Prémio de Cultura Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes
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Entrevista

Eurico Carrapatoso e o insondável

Como reagiu quando lhe foi anunciado que a Igreja Católica em Portugal, através do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, o distinguiu com o prémio "Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes"?

Senti-me emocionado. O P. José Tolentino de Mendonça, poeta e pensador que tanto admiro, usou o telefone do meu querido amigo e mestre compositor João Madureira para me comunicar a distinção. Quando atendi a chamada, reconhecendo o número do João no visor do meu telemóvel, e depois de o saudar no ímpeto da nossa amizade secular, longe estava eu de que o motivo daquela chamada era, afinal, outro. Disse-me o João: tenho aqui ao pé de mim uma pessoa que te quer transmitir uma boa nova. Foi então que passou o telefone ao P. José. Nunca tínhamos falado pessoalmente. E a primeira conversa que teve comigo foi para me dizer que o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, em conjunto com outras distintas personalidades, me tinham considerado digno de receber o prémio "Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes". Apanhou-me desprevenido. Primeiro, corei de espanto. Depois, a emoção sincera.


Que importância atribui a esta distinção?

É uma distinção que prezo especialmente, pois consagra, de qualquer forma, a dimensão do insondável que eu sempre desejei, certamente, e seguramente, tentei, inocular naquilo que penso, que invento, que faço e que escrevo. O simples facto de sentir que aqueles que atravessam o século comigo têm recebido e descodificado esta mensagem, tantas vezes plasmada na minha obra de forma subliminar, é, só por si, uma manifestação de ressonância e de cumplicidade. É um doce ciclo de experiência humana que se consuma. Mas também tem o peso das coisas terríveis, no que esta palavra conserva etimologicamente: é grande e pesada a minha missão, responsabilizada agora e mais do que nunca pela volumetria dos mestres que receberam o prémio em anteriores edições: Adriano Moreira, Manoel de Oliveira, Maria Helena da Rocha Pereira, P. Luís Archer, Fernando Echevarria. Todos eles emitem o som cavo e inaudível que só as personalidades que navegam as águas profundas da subtileza parecem emitir. Sim: esse som cavo e appena sentito, que sempre adivinhei como um som semelhante ao do plasma eléctrico da espada do Darth Vader.

Bem sei que tenho barba branca e o cabelo, pouco que é, vai para mais que nevado. Mas tenho apenas 49 anos. Penso em Manoel de Oliveira. E coro de novo, perguntando-me que faço nesta galeria, e se não terá havido, por parte de quem me achou digno de receber o prémio, alguma precipitação.

Uma palavra para o P. Manuel Antunes, insigne pensador e pedagogo com tamanho legado, meu patrono espontâneo, a par de P. Luís Archer, ambos grandes jesuítas. Faço com eles uma viagem elíptica na minha vida, regressando ao Minho, ao Instituto Nun’Alvres, Caldinhas para os amigos, onde aprendi muito e bem. Respiro bem por aqui, por entre estes altos pinheiros do norte. Estou em óptima companhia, que é a Companhia de Jesus.

 

Que obras da sua autoria mais reflectem e manifestam o património cristão a nível cultural, artístico, bíblico e devocional?

Para não ser exaustivo, referiria três obras importantes na minha carreira. Aquele que considero ser o meu opus 1: Ciclo de Natal, de 1991. Este é um tema, aliás, que recorre na minha escrita, seja através de composições originais, como no caso referido, onde faço o tratamento dos célebres textos natalícios em latim, à guisa de motete, na depurada forma a-cappella: O magnum mysterium, Puer natus est, Verbum carum factus est e Quem vidistis pastores?. Já vinha compondo desde 1987. Já escrevera, até, música mais façanhuda. Mas aqui, olhando para o presépio, ter-me-ei encontrado como compositor, no registo enxuto da sinceridade. O mestre, a inspiração, é o Mozart do Ave verum, onde o enigma que separa a simplicidade do meio da transcendência do fim é tamanha, que a coisa mais parece ser do foro de um saber alquímico. Mozart opera ali magia. Comove-nos, sejamos crentes ou ateus. Lembro-me com emoção, a este propósito, do êxtase de Fernando Lopes-Graça a escutar o meu Coral de Letras da Universidade do Porto num concerto realizado na igreja do Foco, na Cidade Invicta. Fazíamos, nesse concerto, reportório essencialmente seu. Mas quando começámos a cantar aquele licor mozartiano, Lopes-Graça elevou a cabeça para o alto e, enquanto as suas sobrancelhas oblíquas pareciam desenhar uma ogiva, os óculos embaciavam-se-lhe de emoção.

