«Não pretendemos manifestar a nossa comiseração pelo Santo Padre – embora, na verdade, alguns comentários que circulam sobre ele ultrapassem grandemente não só os limites da decência e da lei, mas também da própria dignidade devida a qualquer ser humano. No entanto, compreendemo-lo quando (já por muitas vezes) quis denunciar as bisbilhotices e os mexericos no interior da Igreja, as conversas de sacristia, a difamação, e agora (…) as fake news que afetam e condicionam de modo irreparável a vida de uma comunidade que deveria ser fraterna como a dos seguidores do Evangelho.»
A denúncia das acusações «completamente inventadas», «exageradas» e «falsas» contra o pontífice, salvaguardando, todavia o direito a criticá-lo, é a raiz de onde nasce o livro “Fake pope – As falsas notícias acerca do papa Francisco”, dos jornalistas italianos Nello Scavo e Roberto Beretta, que a Paulinas Editora lançou esta segunda-feira nas livrarias, obra a que o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura já tinha feito referência há precisamente um ano, aquando do seu lançamento mundial em Itália, e de que apresenta agora três excertos.
«As fake news recolocam no centro o tema da verdade, caro ao cristianismo tradicional; desta vez, porém, a resposta certa não é transmitir novas seguranças intangíveis, dogmáticas, rígidas, à prova de falsidade, mas educar para uma busca e verificação contínuas», escrevem os autores na introdução, depois de mencionarem a «série infindável de censuras e reprimendas, invetivas e até insultos que lhe têm sido dirigidos, graças à carga imensa de fantasias e também de infâmias que é a rede com os seus braços sociais».
«O passado “desaparecido”, «De Bergoglio a Francisco – O papa “emérito” e o papa “inválido”», «“Poderes fortes” à conquista de Roma – A quem incomoda o papa vindo do outro mundo», «Uma cúria que precisa de ser curada – Os venenos que o pontífice encontrou em sua casa», «Pobre Francisco – Quando fazer a caridade se torna uma culpa», «Uma Cruz sobre o diálogo – Ecumenismo e religiões, o papa vergastado», «Campeão sem valores? Bergoglio às voltas com os “gays”, a ideologia de género, os pró-vida e o LGBT», «Papa, papa das minhas tramas… - Freud, Soros, Marx: Francisco examinado pelos complotistas», «O mestre sobre o “ex cathedra” – Se nem sequer os fiéis o conseguem entender», «Mentiras e só mentiras – Sob a cúpula petrina, uma onda de notícias infundadas», «Um papa que já não é “infalível” – Onde é que Francisco falhou» e «Clericais versus lobby “gay”» constituem os capítulos deste livro.
Nello Scavo vai estar em Portugal para falar à imprensa sobre o volume e para participar em três encontros abertos ao público relativos ao livro e aos temas que coloca: a 30 de maio, às 17h00, em Lisboa (auditório da Renascença) integra a mesa redonda “Esta é a rede que queremos”; a 1 de junho, em Bragança, às 10h00, profere a conferência “Fake news – Uma ameaça à democracia e à família humana”; e no dia seguinte apresenta a obra no auditório da Feira do Livro de Lisboa, às 19h00.
Veste sotaina, mas é contra as mulheres
Nello Scavo, Roberto Beretta
In “Fake pope”
«A esquerda gosta de considerar Francisco como Papa progressista, por vezes até no que diz respeito às relações entre homem e mulher. Em meu entender, é uma imagem ilusória. Sob aparências encantadoras, ele segue, de facto, uma política de domínio em detrimento sobretudo das mulheres e das minorias sexuais. O papa Francisco dirige uma instituição que promove um regime de apartheid contra as mulheres de profundos efeitos nefastos sobre a vida e os direitos das mulheres em qualquer parte do mundo, dentro e fora da Igreja católica.» (Denine Couture, teóloga da Universidade de Montreal)
«A sua abertura às mulheres é acompanhada por uma visão tradicional da mulher. Pior ainda: tal como o seu predecessor, o papa Francisco considera o feminismo um mal, bem como, naturalmente, a teologia feminista.» (Louise MélançonOUISE, Instituto Católico de Paris)
«Menospreza o papel das mulheres na Igreja», ou então, «quer o sacerdócio feminino.» Oscila entre estes dois extremos – na verdade, muito distantes – o juízo sobre o feminismo» do papa Francisco.
