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Pré-publicação: “Descalço também se caminha”

«Não sou um otimista sem os pés na terra. Aliás, os textos que neste livro ofereço têm cores distintas e não fogem sequer ao escuro de alguns instantes… Mas a noite é tempo de repouso. Sem a saúde que alongaria os dias, perdi os sapatos de longos percursos e o ritmo de km/hora. Mas ando, sentindo mais a areia e as irregularidades do piso. Sim; descalço também se caminha!…»

“Olhares”, “Canções de amor” e “Reflexões” constituem as três partes em que se divide a coletânea de textos de João Aguiar Campos, com ilustrações de Luís Valente, que a Paulus Editora lança nas livrarias no final da próxima semana com o título “Descalço também se caminha”.

Natural de Terras do Bouro, no Gerês, Braga, o Cón. João Aguiar Campos nasceu a 23 de dezembro de 1949 e foi ordenado padre em 1973. Trabalhou na pastoral da comunicação social durante quatro décadas, nomeadamente como jornalista e diretor do Diário do Minho, presidente do Conselho de Gerência da Rádio Renascença e diretor do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da Igreja católica.

O livro, de que apresentamos alguns excertos, vai ser apresentado a 6 de abril, às 21h00, no Espaço Vita, em Braga, por D. Américo Aguiar, que o papa nomeou hoje bispo auxiliar de Lisboa, e que sucedeu ao Cón. João Aguiar nas mesmas funções na Renascença e Secretariado Nacional das Comunicações Sociais.

 

Textos de Cón. João Aguiar
In “Descalço também se caminha”
Paulus Editora

 

Querida manhã

Acendo os olhos devagar:
discreta lamparina,
pingo de laranja...

Não sopres, vento,
que as mãos furadas
não fazem copo protetor
e eu não gosto
de procissões escuras,
de cânticos apagados!...

Manhã, querida manhã,
quando passares,
mete-me uma folha de dia
por debaixo da porta.

Logo que possa
irei escrever-lhe
os sonhos que sobraram
da noite!...

 

Vou

O amanhã pode não ser um sítio;
mas é para lá que vou!...

 

Abelha

Não a quis perturbar, mas quis ver
os seus voos matinais.

Ali andou ela, a abelha, largos minutos,
a saltitar de flor em flor: poisa aqui,
beija ali; rodopia e volta atrás;
espreita e bebe…

Os seus critérios são os seus critérios,
que suspeito mas não sei
de certeza certa.

Uma coisa sei, porém – e isso é uma
lição: a abelha não perde tempo com
flores de plástico!...

 

Ao som da chuva

Enquanto viver não Te verei.

Mesmo a imaginação é incapaz, meu
Deus, de ir além de um embaciado
pensamento. Mas sei o que agora basta:
és Pai e é assim que queres ser invocado.

Pai,
não me surpreende que tenhas colo
de nuvens, olhos de luar e palavras de
brisa. Mas só uma convicção afirmo: não
sou capaz de Te pensar sem um sorriso
permanente, de modo que não haverá
olhar que Te olhe e se desprenda!...

A eternidade julgo-a o espanto
permanente de quem recebe a carícia
impensada e gratuita do Amor que
de nada precisa. Espanto mudo.
Puro espanto...

Mas hoje é ainda o tempo do espelho
embaciado e da imagem desfocada.

Tenho de Te ver em cada irmão.

Se neles não Te aceitar agora,
nunca Te verei!...

 

Louvor

Que hino tocarei na minha
grafonola de erva?…

Que música soltarei na veiga dos meus
Olhos, dançando na flor do feno?

Mesmo que desafine, erga-se
a gratidão e o louvor!…

 

Os fariseus

A misericórdia é um risco.

O amor é um risco.

A ternura é um risco…

São um risco, porque haverá sempre
por perto um fariseu de critérios afiados
e disposto a discorrer sobre a “espécie”
ou a condição...

Os fariseus não sabem nem querem
nada que vá além da aparência
calculista!...

 

Laudes no Cávado

Vinde e exultemos de alegria
no Senhor!…

Louvai o Senhor, águas mansas
de acordar sereno e lavado.

