Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - Logótipo
secretariado nacional da
pastoral da cultura

Encontrar o silêncio

Que podemos compreender de nós e do mundo se, em vez de evitarmos o silêncio para nos fazermos saturar do fazer quotidiano, olharmos a vida do próprio silêncio? Quais são os desejos verdadeiramente essenciais? O que quer dizer pensar? O que quer dizer fazer uma escolha? Qual é o sentido da existência e o que tem a ver com aquilo a que chamamos o bem? O encontro com o silêncio é o umbral de acesso a uma reinterpretação da nossa identidade, da liberdade, do encontro com os outros, do caminho com a consciência. Mas todo aquele que tenha realmente encontrado o silêncio pôde aprender que ele nunca é somente um umbral, um espaço ou uma dimensão particular da existência humana, mas é acontecimento, revelação, invisível proximidade de um Outro. Por isso, aquilo que verdadeiramente conta é reconhecer o silêncio.

A ideia em que me movo é a de que para compreender o silêncio, a sua proximidade quotidiana, é necessária uma distância, a distância ao modo corrente de pensar. Mas uma vez alcançado este distanciamento, damo-nos conta de que não se trata tanto e apenas de mudar a maneira de pensar o silêncio, mas essencialmente o facto de o silêncio nos impelir a mudar a maneira de pensar.



A confirmação de como se generalizou esta tendência a considerar o silêncio um estranho indesejado está na raridade em encontrar pessoas que tenham o tempo, a disposição e a abertura necessárias a escutar, dado que a escuta vive precisamente do silêncio



O silêncio, no seu valor revelador, é a porta pela qual se pode aceder a um outro código de interpretação da realidade. É o umbral entre a lógica como exercício de racionalização e o ingresso num verdadeiro códice, isto é, num mundo de sentido que se deixa decifrar mas que não fomos nós a estabelecer. Por este motivo, a presença discreta do silêncio é central quer para a existência de cada um, quer para as formas mais elaboradas de experiência do sentido: a fé, a arte, a filosofia, a investigação científica quando é vivida como escuta e participação na vida do universo. Falo de um silêncio próximo, isto é, de uma experiência e de um encontro inesperados, que têm o seu lugar natural e o seu tempo propício no dia a dia, e não tanto em espaços sagrados, em tempos excecionais ou no cume de uma escalada.

Para o ser humano que vise atingir os seus propósitos, o silêncio é uma zona obscura, um vazio angustiante a rejeitar, preenchendo de sons e ruídos a mente e de atividade e compromissos o dia. Como a solidão, a desorientação, a insónia, a espera, o aborrecimento, a doença, a dor, o silêncio é uma das formas da passividade, da qual a pessoa se afasta de bom grado. Evoca a angústia do nada, suscita instintivamente o temos que nele se reflita uma nulidade, uma inconsistência, uma irrelevância do nosso ser. A confirmação de como se generalizou esta tendência a considerar o silêncio um estranho indesejado está na raridade em encontrar pessoas que tenham o tempo, a disposição e a abertura necessárias a escutar, dado que a escuta vive precisamente do silêncio.



Nunca vemos o silêncio no rosto. Devemos, antes reconhecê-lo na sua habitação na arte, na experiência da liberdade, na busca de sentido, na relação com Deus e com os outros



A distância necessária de que falo pode surgir da inquietação, da insatisfação perante o mundo como é e perante as respostas por nós adquiridas em relação a todas as questões da existência. Este distanciamento pode ser espontaneamente produzido pelo maravilhamento diante de um acontecimento, uma situação ou um pensamento que nos tocam e interpelam, suspendendo as correntes dos pensamentos habituais.

Se os acontecimentos que nos surpreendem são negativos e perturbadores, tem-se a impressão que o silêncio desce sobre a vida, testemunhando que do beco sem saída em que inesperadamente nos encontramos não há evasão possível. Este que desce como um manto surge como um silêncio estranho e ameaçador. Parece-me, todavia, que a direção da sua revelação é oposta quando vivemos algo que, ainda que como negação ou naufrágio, nos diz intimamente respeito e é uma mensagem dirigida à existência.

