A obra de Edward Hopper (22 de julho de 1882 – 15 de maio de 1967) representa pessoas absorvidas no trabalho em espaços privados ou apanhadas em momentos imprevisíveis, típicas estradas americanas, vitrinas, paisagens marinhas, escritórios, quartos de estalagem, casas que sobressaem pela imponência, telhados e terraços. São os lugares do vasto campo da experiência humana normal. Hopper extrai também só simples cenário americano das periferias uma poesia recôndita, Por este motivo, entre outros, os seus quadros abeiraram-se das páginas de Hemingway e dos versos de William Carlos Williams, Wallace Stevens e Robert Frost.
Hopper admirava Hemingway. É possível discernir uma analogia entre a prosa de um e as telas do outro: estas, com efeito, atentas às formas e à simplicidade, são capazes de tornar épica e densa de conotações o quotidiano da vida, mergulhada em cenários urbanos, nas cores do anoitecer, na claridade noturna dos bares ou na luminosidade deslumbrante de um Sol distante. Mas os quadros de Hopper achegaram-se também aos haiku japoneses, por causa da sua extraordinária beleza, fruto de uma complexa simplicidade, como afirmou o artista Ushio Shinohara: «Hopper é como um haiku: poucas palavras mas grande significado». O próprio Hopper, num seu ensaio, faz referência aos pintores japoneses Hiroshige e Hokusai. A representação realista é carregada de uma altíssima densidade simbólica.
Mas, na realidade, a obra de Edward Hopper é como uma semente deposta na cultura contemporânea que produziu frutos de todo o género: influenciou pintores como David Hockey e Mark Rothko, cineastas como, por exemplo, Alfred Hitchcock, Wim Wenders, David Lynch, Paul Thomas Anderson, como também escultores e fotógrafos, além de numerosos poetas e narradores, como Paul Auster e Raymond Carver. Alguns exemplos: Hitchcock inspirou-se no quadro “House by the railroad” para dar ambiente ao “thriller” “Psycho”, assim como em “Night windows” para o filme “Rear window”; Wenders foi profundamente inspirado por Hopper na sua fotografia e na realização de filmes como “O amigo americano” e “Paris Texas”.
Conhecidíssima é a tela “Nighthawks”, de 1942. Tomemo-la como exemplar da obra do pintor dos EUA. O quadro representa um local de Greenwich Village, de Nova Iorque. É noite, a rua solitária, as montras das lojas despidas. Nada, porém, sugere ameaça ou perigo. O bar, que ocupa dois terços da tela, é uma longa vitrina. No interior está fortemente iluminado por uma intensa e brilhante luz artificial, que reverbera para o exterior. A forma do bar recorda a de um triângulo com um canto arredondado que aponta a direção para o exterior da tela, para a esquerda.
O empregado do bar, vestido de branco, dirige o olhar para dois clientes, um homem e uma mulher. Esta, apoiada ao balcão, está absorvida, com pose acentuadamente feminina, a olhar algo que tem entre as mãos. O homem que está ao seu lado olha em direção ao empregado, mas os seus olhares não se cruzam. As suas mãos e as daquela mulher não se tocam, ainda que estejam muito próximas: cruzam-se nos olhos do espetador apenas graças à perspetiva.
De costas vemos um outro cliente com um copo na mão. Os dois homens evocam pela pose e traços o Humphrey Bogart de “The maltese falcon” (“Reliquia macabra”), de 1941. A intimidade não é dada pelos olhares nem pela luz (que não se retribuem) nem pela luz (que, apesar de amarela, é fria). Aliás, o quadro comunicou a muitos um sentido de radical isolamento dos protagonistas, como se fosse um “salão das ilusões perdidas” ou uma espécie de gaiola de vidro ou um aquário colorido.
Em todas as telas de Hopper, os significados são profundos: a solidão, apesar de existente, é uma questão lateral. Como ele próprio afirma, a sua pintura é um gesto amplo de reação à existência, uma maneira completa de ocupar-se da vida. E em que consiste esta reação?
O elemento que parece permear todos os trabalhos mais importantes de Hopper é uma «dimensão de escuta», qu epode ter as ressonâncias emocionais mais diversas, até gerar no espetador a sensação de assistir a um momento de incubação. O coração pulsante da inspiração de Hopper, o seu motor, é um olhar de profunda e absorta expetativa, um lento mas profundo ritmo de escuta e tensão para uma história que é percecionada e revelada como à espera de uma anunciação ou de uma visitação. Não é por acaso que o pintor, para falar da sua obra, tenha usado termos como «surpresa», «espanto» e «humildade».
Os quadros de Hopper não são representações de uma realidade determinada e não vivem num espaço e num tempo definidos: as figuras são como que colhidas numa surpreendente quietude, à espera que qualquer coisa aconteça, como se uma revelação estivesse ao alcance da mão, mas que ainda não se realizou.
Perante qualquer quadro é possível colocar as perguntas: «O que conduziu àquele momento? O que acontecerá depois daquela que parece uma explosão inevitável?». A resposta está fora da superfície do quadro. A solução da expetativa não é dada, mas sugerida como uma necessidade que não se pode eliminar: «É como se fossemos espetadores de um acontecimento a que não somos capazes de dar um nome. Sentimos a presença daquilo que está oculto, daquilo que sem dúvida existe mas não é revelado», comentou o poeta Mark Strand.
Cada imagem é um mosaico de uma história em devir. O ponto de desenvolvimento desta energia de espera é o olhar do observador, que assume os traços de testemunha de um acontecimento que ainda não se concretizou.
As cenas de solidão, por isso, não são definitivas no seu triste equilíbrio: domina uma aguçada sensação de espera, a certeza que qualquer coisa tem de acontecer ou que alguém tem de chegar, mesmo que não se saiba o quê ou quem. Hopper é portanto o mestre que sabe fixar o instante instável em que a vida se manifesta como desejo de uma forma de salvação.
A luz é o que salva a obra de Hopper do niilismo: ela oferece a possibilidade de redenção, um raio de esperança na dura realidade do quotidiano. A esperança, a salvação, a redenção assumem as conotações da luz ou do vento. A luz e o ar podem atravessar janelas e vidros, omnipresentes nos quadros de Hopper, símbolos de um muro que pode sempre ser transponível. Para ele a janela é como a abertura de uma câmara obscura grande como o quarto, que lentamente e firmemente separa a luz da escuridão. Hopper é um génio das janelas.
O contributo de Hopper para a pintura moderna foi a de ter tornado épico o tédio, de ter sacralizado os momentos de banal desatenção da vida de cada dia, de ter “batizado” e “salvado” a realidade com a luz. Hopper compreendeu que, para aludir ao aspeto espiritual da natureza visível, não precisava de sujeitos solenes, temas nobres. Bastava uma passagem de nível, uma casa, um telhado.
Ele intuiu que o maior mistério não está presente naquilo que é misterioso, mas na realidade normal, naquilo que aparentemente está longe do mistério. Os seus quadros não são nem enigmáticos nem misteriosos, portanto, mas apontam para o coração do nosso ser no mundo. Nesse sentido, as suas imagens são “visões”. O seu significado não é de ordem psicológica ou sociológica. Mas toca as cordas fundamentais da vida humana: o seu permanente estado de incubação; as tensões das suas expetativas; o seu instável equilíbrio entre melancolia e desejo, entre solidão e espera de uma “visita”; a sua necessidade de uma forma de “salvação” e de “graça”; o seu olhar para além da “janela”, dirigido para uma possível “anunciação”.