«A Reforma da Universidade implementada por Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal e futuro Conde de Oeiras, foi muito profunda e atingiu notavelmente a Faculdade de Teologia. O reformismo ilustrado de Pombal coincidiu, na aplicação à Teologia, com um momento caracterizado pela sistematização da docência e pela organização das especialidades teológicas, a que se pode somar um terceiro vetor, a procurada supremacia dos poderes suseranos, também em matéria de natureza religiosa.»
Esta é uma das convicções que Carlos A. Moreira Azevedo propõe no livro “Faculdade de Teologia de Coimbra – De Pombal à República (1772-1912)” (ed. Afrontamento), no qual, ao longo de seis capítulos, assinala «as linhas da reforma pombalina, o seu confronto com uma visão eclesiástica, privilegiando apenas alguns momentos sintomáticos das questões abertas».
A obra do historiador, bispo e delegado do Conselho Pontifício da Cultura, expõe «a arquitetura do saber teológico através dos sucessivos planos de estudo», as matérias e seus mestres, e termina nas «explicações da morte anunciada». A lista dos decanos da Faculdade, os nomes dos doutores formados e o tema das suas teses, e uma síntese das revistas de apologética católica do século XIX completam a investigação.
«Embora para a Faculdade de Teologia não sejam momentos gloriosos, como os do século XVI, são a verdade da nossa evolução da mentalidade e constituem imprescindível caminho de perceção plena do que somos ainda hoje», aponta o autor.
Apresentamos um excerto da Introdução, que começa por uma breve, mas útil, síntese do ensino da Teologia antes da reforma empreendida pelo marquês de Pombal.
Introdução
In “Faculdade de Teologia de Coimbra – De Pombal à República (1772-1912)”
Carlos A. Moreira Azevedo
Sem pretender traçar aqui a história do ensino da Teologia nos tempos anteriores à reforma pombalina, recorde-se que as escolas catedrais, bem como diversas congregações religiosas, deram formação teológica na Idade média. José Antunes defende a existência do ensino da Teologia unida aos franciscanos, aos dominicanos e também aos eremitas de Santo Agostinho desde o início da Universidade (1290) até 1400 (1). Realmente a Universidade, criada por D. Dinis em 1290 e sediada em Lisboa até 1308, regressada ao Tejo de 1335 a 1354 e de 1377 a 1537, não incluiu a Teologia até ao século XV.
Segundo os Estatutos de D. Manuel I, de 1503, a Faculdade de Teologia organizava-se em duas cadeiras: Escoto e Durando (2). D. João III ordenou a transferência definitiva da Universidade para Coimbra, em 1537, e em 1559 a Teologia passa a incluir mais duas cadeiras: a de Terça, para novo Testamento, e a de antes de Véspera, ou Noa, para o Antigo Testamento (3). O ensino na Faculdade de Teologia, nos Estatutos de 1591, confirmados pelos de 1653, que vigoraram até à Reforma pombalina, é assim distribuído: cadeira de Prima, onde se leciona o mestre das Sentenças, Pedro Lombardo, cadeira de Véspera com leitura de São Tomás de Aquino, cadeira de Terça para ler a Sagrada Escritura (4) e ainda a de Noa para João Duns Escoto. Haverá três catedrilhas de Teologia: leitura de Durando depois de Terça, Escritura para Antigo Testamento e São Tomás que também poderia alternar com Gabriel Biel (5). O plano curricular, como mostra Taveira da Fonseca, teve alterações que não se coadunam com este esquema prefixado estatutariamente (6). A Universidade estava profundamente ligada e era complementada pelos Colégios das diversas Ordens religiosas: Colégio real ou de São Paulo, Colégio de São Tomás, Carmo, Graça, São Boaventura, São Pedro, São João Evangelista, São Bernardo, São Bento, Santa Cruz, Santíssima Trindade. Aliás, a maioria dos docentes provinha das Ordens religiosas. Na Reforma pombalina equilibrou-se a presença de regulares e seculares.
