«A liturgia natalícia contém estes dois versículos do livro da Sabedoria: “Enquanto um profundo silêncio envolvia todas as coisas e a noite chegava a metade do seu rápido curso, a tua omnipotente Palavra lançou-se do céu, do teu trono real”. Estas palavras falam do mistério da incarnação, e o silêncio infinito, que nele opera dentro, encontra nelas a expressão mais feliz. As grandes coisas amadurecem no silêncio (…). As forças que não fazem tumulto são as que realmente valem.» Esta reflexão de Romano Guardini sobre o sentido do Natal soa hoje tão desatualizada, que se torna num desafio às mentalidades e costumes espalhados, porque deles revelam toda a superficialidade.
Para nós, o Natal é a festa da ruidosa alegria, das montras faustosamente iluminadas, do centro comercial e das prendas. O mistério do silêncio noturno, de que fala o texto bíblico, está rigorosamente banido delas. Não só a Palavra de Deus, mas as próprias palavras humanas perdem o seu significado num incessante falatório, de que a infalível troca de desejos, entre pessoas que já nem recordam o porquê, é o tragicómico emblema.
Todavia, o Natal continua a ser, no imaginário coletivo, a festa mais importante do ano. E, ainda que o seu originário significado seja mal conhecido, continua a ser, de alguma maneira, um chamamento, um apelo tácito dirigido não apenas aos crentes, mas a cada ser humano ainda capaz de vigilância, e, por isso, capaz de experimentar o maravilhamento – como os pastores naquela noite de há mais de dois mil anos – diante do anúncio do anjo.
Aliás, em certa medida, este anjo é o próprio acontecimento do Natal: ele vem sacudir-nos do nosso torpor, dizendo-nos que, na capa opressora do quotidiano – com os seus ritmos frenéticos de trabalho, com os seus igualmente frenéticos momentos de distração, com a sua corrida aos consumos, com a sua indiferença ao rosto do outro –, abre-se uma brecha, que alguma coisa de novo aconteceu num passado longínquo e pode ainda ser redescoberto e revivido no presente.
Para colher esta novidade, no entanto, é preciso saber parar e colocar-se à escuta do grande silêncio que o nosso rumor não consegue, de todo, exorcizar e esconder. O silêncio da alma, que está por trás de todas as palavras, e do qual elas extraem o seu verdadeiro significado; o silêncio do cosmo, com os seus espaços interestelares de milhões de anos-luz e as suas galáxias lançadas nestes espaços em velocidades inimagináveis; o silêncio que paira sobre as nossas vidas, e que para alguns é o de Deus, para outros a voz do nada.
Estes silêncios podem ser fonte de inquietação – o cristão Pascal escreveu: «O silêncio destes espaços infinitos assusta-me» – ou de uma imensa paz, como para o ateu Leopardi, que, em “O infinito”, fala de «profundíssimos silêncios» em que a alma docemente se abisma. Nenhuma confissão religiosa, nenhuma ideologia antirreligiosa pode ignorá-los, assim como nenhuma pode confiscá-los para seu uso e consumo. Pertencem à humanidade dos homens e das mulheres enquanto tais.
Precisamente por isso, porém, é grave que crentes e não crentes pareçam hoje convergir numa triste corrida à balbúrdia e à fuga do mistério da vida que estes silêncios deixam filtrar. E que a nossa sobreabundância de estímulos, de mensagens, de slogans publicitários tenha eliminado o saudável vazio dentro do qual se pode perceber e acolher o rosto do outro, sobretudo do pobre – de que é símbolo natalício a indefesa realidade do Deus menino nascido numa manjedoura –, reproduzindo no nosso mundo opulento a exclusão de então: «Para eles não havia lugar no alojamento» (Lucas 2,7).
Deixemos, então, que o Natal seja, ao menos por um momento, verdadeiramente tal. Saíamos, por um breve instante, da sala iluminada onde ruidosamente nos banqueteamos, e deixemos que a doçura da noite toque o nosso rosto e o nosso coração. Para nos encontrarmos, ao menos por um instante, infinitamente sós no silêncio que nos envolve.