«Medita-se e investiga-se acerca do “dom”, mas colocam-se também muitas perguntas acerca da presença do dom hoje: numa sociedade dominada pelo mercado, assinalada por um acentuado individualismo, com os traços do narcisismo, egoísmo, “philautía” [amor-próprio] e egolatria que a caracterizam, há ainda lugar para a arte da doação?»
Esta é uma das inquietações colocadas na introdução do novo livro “Dom e perdão – Por uma ética da compaixão”, de Enzo Bianchi, fundador da comunidade monástica de Bose, em Itália, lançado pela Editorial A.O.
«Há uma outra questão, em meu entender decisiva: na educação, na transmissão às novas gerações da sabedoria acumulada há atenção ao dom e à ação de doar como ato autêntico de humanização? Há consciência de que o dom é a possibilidade de lançar o isco às relações recíprocas entre seres humanos, qualquer que seja depois o resultado?», interroga o autor.
Enzo Bianchi observa que «a partir de uma leitura sumária e superficial, pode concluir-se que hoje já não há lugar para o dom, mas apenas para o mercado, a troca utilitarista», podendo até dizer-se que «o dom é apenas um modo de simular gratuidade e desinteresse onde reina, pelo contrário, a lei da utilidade».
«Numa época de abundância e opulência, pode também praticar-se o ato do dom para comprar o outro, neutralizá-lo e retirar-lhe a sua plena liberdade. Pode inclusivamente usar-se o dom – pensemos nas “intervenções humanitárias” – para mascarar o mal que age numa realidade de guerra. Esta ambiguidade que pesa sobre a doação e pode perverter o seu significado não é nova», assinala.
Quais são os «riscos» e «possíveis perversões» do dom?: «O dom pode ser recusado com atitudes de violência ou de indiferença distraída; o dom pode ser recebido sem despertar gratidão; o dom pode ser desperdiçado», até porque a doação é «uma ação que requer o assumir de um risco».
«O dom pode também ser pervertido, pode tornar-se um instrumento de pressão que incide sobre o destinatário, pode transformar-se num instrumento de controlo, pode encadear a liberdade do outro em vez de a suscitar», refere Enzo Bianchi.
Entre os cristãos, é sabido como «ao longo da história, até o dom de Deus, a graça, pôde, e pode ainda, ser apresentado como uma conquista do ser humano, o novo Prometeu, ou como uma ação de um Deus perverso, cruel, que incute medo e infunde sentimentos de culpa».
O livro não esconde que «a doação, tal como o amar e o confiar, é uma arte que sempre foi difícil: o ser humano é capaz de tal porque é capaz da relação com o outro, mas continua a ser verdade que este “doar-se a si mesmo” – pois disto se trata, não só de dar o que se tem, o que se possui, mas de dar aquilo que se é – requer uma convicção profunda no relacionamento com o outro».
Apesar das pulsões egoístas associadas ao dom, a recusa individual de construir a comunidade e abraçar a imunidade, o autor está convicto de que «sempre se conhecerá o excesso do dom, pois o ser humano é sempre capaz de operar o bem, sentindo a própria insuficiência e buscando o outro para uma plenitude de vida que ele não possui em si. Por isso, apesar de as tendências dominantes contradizerem por vezes a lógica da doação, persiste o evento do dom».
“O dom”, “O perdão” e “A compaixão” constituem os três capítulos do livro, que começa por declarar que «no doar há um sujeito, o doador, que, na liberdade e por generosidade, sem constrangimento, faz, por amor, um dom ao outro, independentemente da resposta que dele receberá».