Louvai-O, sombras e caminhos abertos
a olhos peregrinos.

Louvai-O, quantos desejais voar, traçais
rotas de esforço conjunto ou cultivais
a esperança.

Louvai-O, pontes generosas
na fraternidade das margens.

Louvai-O, flores erguidas ao céu
como ramo agradecido.

Louvai-O, ervas efémeras
e plantas doridas.

Louvai-O, aves aquáticas e gaios
grasnando sobre o leite das espigas.

Louvai-O, borboletas na riqueza
das cores.

Louvai-O, canções no passo das ondas.

Louvai-O, sinais protetores.

Louvai, comigo, o Senhor.

Ajudai a fragilidade da minha voz,
perfumai o meu coração, lavai o meu
olhar, fortalecei a minha perseverança.

A vossa beleza seja o meu alimento
no caminho do Bem!…

 

A chave da porta

Não é fácil impor silêncio à criança que trazemos
dentro de nós. Sobretudo quando ela quer encher
o ar de perguntas, sem cuidados diplomáticos nem
vontade de perceber o critério adulto que adoça
as dúvidas. Mas a dificuldade aumenta quando
à curiosidade da criança se junta a prática de
questionar, explicar e interpretar. Então os porquês
são mais que muitos…
Acreditem que estou mesmo a falar de um
verdadeiro desassossego, de uma íntima
turbulência que centrifuga em permanente
autoavaliação e, para fora, põe no olhar um
microscópio em cuja lamela se analisam
pessoas e opções.
Não raro, até Deus é questionado, como se Ele
não nos tivesse entregado o mundo para nosso
governo inteligente; ou não nos houvesse dotado
da liberdade que apenas se concede totalmente
a quem se ama além dos limites.
Sejam quais forem as razões, os porquês são,
já o disse, mais que muitos.
Todos os sentem, por certo, inscritos nessa
espécie de recanto onde vive o que percebemos
mal ou não percebemos de todo.
Mas quando saímos de nós e olhamos à volta,
às nossas perguntas somam-se as alheias, num
ruído que não tem fonte certa; antes parece nascido
de todos os lados. No entanto, a multiplicação das
dúvidas não gera a clarificação. Esta – escrevo-o
convictamente – precisa do silêncio contemplativo.
Não me refiro a um qualquer fazer de conta em
que não se passa nada. Nem a um alheamento
cómodo ou cobarde. Nem à displicência preguiçosa,
que deixa para os outros tudo o que dá trabalho ou
pode complicar a vida. Muito menos ao medo que
suja tanto a autoridade como a obediência…
O silêncio contemplativo é, na minha definição, um
cuidado esforçado de todos os sentidos –
como se cada um deles passeasse descalço sobre
o terreno da procura, onde alguém perdeu agulhas.
Só este silêncio permite o discernimento. Só ele
deixa saber (saborear) o que chega, trazido na
brisa, à porta das nossas cavernas. Só ele nos abre
ao espanto, numa dupla vertente: o espanto de
constatarmos a fragilidade do que dávamos como
certo e o espanto de descobrirmos como são, afinal,
estupendas as obras do Senhor e profundos os seus
desígnios (cf. Salmo 91).
Só o silêncio contemplativo nos faz
verdadeiramente humildes e, consequentemente,
capazes de confessarmos que, demasiadas vezes,
queremos “sondar o mar com uma boia”!
A pressa de ter opiniões ou a pressa com que as
solicitamos (ou no-las solicitam) está a roubar-nos
– também na Igreja – as palavras maduras, ao
mesmo tempo que sobram conceitos gasosos ou
líquidos. Mas não deveríamos já saber que não é
do ensino dos escribas que se recebe a luz, mas
d’Aquele que tem autoridade (coerência de vida)?
Comecei por confessar a minha própria e
complicada experiência, que reafirmo: é difícil,
nas mais diversas circunstâncias, poisar no colo de
Deus a criança irrequieta e o adulto inquieto; crer
e não apenas querer; distinguir a inspiração da
aspiração; perceber as horas do Espírito
e a exuberância das adegas.
Tenho para mim que o silêncio contemplativo
se impõe e dará um fruto: confiaremos tanto que
entregaremos a Deus a chave das nossas portas.
Desejo tanto ser capaz!...