Em 1994 compus a minha primeira obra maior, com meios sinfónicos: In paradisum, para coro, quarteto vocal masculino e cordas, dedicada à doce memória de minha tia, Irmã Maria de Lourdes, que falecera em total ataraxia na Consoada de 1993. Data providencial, com algo de cíclico: morreu para renascer. A obra, para minha grande alegria, foi na altura, e tem vindo a ser desde então, interpretada em conjunto e na sequência do impalpável Requiem de Fauré. Um pouco na linha desta obra, e citando o mestre francês, esta peça est d'un caractère doux comme moi-même. Fauré, outra das minhas grandes referências, tem uma visão mais introspectiva do que teatral. A minha leitura é também assim: íntima e serena.

Como já referi noutra ocasião, quando era criança, na fase de aprender as cores, minha mãe confrontou-me com a cor-de-rosa, cuja designação desconhecia. Depois de hesitar um pouco, disparei: isso é vermelho devagar. Seguindo este mote, este In paradisum é azul devagar. Tal como In paradisum, o Requiem à memória de Passos Manuel, composto dez anos depois, em 2004, que é uma extensão natural daquela obra, tendo com ela grandes afinidades, tem um tempo harmónico tendencialmente lento, que paira e produz uma sensação de textura lisa e fluente. Com excepção do Sanctus, que tem a energia dinâmica de um foguetão, com as tompas de capelo alçado, em registo éclatant, prevalece a sonoridade vaporosa da orquestração, criando um ambiente asséptico, andrógino e levemente enigmático. No último andamento, o In paradisum propriamente dito, a música faz lembrar a inquietante imagem de São João Baptista no quadro A Virgem dos Rochedos, de Leonardo, assim indefinida, cheia de mistério, encoberta como está no sfumato dos harmónicos das cordas e no chiaroscuro das trompas mais a harpa. Esta atmosfera vaporosa como que paira na estratosfera. Cheira a ozono.

Poder-se-ia dizer que a música parte de ideias simples, de processos técnicos claros. A gramática é transparente. A concepção não pretende ser alta como o Everest. Nem sequer como a Serra da Estrela. Chega-lhe bem ter a altitude da minha amada Serra de Bornes: mais pequena, mas minha. Mais do que no tempo-curto das paixões humanas, tentei lançar estas minhas obras no tempo-longo, naquele tempo que emana do abismo dantesco sobre o Douro no Penedo Durão, perto de Freixo de Espada à Cinta, ou que ressalta dos magalitos do Cromeleque dos Almendres, ali ao pé de Évora, que estão no mesmo sítio há quatro milénios e lá permanecerão outros tantos, após todos nós – eu, que escrevo, e vós, que ledes - sermos varridos da face da terra, na voragem da morte.

 

Qual a composição da sua autoria que lhe é mais querida? Porquê?