A Reforma da Universidade implementada por Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal e futuro Conde de Oeiras (7), foi muito profunda e atingiu notavelmente a Faculdade de Teologia. O reformismo ilustrado de Pombal coincidiu, na aplicação à Teologia, com um momento caracterizado pela sistematização da docência e pela organização das especialidades teológicas, a que se pode somar um terceiro vetor, a procurada supremacia dos poderes suseranos, também em matéria de natureza religiosa.
No século XVIII, tinham-se distinguido e configurado com nova arquitetura as áreas do saber, apesar de não se avançar em inovações metodológicas. Realmente não se ultrapassa uma Teologia de controvérsia e assiste-se a um processo de decadência. O período dos comentaristas chegou ao fim nos meados do século e gritou vitoriosa a época dos manuais, já em crescimento pela Europa, desde a segunda metade de Seiscentos. Esta mudança é mais do que estrutural na ordenação dos materiais. Há uma metodologia docente. Enquanto o modelo medieval se baseava na quaestio, na análise do problema que era colocado e resolvido, o novo figurino pretendia a ordo expositionis, a exposição ordenada da doutrina até aí conseguida, praticando um esquema onde cada ponto tinha o seu lugar lógico, mediante o enunciado da verdade, depois fundamentada por argumentos da autoridade e da razão. É uma opção com menos criatividade intelectual, mas com clara vantagem na transmissão da totalidade dos dados disponíveis. A exposição é dogmática, termo que se opõe a escolástica e que equivale a afirmativa. Defende-se dos que a combatem, sem, porém, entrar em pormenores especulativos.
A Ilustração trouxe à razão cartesiana um acréscimo de progresso no saber. Agora, parte-se dos dados para chegar às leis. Assim se desenvolve a procura permanente de conhecimentos. Os teólogos perceberam o problema desta orientação racionalista e naturalista, que o pensamento ilustrado gerava, mas, no século XVIII, não surgem obras de envergadura. Multiplicam-se os autores de manuais, cujo valor é diminuto (8).
A proibição de ensinar a doutrina escolástica nas Faculdades de Teologia é decretada na maior parte dos planos de reforma universitária. Assim ocorre em Coimbra. O mesmo acontece, ainda, no caso nos planos académicos da Áustria, finalizados entre 1774 e 1777. O inspirador principal é o abade Franz Stephan Rautenstrauch (1734-1785). Instauram-se medidas regalistas, consagrando a intervenção do rei nas questões teológicas e no foro eclesiástico (9). Os impulsos mais fortes para uma nova época na Teologia vinham dos Países Baixos e especialmente da Universidade de Lovaina. Van Espen exerceu grande influxo nos discípulos. Marcado pelo galicanismo, valorizava a autonomia do poder episcopal frente ao papa e reconhecia no soberano local e no Estado uma grande autoridade na vida da Igreja, uma vez que a hierarquia era apresentada pelo Estado. Também entre nós esta mentalidade se efetiva. A instituição da Real Mesa Censória, a 5 de abril de 1768, secularizou a censura dos livros, que passou a ser função exclusiva do Estado, retirando-a da alçada da Igreja, até então exercida por mediação da Inquisição. Pombal colocou na Mesa pessoas da sua estrita confiança, tal a importância que votava ao assunto, e algumas são as mesmas da Junta que encabeçou a reforma da Universidade.