Contudo, queremos ater-nos aos factos reais e notamos, antes de mais, que são numerosas, contínuas e até galantes as declarações positivas de Bergoglio sobre o papel das mulheres, na Igreja e fora dela. As mulheres «são como morangos à sobremesa: nunca são demais!» São «a coisa mais bela que Deus fez». E ainda: «Maria, uma mulher, é mais importante do que os Apóstolos, é mais importante do que os Bispos e do que os Padres!». «Também gosto de pensar que a Igreja não é “o” Igreja, é “a” Igreja. A Igreja é mulher, é mãe, e isto é maravilhoso». «A Igreja é feminina. A Igreja não pode ser ela própria sem a mulher e o papel desta. A mulher é imprescindível para a Igreja.»
O paradoxo é que todas estas declarações sobre um certo público feminino (mas não só), em vez de gerarem disposições positivas, têm produzido o efeito oposto: no mínimo, são consideradas uma captatio benevolentiae, quando não são uma exposição de gentilezas que na realidade oculta o habitual: a submissão feminina ao homem, a negação da desejada paridade entre os sexos – a mulher-beleza, a mulher-ornamento, obviamente, a mulher-mãe, mas… nada mais. E, com efeito – observam os críticos –, Bergoglio reiterou o não dos predecessores ao sacerdócio das mulheres: «Disse-o João Paulo II, mas como uma formulação definitiva. Essa porta está fechada.»
Na verdade, o Papa argentino parece ter ultrapassado um pouco a tradicional formulação católica: «O papel da mulher na Igreja não se deve restringir ao papel de mãe, de trabalhadora, limitada… Não! É outra coisa! Não se pode entender uma Igreja sem mulheres, mas mulheres ativas na Igreja, com o seu perfil, que levam a Igreja por diante.» Também declarou que as mulheres devem ter papéis mais importantes na Igreja: «O génio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O desafio, hoje, é precisamente este: refletir sobre o lugar específico da mulher, inclusive precisamente ali, onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja»; e, com efeito, tem colocado muitas em lugares importantes no Vaticano (precisando, aliás: «Quando eu digo que é importante que as mulheres sejam mais tidas em conta na Igreja, não é apenas para lhes atribuir uma função de secretária em determinado dicastério: isso é variável. Não: para que elas nos digam de que modo sentem e olham a realidade, porque as mulheres olham a partir de uma riqueza diferente, maior»).
O ponto de vista do Pontífice deve ser entendido para lá dos esquemas funcionalistas: o do machismo, decerto, mas também o da igualdade aritmética. «Há já algum tempo que deixámos para trás, pelo menos nas sociedades ocidentais, o modelo da subordinação social da mulher ao homem, um modelo secular que, no entanto, nunca esgotou completamente os seus efeitos negativos. Ultrapassámos também um segundo modelo, o modelo da pura e simples paridade, aplicada de forma mecânica, e da igualdade absoluta. Configurou-se assim um novo paradigma, o da reciprocidade na equivalência e na diferença. A relação homem-mulher, portanto, deveria reconhecer que ambos são necessários porquanto possuem, é verdade, uma natureza idêntica, mas com modalidades próprias. Uma é necessária ao outro, e vice-versa, para que se realize de verdade a plenitude da pessoa.»
Mas, como muitas vezes lhe acontece, Francisco também exteriorizou as suas dúvidas, as suas incertezas, sobre essa matéria. Fê-lo confessando que «nós ainda não fizemos uma profunda teologia da mulher, na Igreja. Não se pode limitar ao facto de ser acólita ou presidente da Cáritas, catequista… Não! Deve ser mais, mas profundamente mais, inclusive misticamente mais». Fê-lo sobretudo quando, respondendo a um grupo de irmãs que lhe perguntava por que razão não se permitia, pelo menos, o diaconado às mulheres, replicou que estava muito pouco preparado sobre essa matéria e que encarregaria uma comissão criada para esse efeito de estudá-la, o que viria a concretizar. A impressão que dá é, portanto, que ainda está a percorrer um caminho que de modo nenhum chegou ao fim, e que talvez conduza a desfechos surpreendentes.
Os palavrões do Santo Padre
Nello Scavo, Roberto Beretta
In “Fake pope”
«Velhas mexeriqueiras, fomentadores da coprofagia, desfia-rosários, senhor e senhora Lamurientos, escravos da superficialidade, múmias de museu, bispo de aeroporto, trombudos, rosto fúnebre, cristãos com cara de pickles, cristãos pagãos, cristãos-papagaio, ideólogos do abstrato, religiosos que têm o coração ácido como vinagre, cristãos de pastelaria, turistas existenciais, cristãos anestesiados…» (Lenny Detroit, “The Pope Francis little book of insults”)
Segundo um site italiano que apresenta a sua tradução, a enumeração acima (embora a lista original dos mesmos seja muito mais longa, incluindo quase um milhar) seria «uma graciosa coletânea, uma preciosa antologia, uma formosa coleção de invetivas que o autointitulado Bispo de Roma dirigiu aos católicos. Não é uma palavra – ça va sans dire – contra os pecadores, os idólatras, os deicidas, os hereges, os cismáticos, os inimigos de Deus. As preciosas pérolas de sabedoria do Nosso [Santo Padre] estão reservadas àqueles que permanecem fiéis a Cristo e à Igreja».