Antes de individualizar uma obra, gostaria de referir que tenho três campos de acção composicional principais: a música para ou com crianças (a ópera A Floresta, sobre a história de Sophia de Mello Breyner Andresen, a cantata cénica O lobo Diogo e o mosquito Valentim, sobre a fábula de António Pires Cabral, O meu poemário infantil sobre texto de Violeta Figueiredo, e A arca do tesouro, sobre texto de Alice Vieira, minha última obra). Outro campo de acção importante é a harmonização da melodia popular portuguesa. Por questões matriciais de identidade, prezo especialmente este conjunto de peças que se constitui como uma espécie de projecto de vida. São já várias séries de harmonizações para coro a-cappella, que designo com o título genérico O que me diz o vento de… (até agora de Miranda, de Serpa, de Arganil, de Óbidos, da Calma que vai caindo, dos Trópicos e de Timor). É um projecto a que regresso sempre que estou desassossegado. Faz-me bem, aguçando-me o estilo, calibrando-me o lápis, oxigenando-me a alma. Vivemos numa época de agressiva globalização cultural segundo o execrável modelo pop anglo-saxónico. Portugal tem uma imensa e antiquíssima tradição poética, desde tempos trovadorescos, numa altura em que outras línguas se libertavam paulatinamente da guturalidade. Hoje a nossa identidade está em risco. Vivemos uma época de massificação. Ainda recentemente assistimos a um facto que comprova à saciedade esta subserviência cultural massificada e grotesca, com a RTP, o canal público televisivo, pago pelo dinheiro de todos nós, a dar um tempo de antena obsceno a uma cerimónia matrimonial anglicana que não nos diz minimamente respeito. A BBC e a casa real agradecem o pagamento dos direitos chorudos da transmissão televisiva, com certeza. E ainda levamos com esta merde* na abertura de todos os telejornais (*passando a gosseria, apenas estou citando Napoleão Bonaparte, que dizia que os ingleses, comerciantes indómitos, eram um povo com um jeito nato para o negócio, até da merde fazendo fortunas). Não há critério, tão pouco juízo crítico. Triunfou a pré-filosofia. A harmonização é um antídoto identitário. Nestas harmonizações de música popular de várias origens e de vários mundos, da Estrela ao Ramelau, do Douro ao Zambeze, cada som é essencial e também testemunha dessa portugalidade filtrada pela minha própria linfa transmontana. Eis, na minha existência, dos poucos valores matriciais que não discuto.

Por fim (os últimos são os primeiros), sublinho o campo sacro, seja através do tratamento de textos canónicos (muitas vezes a par com textos profanos, tais como textos populares, oriundos da antiquíssima tradição devocional portuguesa, por exemplo), seja através de uma inspiração: um quadro, uma escultura. Stigmata, para violeta e arcos, é uma obra concebida literalmente après une lecture de El Greco: inspirada no seu maravilhoso quadro O êxtase de S. Francisco (1580).

Respondendo directamente à sua pergunta, de entre todas as minhas obras, escolho como obra dilecta o Tríptico Mariano, a minha grande obra sacra, escrito em momentos diversos da minha vida. O primeiro quadro, Horto sereníssimo, composto em 2000, trata a Anunciação, inspirado nas serenas representações quatrocentistas de Fra’Angelico.

O segundo quadro deste tríptico, Magnificat em talha dourada, escrito anteriormente (em 1998), trata de Exultação da Virgem, inspirado na Madonna do pescoço comprido, obra-prima quinhentista de Parmigianino, um colo de inquietante desproporção que só Lhe eleva a santidade.

O terceiro quadro, Stabat Mater, composto em 2008, tratando da Dor da Mãe, é fortemente inspirado em duas obras: La Pietà Rondanini, a escultura pungente de Michelangelo Buonarroti (ca. 1564), e o dramático escorço de Andrea Mantegna, Cristo morto (ca. 1500).

Relativamente ao primeiro dos três quadros, o Horto sereníssimo, foi estreado na igreja de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha. Conheci o espaço num dia quentíssimo de Junho de 2000. Tive por aquela igreja uma espécie de paixão à primeira vista. Sendo sóbria, pequena e de uma ornamentação contida, ela tinha contudo aquela inefável harmonia de proporções que dão às formas um carácter universal no espaço e eterno no tempo. Visitei-a ao meio dia, no pino do calor. Havia no ar o odor iniciático das águas sulfurosas. Logo que entrei na igreja, a temperatura desceu subitamente, tornando-se balsâmica naquela frescura. Havia um ambiente de silêncio absoluto, aquele ambiente seráfico das Anunciações de Fra’Angelico, suscitando-me instintivamente o título da peça: Horto sereníssimo. A música seria de uma calma imperturbável como calmo era aquele sítio. Veio depois a grande provação da escrita da obra. Mais do que nunca, precisei eu que um anjo me fizesse uma visita e que me guiasse numa serena harmonia.