A partir da segunda metade do séc. XVIII, a Teologia vai adotar uma divisão em quatro ramos, com autonomia docente e metodológica: Teologia Fundamental (Lugares Teológicos), Teologia Moral, Teologia Pastoral e Teologia Espiritual. Esta subdivisão da Teologia Dogmática manteve-se. A História da Igreja, a Exegese e o Direito Canónico são áreas não pertencentes estritamente à Teologia. Como o Direito Canónico, no caso de Coimbra, era lecionado na Faculdade de Cânones não lhe darei atenção neste lugar (10). Em 1836 foi extinta a Faculdade de Cânones, passando a Faculdade de Leis a intitular-se Faculdade de Direito. Na reforma proposta pela Conselho da Faculdade, em 1866, defende-se que o Direito Canónico seja ensinado dentro da Faculdade de Teologia, por ser fundamental a “união mais íntima com a doutrina da Igreja” pois tem pontos de contacto diretos. Não está em causa a qualidade dos professores da Faculdade de Direito, que aliás estão presentes no Conselho da Faculdade em muitas reuniões, “mas nunca a ciência do direito canónico poderá ser profunda e com o desenvolvimento que a sua importância requer, achando-se separada dos outros ramos das ciências eclesiásticas, de que faz parte”. Mais adverte a necessidade de que “cada um se compenetre bem do espírito de Igreja para bem compreender e apreciar devidamente o espírito das suas leis” (11). Considerarei, no entanto, a História Eclesiástica e a Exegética, áreas profundamente revistas e valorizadas no espírito reformador.
As Faculdades de Teologia e de Direito (Cânones) marcaram gerações sucessivas e os núncios apostólicos desde o início da Reforma pombalina até ao fim da instituição permanentemente se queixam do “veneno” que lá bebem os principais atores da vida eclesial. Basta citar o cardeal Bartolomeo Pacca (1756-1844), núncio em Lisboa entre 1795-1802, que fundamenta a atitude servil dos bispos ao poder laico nos vestígios do ensinamento recebido em Coimbra. Atribui a Francisco de Lemos Faria, bispo de Coimbra e reformador da Universidade, a “corrupção do ensinamento público daquela universidade, a propagação das máximas jansenistas e febronianas em Portugal” (12). O olhar algo integrista de Pacca considera-o “homem que se pode classificar sem escrúpulos, de uma manifesta heresia pelas suas máximas anticatólicas e pelo memorial ódio contra a Santa Sé” (13). As marcas ideológicas fundacionais atravessaram a vida da instituição e a observação sobre os livros e os professores continuamente merece referências dos representantes pontifícios. (…) Uma carta da muito conservadora rainha D. Carlota Joaquina ao papa, de 2 de setembro de 1823, fazendo eco dos mesmos sentimentos, manifesta que os compêndios da Universidade “estão cheios de erros” e “todos, direta ou indiretamente, têm bebido o veneno desta universidade” (14).
Esta atribuição à Universidade, particularmente às Faculdades de Cânones e de Teologia, de ideias próprias de uma nova conceção do poder laico em relação à jurisdição eclesiástica demonstra quanto os representantes papais resistiam fixos na mentalidade do Antigo Regime. Por outro lado, esta tensão mostra como a vontade regalista de interferir em assuntos internos da Igreja prosseguia em reiterado arcaísmo por parte do poder civil. (…)
O encerramento da escola, parecendo inevitável, veio contribuir para um atraso no desenvolvimento da Teologia em Portugal, que praticamente só avançado o século XX ganha de novo vigor, após a criação da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em 1967 (15). No mesmo ano, iniciou em Lisboa o Instituto Superior de Estudos Teológicos, na casa dos franciscanos. Encerraria em 1975. Nesse ano se criava no Porto o Instituto de Ciências Humanas e Teológicas, unindo diocese do Porto e algumas dioceses e ordens religiosas. Já em 1961 teve início a Semana Portuguesa de Teologia, em Lisboa, e realizada todos os anos até 1965.
Momentos fundamentais da história da Igreja do século XX não foram acompanhados de um profundo e fundamentado olhar teológico, como o fenómeno de Fátima e o II Concilio do Vaticano. O impacto dos que se prepararam no estrangeiro, sobretudo em Roma, foi tímido e débil, salvo raros exemplos.
(1) ANTUNES, José – A Teologia. In História da Universidade em Portugal. Vol 1/1. Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 237-270.
(2) RODRIGUES, Manuel Augusto, introdução – Os primeiros Estatutos da Universidade de Coimbra. Coimbra: Arquivo da Universidade de Coimbra, 1991; RODRIGUES, Manuel Augusto, intr. – Estatutos d'el Rei Dom Manuel I. Coimbra: Arq. da Universidade, 1991.