Será mesmo verdade que o papa Francisco «insulta» os seus fiéis? Bem, antes de mais, em termos de ofensas, as acima referidas não são grande coisa, pelo menos na sua maioria: com efeito, definir alguém como uma «múmia» ou um «trombudo» será antes uma expressão colorida para exprimir uma ideia, mas certamente não é insultuosa e ainda menos vulgar. Além disso, nenhum destes epítetos se refere a uma pessoa em particular, a um indivíduo identificado pelo seu nome e apelido; trata-se, antes, de categorias genéricas, de tipologias talvez cortantes com as quais, porém, ninguém – a menos que seja ultrassensível… – se deveria sentir ofendido.
Além disso, já se falou da linguagem cheia de imagens e popular do papa Francisco; estas fórmulas (aliás, dever-se-ia verificar se em espanhol não fazem parte de uma maneira de dizer acreditada: por exemplo, caras de salmuera, «caras de salmoura» encontra-se, precisamente, na literatura argentina) incluem-se nessa categoria e servem para impressionar e ficar gravadas na memória dos ouvintes. O género literário da invetiva é um expediente retórico muito usado na pregação para ficar fortemente impresso na mente dos fiéis, de maneira a criar um ponto de referência que depois sirva para regular o comportamento dos ouvintes.
Com efeito, se examinarmos o contexto em que tais expressões foram usadas, apercebemo-nos de que são de exortação ética, que nada tem de insultuosa. «Cristãos de pastelaria», por exemplo, aparece nesta frase: «Não podemos fazer um cristianismo um pouco mais humano, sem cruz, sem Jesus, sem despojamento? Desse modo tornar-nos-emos cristãos de pastelaria, como bolos maravilhosos, como doces deliciosos! Maravilhosos, mas não cristãos de verdade.» Portanto, quem poderia sentir-se «insultado» por esta comparação?
«Cristãos melancólicos» e «caras de pimento avinagrado» serviram, pelo seu lado, para explicar que, «às vezes, alguns cristãos melancólicos têm mais cara de pimentos avinagrados do que de pessoas alegres, que têm uma vida maravilhosa». Nem sequer isto nos parece uma ofensa… E ainda, eis a origem do «senhor Lamuriento»: «Frente às tribulações, não se deve ceder à tentação das lamentações, por que um cristão que se lamenta continuamente deixa de ser um bom cristão e passa a ser o senhor ou a senhora Lamúria.»
Um «perito» em turpilóquio, que escreveu livros e que gere um sítio sobre esse tema, o jornalista Vito Tartamella, fez o seguinte diagnóstico sobre os «palavrões do Papa» que nos parece equilibrado: «A primeira surpresa é que não se dirigem a inimigos exteriores (não-crentes, muçulmanos ou outros), mas sim ao interior da Igreja: aos maus cristãos e, sobretudo, aos maus sacerdotes. Bergoglio mete-se com os padres “vaidosos e volúveis”, “magnatas”, “vendedores de pneus”, “que têm o coração ácido como vinagre, fechados na formalidade de uma oração gélida, avarentos, estéreis no seu formalismo”. Com os “bispos de aeroporto” (sempre às voltas pelo mundo e pouco atentos à sua diocese)… Não me parece uma escolha estranha: se os católicos são cada vez menos, não é apenas por vivermos numa sociedade laica, ateia, materialista. Também é porque recebem um mau exemplo precisamente de quem não o deveria dar, ou seja, dos padres.»
E prossegue: «Tudo isto são imagens que têm um objetivo mais pedagógico do que destrutivo ou ofensivo: tomam uma posição crítica, não para aniquilar nem para marginalizar os seus destinatários, mas para abanar as consciências, fazer refletir e induzir as pessoas a mudar de caminho. […] As expressões do Papa são diferentes dos insultos não só porque não usam um léxico vulgar, mas também pelos objetivos que perseguem e pelas emoções que exprimem; não exprimem ódio, mas uma condenação moral: indignação, forte desacordo polémico. São expressões críticas. Podem ser definidas mais como metáforas cortantes, epítetos ao serviço de um discurso polémico, de acerba censura, imagens contundentes.»