 

Natal

É Natal e as luzes riem. Eu, porém, tenho olhos
molhados:
– Pusemos chaves até nas portas das grutas,
de modo que só há relento com camas de chão.
É certo que nos hotéis há espaço, mas não há Visa
no bolso dos perseguidos ou desalojados; dos que
não têm trabalho ou dos que trabalham para côdeas
quotidianas;
– Os dedos das ruas tocam músicas diversas e as
luzes pintam cores nos olhos. Mas de olhar para o ar
não vemos o chão de uma boina aberta e as canções
calam o gemido ou o choro;
– Temos as mãos ocupadas de sacas de compras
e fazemos contas ao que ainda falta. De tão
ocupadas, as mãos desculpam-se de não chegarem
aos bolsos para a moeda solta das nossas sobras;
– Escrevemos Boas Festas e Santo Natal sem pensar
que não há bondade nem santidade exclusivas
e que o nome de Deus é Pai; Pai que nos remete
para a busca intensa dos irmãos e para a celebração
do regresso dos que, depois de partirem, tiveram
força e coragem de encontrar o regresso…
É Natal e as luzes riem nas hastes das renas,
na campainha e nas barbas do velho Nicolau, nos
troncos das árvores donde pendem como frutos fora
de tempo. Mas em cada pessoa descuidada Deus
continua sem sítio, cercado de arame: do arame dos
nossos olhos indiferentes e do coração endurecido.
Ai como pesa a ausência nos nossos presentes!...

 

O tempo

O tempo nunca durou sempre o mesmo; mas
a verdade é que dura cada vez menos. Apenas as
insónias são demasiado longas, mesmo que,
de facto, se esgotem no mudar de posição...
Sim, as insónias são um enorme eucalipto que
desertifica a terra do sossego!
Longo é, também, o tempo da saudade, que
começa a ser um século logo que a despedida
dobra a esquina da rua ou acende a porta do
elevador ou da escada. Um «venho já» cola-se ao
mostrador do relógio, cujos ponteiros arrastam
os pés e riscam de roxo o sangue que chega ao
coração.
Breve, breve – cada vez mais breve – é o tempo
do abraço e da palavra; do olhar e do silêncio
contemplativos. Pedimos, por isso, a repetição:
«Dá-me outro abraço», «diz outra vez que me amas».
Ou tentamos libertá-lo da distância: «Depois
telefona; fico à espera!»
Esperar é, de facto, um dos verbos mais longos.
Quase infinito, para o tempo da vida…

 

Carol

Tenho-me lembrado muito da Carol, que não sei
quem seja…
Sei apenas que tenho visto o seu nome escrito num
local por onde passo com frequência. Ergo os olhos,
quase mecanicamente, e lá está: «Carol, amo-te
muito.»
Lá está, não; lá estava... Porque hoje anotei que a
frase perdeu o “muito”, coberto por um rabisco
indecifrável.
Gostaria de aceitar que o autor descobriu uma
espécie de pleonasmo, pensando que ou se ama
totalmente ou não se ama. Assim sendo, talvez ali
tenha ido aligeirar a extensão da declaração e, ao
mesmo tempo, dar-lhe uma profundidade radical.
Mas preocupa-me que a Carol não veja as coisas
assim e, a estas horas, esteja amargurada, pensando
que, perdido o “muito”, tudo venha a dar em “nada”.
Não sei se me devia preocupar com estas coisas que
os muros dizem. Mas, que lhe querem?, ponhamos
o caso em nós…


 

Edição: Rui Jorge Martins
Imagem: Capa | D.R.
Publicado em 01.03.2019 | Atualizado em 26.04.2023

 

Título: Descalço também se caminha
Autor: João Aguiar Campos
Editora: Paulus
Páginas: 432
Preço: 15,00 €
ISBN: 9789723021080

 

 
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