(3) Estatutos da Universidade de Coimbra (1559). Com introdução e notas históricas e críticas de Serafim Leite. Coimbra, 1963. Funcionou brevemente o Colégio ou Universidade de Guimarães (1537-1550), Ver SÁ, A. Moreira de – A Universidade de Guimarães no século XVI (1537-1550). Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982. Entre os poucos estudos sobre a Teologia em Portugal podem ver-se: STEGMUELLER, Friedrich – Filosofia e Teologia nas universidades de Coimbra e Évora no século XVI. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1959, pp 9-84; MENDEIROS, José Filipe – As Ciências Sagradas no primeiro século da Universidade de Évora. Évora, 1963. Em Évora havia ensino de Moral em suas cadeiras. GUERRA, Maria Luísa – A Universidade de Évora: Mestres e discípulos notáveis (séc. XVI – séc. XVIII) Évora: Universidade, 2005.
(4) RODRIGUES, Manuel Augusto – A cátedra de Sagrada Escritura na Universidade de Coimbra. Primeiro século 1537-1640.. Coimbra, 1974. XXI, 623 p.
(5) ESTATUTOS da Universidade de Coimbra (1653). Introdução de Aníbal Pinto de Castro. Edição fac-similada. Coimbra: por ordem da Universidade, 1987, p. 142.
(6) FONSECA, Fernando Taveira da - A Teologia. In História da Universidade em Portugal. Vol 1/2. Coimbra: Universidade de Coimbra; Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 781-816.
(7) CRUZEIRO, M. E. – A Reforma pombalina na história da Universidade. Análise Social. 24 (1988) pp. 165-210; O MARQUÊS de Pombal e a Universidade. Ed. A. C. Araújo. Coimbra 2000; MOTA, L. – A reforma da Universidade enquanto projeto pedagógico (e social) de formação de elites. Revista de História das Ideias. 22 (2001) pp. 491-504.
(8) Fr. Inácio de S. Caetano, bispo de Penafiel, escreveu um extenso tratado de Teologia, "que no seu tempo foi objecto de apreço". Cf. Actas das Congregações da Faculdade de Teologia (1772-1820). Coimbra: Coimbra Editora, 1983, vol. 2, p. 203. O beneditino, Fr. José da Expectação († 1806) compôs um Systema Theologicum ad mentem S. Anselmi. Conimbricae: Acad. Regia, 1705. 458 p. Para um enquadramento ver RODRIGUES, M. A. – Notas sobre a história da Teologia entre 1750 e 1850. In Actas, vol. 2, pp. 185-205. Sobre outros teólogos do séc. XVIII é útil: ROSÁRIO, António do – Teólogos da Academia Real da História Portuguesa (1720-). Revista Española de Teología. 44 (1984) pp. 553-577.
(9) Cf. LLANES, J. L.; SARANYANA, J. I. – Historia de la Teología. Madrid: B. A. C., 1995, p. 230.
(10) Ver OLIVA, João Luís – O domínio dos Césares: Ensino de Direito ecclesiástico na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1836-1910). Lisboa: Colibri, 1997.
(11) AUC, Actas das Congregações (1861-1880), ff. 92-93. Em 1885, recomenda-se em Conselho da Faculdade o compêndio de Bernardino Joaquim da Silva Carneiro - Elementos do Direito eclesiástico português. 3 ed. Coimbra 1882 (AUC, Actas das Congregações (11-07-1885), f. 38).
(12) PACCA, Bartolomeo – Notizie sul Portogallo e sulla Nunziatura in Lisbona. Orvieto: Tipografia Pompei, 1845, p. 40.
(13) AAV, ANL 133, n. p. Nesta análise da situação em Portugal, feita em 18 de setembro de 1801, refere a “perversidade de doutrinas que se ensinam na universidade”.
(14) AAV, Segreteria di Stato. Esteri. Busta 442, fasc. 3, 02-09-1823.
(15) Ver DIAS, Maria Julieta Mendes – A Teologia católica em Portugal de 1910 à actualidade. Revista Lusófona de ciências das religiões. 4 (2005) pp. 269-278.