O silêncio sobe do nosso ser quando é a dor em pessoa a fazer-se encontro. Aqui a distância vivida é a suspensão da confiança no sentido que tínhamos reconhecido até agora, é separação forçada das fontes de alegria que, mesmo se exíguas ou raras, conseguimos ter atingido. Ainda que se trate da distância mais difícil de enfrentar, aquela que queremos preencher o mais depressa possível e de qualquer maneira, acredito que essa distância gerada pela dor oferece a possibilidade de permanecer no silêncio para depois começar a vivê-lo como busca. Porque, mais que o maravilhamento, mais que a alegria, talvez ainda mais que um desejo espontâneo da alma, é a dor que nos impõe buscar um sentido para a existência.



O tempo é-nos dado simplesmente para ser, para nos reencontrarmos. O silêncio começa então a falar a sua língua, traduzindo-se antes de tudo como uma nova experiência do tempo: o encontro com o tempo como duração plena de possibilidades inéditas, espaço inesperado para mudar, reconhecer, aprender



Qualquer que seja a via ao longo da qual ocorre este encontro, a distância assim adquirida não conduz a um conhecimento direto do silêncio. Nunca vemos a face plena da ideia ou da liberdade (Merleau-Ponty); o mesmo acontece para o silêncio: nunca o vemos no rosto. Devemos, antes reconhecê-lo na sua habitação na arte, na experiência da liberdade, na busca de sentido, na relação com Deus e com os outros.

Quando aceitamos calar ou nos encontramos sem palavras, quando entramos imprevistamente numa região em que vozes, sons e ruídos são abafados, damo-nos conta num instante da medida do nosso ser, de que não somos o centro do mundo. Se é uma dor forte que nos conduz até aqui, o sentimento correspondente mais provável é o sentido de impotência e de irrelevância. Mas em todos os outros casos do quotidiano, em tal experiência do limite sentimos com alívio que a vida e as coisas não dependem de nós, e que podemos suspender todos os compromissos sem que nada desabe. Assim nos é dado o tempo. Experimentamos que não devemos continuar a persegui-lo, a preenchê-lo, a aproveitarmo-nos dele. Porque, pelo contrário, o tempo é-nos dado simplesmente para ser, para nos reencontrarmos. O silêncio começa então a falar a sua língua, traduzindo-se antes de tudo como uma nova experiência do tempo: o encontro com o tempo como duração plena de possibilidades inéditas, espaço inesperado para mudar, reconhecer, aprender.



O silêncio não a mera ausência de palavras, sons ou ruídos, não é um espaço indefinido de não-sentido, nem a pausa entre uma palavra e a outra. Ao contrário, o silêncio possui uma força comunicativa misteriosa e radical



Neste tempo reencontrado consegue-se compreender que existe uma passividade fecunda, aquela que conhecem todos aqueles que – como as mulheres, os camponeses e os educadores – têm confiança com os fenómenos da vida que cresce e com os seus processos de amadurecimento. Começa a compreender-se que o silêncio não a mera ausência de palavras, sons ou ruídos, não é um espaço indefinido de não-sentido, nem a pausa entre uma palavra e a outra. Ao contrário, o silêncio possui uma força comunicativa misteriosa e radical. O silêncio vive nos estratos mais profundos da comunicação. Por isso, no seu valor essencial, não se manifesta nas formas de relação ou nas situações em que já aconteceu uma rutura da comunicação: o calar forçado de quem não conhece a língua dos outros, o embaraço de quem não encontra as palavras, a reticência ou a mentira de quem quer evitar dizer como estão as coisas, a hostilidade de quem não quer mais comunicação com o outro, a fuga de quem decidiu não mais fazer-se ouvir e encontrar por outro.

Estes são os silêncios. Neles o elemento vital da comunicação foi já reduzido às escórias. O silêncio é muito mais. Exprime a promessa e a presença paradoxal da «unidade amor», isto é, uma relação em que cada vivente pode ser ele próprio e acolhido por qualquer outro. Os silêncios esmagados e cortantes são a perda do silêncio, o esquecimento da sua promessa. Muitas vezes, para as coisas melhores da vida faltam-nos as palavras, e as poucas que temos surgem desde logo como retóricas e gastas, se não ilusórias. Mas a vida eloquente de quem acolheu o silêncio como companheiro é palavra em sentido criativo, é dom e comunicação de si que faz surgir e mantém toda o comunicar propriamente humano.


 

Roberto Mancini
Professor de Filosofia
In Diocese de VIcenza, Itália
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: Mihailo K/Bigstock.com
Publicado em 06.10.2023

 

 
Relacionados
Destaque
Pastoral da Cultura
Vemos, ouvimos e lemos
Perspetivas
Papa Francisco
Impressão digital
Paisagens
Prémio Árvore da Vida
Vídeos