A missão, porém, não está completa
Nello Scavo, Roberto Beretta
In “Fake pope”
«Sofro por causa do papa Francisco. Tenho a impressão de que ele está a dividir a Igreja, esbofeteando quem trabalha e acariciando quem é contra o Evangelho. Um padre da minha diocese, que deixou o sacerdócio, foi convidado, com a sua mulher, para almoçar com o Papa. São coisas que dão que pensar. Eu gostaria de ir visitar uma casa de missionários idosos que deram a vida pelo Evangelho de Jesus Cristo, em vez de ir a uma loja comprar um par de sapatos. As irmãs missionárias sentiram-se ofendidas quando o Papa disse que há irmãs que são solteironas. São poucas as pessoas com quem falo destas coisas: rezo e sofro, pois alguns sacerdotes mais velhos do que eu estão atormentados na sua fé pelas atitudes do papa Francisco, e também padres jovens que desabafam comigo se sentem perdidos. Eu sou reservado, falo destas coisas com poucos padres de confiança, mas o sofrimento é recíproco.» (Da carta de um missionário italiano no Brasil)
O Papa que se definiu como aquele «que veio do fim do mundo» é-o de facto: é o primeiro Pontífice não-europeu do segundo milénio, o primeiro que vem de terras tradicionalmente «de missão», trazendo daí conteúdos, métodos e estilos pastorais mais essenciais e mais planetários. Contudo, é criticado pelos próprios missionários…
Em suma, Bergoglio é o primeiro Papa fidei donum, como são chamados os sacerdotes diocesanos enviados pelo mundo fora, e algumas das suas opções – que nos parecem contra a corrente, ou até inadequadas à dignidade pontifícia (morar numa casa com outros padres, telefonar a torto e a direito, fazer pregações todas as manhãs, como um pároco qualquer, e assim por diante) – deveriam ser lidas com o mesmo espírito com que, por exemplo, os habitantes de uma aldeia africana observam a proposta humana e espiritual do sacerdote branco que foi habitar no meio deles. É a Igreja do Ocidente, desta vez, a receber e a aprender. O padre Piero Gheddo respondia assim à carta do missionário acima: «Hoje, com o primeiro Papa latino-americano, o Espírito quer renovar e rejuvenescer a Igreja. Acredito nisso pela fé, mas a história demonstra a verdade daquilo que estou a dizer. O Espírito Santo foi buscar Jorge Mario Bergoglio “ao fim do mundo” e levou-o a ser o Bispo de Roma, o centro das nossas antigas Igrejas da Europa, quase como um desafio ao nosso modo de conceber a paróquia, a pastoral e a vida cristã. A viragem radical que o Papa argentino está a imprimir à Igreja, sobretudo com o seu exemplo, é a missão universal, a paixão missionária de anunciar Cristo às fileiras exterminadas daqueles que ainda o esperam e de outros que já não acreditam. Ele próprio é o modelo de pastoral e de vida cristã das missões.»
No entanto, até os missionários ficam perplexos… Continua Gheddo: «O papa Francisco não convoca um Concílio, está a reformar a Igreja com o seu exemplo e com os seus discursos e escritos, de modo especial com a Exortação Apostólica Evangelii gaudium (2013), definida como “o manifesto missionário de Francisco”. O papa Francisco fala muitas vezes dos pobres e dos últimos, mas primeiro vem a fé. Porque é que não tem palavras sobre os “valores irrenunciáveis” da fé? Não os afirma nem os nega. Primeiro vem a fé, depois seguir-se-á a moral. O papa Francisco nunca se põe contra quem se opõe ao cristianismo, à Igreja; estimula os fiéis a serem “todos missionários” (por vezes com termos um pouco rudes, ele, que fala improvisando), denuncia as perseguições, mas não julga os perseguidores, não quer “guerras de religião”.»
É natural, portanto, que o Papa vindo das missões pareça «estranho», termo que por vezes também significa alheado, distante, diferente, alternativo, disruptivo… Em relação a quê, porém? Em relação àquilo que o Ocidente, crente ou não, pensava saber sobre as formas culturais do cristianismo, cristalizadas ao longo de dois milénios de evolução e de hábitos. O papa Francisco rompe os esquemas, desconcerta e dá a impressão, a uns, de ser um subversivo ou um destruidor; a outros, pelo contrário, de «revolucionar» e mudar de forma positiva. Na verdade, deveríamos interrogar-nos sobre aquilo que Bergoglio está verdadeiramente a abalar – a forma ou o coração? – e, sobretudo, se aquilo que ele deita por terra é verdadeiramente o essencial do Cristianismo ou antes uma edificação de estruturas e ritualidades que já só com picareta se podem arrancar, esperando que nos reencontremos sob o Evangelho.
Alguém dirá que Francisco está a cortar o velho e glorioso ramo sobre o qual ele próprio está sentado, enquanto expressão suma da estrutura eclesial; contudo, a velha Igreja do Ocidente parece uma planta que precisa de ser podada, se quiser que despontem novas flores, hoje inimagináveis.