infiéis



E passando além daí, com aquele fervor, ergueu os olhos e viu algumas árvores ao longo do caminho, sobre as quais estava uma quase infinda multidão de aves; pelo que São Francisco se admirou e disse aos companheiros: «Esperai por mim aqui na estrada, e eu irei pregar às aves, minhas irmãs.» E entrou no campo e começou a pregar às aves que estavam no chão; e logo as que estavam sobre as árvores vieram para junto dele e, todas juntas, ficaram quietas enquanto São Francisco não acabou de pregar. E mesmo depois não se foram embora, até que ele lhes desse a sua bênção. E segundo disse depois frei Masseo a frei Tiago de Massa, estando São Francisco entre elas, tocando-lhes com a capa, nem uma se mexia.

O assunto da pregação de São Francisco foi este: «Minhas irmãs aves, sede muito gratas a Deus vosso criador, sem pre e em todo o lugar o deveis louvar, porque vos deu liberdade para voar em todos os lugares; e também vos deu vestido duplicado e triplicado; depois, porque guardou a vossa semente na arca de Noé, para que a vossa espécie não acabasse no mundo; sede-lhe ainda gratas pelo elemento ar que ele vos entregou. Além disso, não semeais nem colheis, e Deus vos alimenta e vos dá os rios e fontes para beberdes, dá-vos os montes e os vales para vosso refúgio e as árvores altas para vosso ninho. E apesar de não saberdes nem fiar nem coser, Deus é quem vos veste, a vós e aos vossos filhos. Pelo que muito vos ama o Criador, pois vos dá tantos benefícios. E por isso, guardai-vos, irmãs minhas, do pecado da ingratidão, mas procurai sempre louvar a Deus.»

Dizendo-lhes São Francisco estas palavras, todas aquelas aves começaram a abrir os bicos, a estender o pescoço, a bater as asas e, reverentemente, a baixar as cabeças até ao chão, e, com gestos e cantos, mostraram que as palavras do santo pai lhes davam muitíssimo prazer. E São Francisco alegrava-se e deleitava-se juntamente com elas, e admirava-se com tanta multidão de aves, e com a sua lindíssima variedade, e com a sua atenção e familiaridade, razão pela qual por elas louvava ele devotamente o Criador.



«Ouvi a palavra de Deus, vós, peixes do mar e do rio, visto que os hereges infiéis fogem de a ouvir.» E assim que disse isto, logo se aproximou da margem em direção a ele tal multidão de peixes, grandes, pequenos e médios, que nunca em tal mar e em tal rio tinha sido vista tão grande quantidade



Acabada finalmente a pregação, São Francisco fez-lhes o sinal da cruz e deu-lhes licença de partirem; e então todas aquelas aves em bando se levantaram no ar, com maravilhosos cantos, e depois, segundo a cruz que lhes tinha feito São Francisco, dividiram-se em quatro partes. E uma parte voou para o oriente, outra para o ocidente, a terceira para o sul e a quarta para o norte; e cada bando cantava maravilhosamente, significando que, tal como São Francisco, porta-bandeira da cruz de Cristo, lhes tinha pregado e sobre elas feito o sinal da cruz, assim elas se dividiam, cantando, pelas quatro partes do mundo; assim a pregação da cruz de Cristo, renovada por São Francisco, por ele e pelos seus frades, devia ser levada a todo o mundo; os quais frades, como aves, nada possuindo de seu no mundo, só à providência de Deus entregam a sua vida.

Em louvor de Cristo. Amen.

 

Da maravilhosa prática que fez Santo António de Pádua, frade menor, no consistório
In “Fioretti de São Francisco e dos seus frades”

O maravilhoso vaso do Espírito Santo, Santo António de Pádua, um dos discípulos eleitos e companheiro de São Francisco, a quem São Francisco chamava o seu bispo, pregando uma vez num consistório perante o Papa e os cardeais, no qual consistório havia homens de diversas nações, ou seja, gregos, latinos, franceses, alemães, eslavos e ingleses, e ainda doutras diferentes línguas do mundo, inflamado pelo Espírito Santo, tão eficaz, tão devotamente, tão subtilmente, tão clara e tão inteligentemente expôs e falou da Palavra de Deus, que todos os que estavam no consistório, conquanto fossem de línguas diversas, com toda a clareza entendiam todas as suas palavras distintamente, como se ele tivesse falado na língua de cada um deles; e estavam todos espantados e parecia-lhes que se tinha renovado aquele antigo milagre dos Apóstolos, no tempo de Pentecostes, que falavam por virtude do Espírito Santo em todas as línguas.

E diziam todos juntos uns para os outros, cheios de espanto: «Não é de Espanha este que prega? Como, pois, cada um de nós o ouve falar na língua das nossas terras?» Também o Papa, considerando e espantando-se com a profundidade das suas palavras, disse: «Este é verdadeiramente arca do Testamento e armário da divina Escritura.»

Em louvor de Cristo. Amen.