Quanto ao Magnificat em talha dourada, a obra foi concebida e escrita na minha aldeia em Trás-os-Montes, durante o mês de Julho de 1998, na companhia da canícula e da maré vaza do tempo. Foi estreada no espaço inefável da Igreja de São Roque, em Lisboa, no dia 24 de Outubro de 1998, por ocasião da celebração dos 500 anos da Santa Casa da Misericórdia. O Magnificat é uma obra tonal em Sol Maior, que é a tonalidade que sinto nas talhas douradas e nos espaços reverberantes de Deus. É uma homenagem ao Barroco, o estilo onde triunfa o movimento, as espirais inebriantes, o puro concerto dos sentidos. Como é natural, o espírito de Bach ecoa, pairando sobre a obra tal como, no princípio, o espírito pairava sobre as águas. Foi acrescentado ao texto canónico em latim, um conjunto de trechos em português que lhe é estranho, uma prática de tropização e de contrafacta que foram muito comuns em tempos medievais. Esses trechos ou tropos profanos, acrescentados ao texto sacro, têm uma temática afim, provindos do culto mariano popular sob a forma de cantos de romaria e de cantos populares natalícios. Devido a este cruzamento de referências e a esta miscigenação de gestos, a obra está cheia de folia estilística, qual tapeçaria de Arraiolos de múltiplas cores e padrões. Para dar um pouco de unidade a tudo isto, o Magnificat em talha dourada sustenta a sua arquitectura em três grandes pilares firmados no princípio, no meio e no fim da obra, onde se pode escutar a citação da inefável melodia popular alentejana de Natal, Ó meu Menino, que confere à música não apenas um grande arco discursivo, assim como uma calma de todo o Alentejo deste mundo. Este aspecto trinitário, altamente simbólico e onde se cruzam o sacro e o profano, colheu-me desde o princípio.

Sobre o Stabat Mater, devo referir que, a propósito do tratamento que fiz do texto, e tomando como exemplos comparativos o tratamento que Luigi Nono faz do texto na sua obra Il canto sospeso (1956), com tendência a fragmentá-lo num gesto pontilhista, ou, para não ir tão longe, o tratamento que Emmanuel Nunes faz do poema Vislumbre (1986), de Mário de Sá Carneiro, decompondo-o serialmente nas suas várias dimensões, da gramatical à fonética, devo dizer que, tendo destas abordagens suficiente curiosidade e até bastante interesse, na qualidade de professor de análise, não me interessam minimamente, contudo, na qualidade de compositor. As várias obras de minha autoria que tratam textos, principalmente as que contêm textos sagrados, ancoram-se em dois grandes esteios: primado do texto e primado da melodia. Por isso, o meu tratamento do texto Stabat Mater é fundamentalmente silábico e homofónico, para que não se perca uma única gota que seja da sua essência, e para que a sua mensagem não sofra qualquer distúrbio no seu percurso entre o intérprete e o ouvinte.

Referiria, para terminar, um momento no Stabat Mater com um significado especial: o tratamento do soneto de Camões, Deus benino. Mais uma vez um tropo, qual corpo extrínseco à sequência Stabat Mater. É um poema natalício de uma beleza solar, que faz faísca no eixo nevrálgico da obra. Ei-lo:

– Dece do Ceo imenso Deus benino
Para encarnar na Virgem soberana.
– Por que dece Divino em cousa humana?
– Para subir o humano a ser divino.

– Poos como vem tão pobre e tão minino,
Rendendo-se ao poder de mão tirana?
– Porque vem receber morte inumana,
Para pagar de Adão o desatino.

– Pois como? Adão e Eva o fruto comem,
Que por seu próprio Deus lhe foi vedado?
– Si, porque o próprio ser de Deoses tomem.

– E por essa razão foi humanado?
– Si, porque foi com causa decretado:
Se o homem quis ser Deus, que Deus seja homem.

Descida do divino em coisa humana e a ascensão do humano a divino! Esta coisa imaterial que é a ascensão, depois da dor, é a transcendência das transcendências. Se acreditamos, ressoamos na primeira pessoa. Se não acreditamos, ressoamos na terceira pessoa. Mas ressoamos.

 

Entrevista concedida por escrito em 30.4.2011.
Eurico Carrapatoso escreve de acordo com a antiga ortografia.

 

Eurico Carrapatoso
© SNPC | 01.05.11

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Eurico Carrapatoso
Foto: João Tuna

 

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