 

Do milagre que Deus fez quando Santo António, estando em Rimini, pregou aos peixes do mar
In “Fioretti de São Francisco e dos seus frades”

Querendo Cristo bendito mostrar a grande santidade do seu fidelíssimo servo Santo António, e com quanta devoção devia ser ouvida a sua pregação e a sua santa doutrina, uma vez entre outras, por meio de animais sem razão, isto é, por meio dos peixes, repreendeu a ignorância dos hereges infiéis, tal como outrora, no Velho Testamento, repreendera a ignorância de Balaão pela boca da sua burra.

Pelo que, estando uma vez Santo António em Rimini, onde havia grande multidão de hereges, e querendo-os ele reconduzir à luz da verdadeira fé e ao caminho da verdade, pregou-lhes durante muitos dias e discorreu sobre a fé de Cristo e a Sagrada Escritura; mas eles, não somente não aceitavam o seu santo falar, mas também não queriam ouvi-lo, de tão endurecidos e teimosos; e Santo António, um dia, por inspiração divina, foi até à foz do rio, perto do mar; e estando na margem, entre o mar e o rio, começou a dizer aos peixes, da parte de Deus, à maneira de pregação: «Ouvi a palavra de Deus, vós, peixes do mar e do rio, visto que os hereges infiéis fogem de a ouvir.» E assim que disse isto, logo se aproximou da margem em direção a ele tal multidão de peixes, grandes, pequenos e médios, que nunca em tal mar e em tal rio tinha sido vista tão grande quantidade; e todos tinham a cabeça de fora da água e olhavam atentos para a face de Santo António, todos com grande paz, mansidão e ordem; porque à frente e mais próximo da margem estavam os peixinhos mais pequenos; e atrás deles estavam os médios, e depois atrás, onde a água era mais funda, estavam os peixes maiores.



Santo António começou a pregar a fé católica, e tão nobremente a pregou que todos aqueles hereges converteu e fez voltar à verdadeira fé de Cristo, e todos os fiéis ficaram com grande alegria confortados e fortalecidos na fé. E feito isto, Santo António despediu os peixes com a bênção de Deus



Estando, pois, arrumados os peixes nesta ordem e disposição, Santo António começou a pregar solenemente, dizendo assim: «Meus irmãos peixes, muita obrigação tendes, segundo as vossas possibilidades, de agradecer ao vosso Criador, que vos deu tão nobre elemento para vossa morada, de tal modo que, segundo vos apraz, tendes águas doces ou salgadas, e vos deu muitos abrigos para fugirdes às tempestades, e ainda elemento claro e transparente, e comida pela qual podeis viver. Deus, vosso Criador, cortês e benigno, quando vos criou, deu-vos ordem de crescerdes e vos multiplicardes, e deu-vos a sua bênção. Depois, quando houve o dilúvio universal, tendo morrido todos os outros animais, só a vós Deus conservou sem dano. E ainda vos deu as barbatanas para poderdes correr onde vos aprouver. A vós foi concedido, por ordem de Deus, guardar o profeta Jonas e, depois do terceiro dia, restituí-lo à terra, são e salvo. Vós destes o dinheiro a nosso Senhor Jesus Cristo que, como pobre, não tinha com que pagar. Vós fostes alimento do eterno Rei Jesus Cristo, antes e depois da Ressurreição, por singular mistério. Por todas as quais coisas, muita obrigação tendes de louvar e bendizer a Deus, que vos deu tão grandes benefícios, mais que às outras criaturas.»

A estas e outras semelhantes palavras e conselhos de Santo António, começaram os peixes a abrir a boca e a baixar a cabeça, e, com estes e outros sinais de respeito, segundo o que lhes era possível, louvavam a Deus. Então Santo António, vendo tanto respeito da parte dos peixes para com Deus Criador, alegrando-se em espírito, disse em alta voz: «Bendito seja Deus eterno, porque mais o honram os peixes aquáticos do que o fazem os homens hereges. E os animais irracionais ouvem melhor a sua palavra do que os homens infiéis.» E quanto mais Santo António pregava, mais crescia a multidão dos peixes, e nenhum saía do lugar que ocupara.

A este milagre começou a acorrer o povo da cidade, entre o qual vieram até os ditos hereges, que, vendo milagre tão maravilhoso e evidente, compungidos em seus corações, todos se lançaram aos pés de Santo António para ouvir a sua pregação. E, então, Santo António começou a pregar a fé católica, e tão nobremente a pregou que todos aqueles hereges converteu e fez voltar à verdadeira fé de Cristo, e todos os fiéis ficaram com grande alegria confortados e fortalecidos na fé. E feito isto, Santo António despediu os peixes com a bênção de Deus, e todos partiram com maravilhosos gestos de alegria, e igualmente o povo.

Depois, Santo António ficou em Rimini durante muitos dias, pregando e conseguindo muito fruto espiritual nas almas.

Em louvor de Cristo. Amen.


 

Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: Capa | D.R.
Publicado em 04.10.2018 | Atualizado em 24.04.2023

 

Título: "Fioretti" de São Francisco e dos seus frades
Autor: Anónimo
Editora: Paulinas Editora
Páginas: 224
Preço: 13,00 €
ISBN: 978-989-673-645-3

 

 
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