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Diálogo

Da utilidade do inútil

«O que é mais importante (criar, manter, repensar) na relação da Igreja com a Cultura?»

Primavera é sinónimo de novos ares, horizontes abertos, cores renovadas. Esta Primavera, mesmo se pouco respeitadora da tradição climática, trouxe-me pequenos sinais do que pode ser uma resposta à pergunta: “O que é mais importante criar, manter, repensar na relação da Igreja com a cultura?”

Dei comigo a pensar porque é que, em plena crise, centenas de pessoas aproveitaram a hora de almoço de 21 de Março para ir ouvir a Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, ao fundo do Parque Eduardo VII, em Lisboa. Temos que trabalhar para sermos úteis ao país, ouvimos todos os dias. Temos que trabalhar muito, repetem-nos à exaustão. O que estávamos, então, ali a fazer naquela saudação primaveril convertida em música, usando um tempo útil (tempo é dinheiro...) para ouvir uma orquestra ao ar livre, coisa inútil?

Afinal, sem crise, com crise ou apesar da crise, as pessoas procuram divertir-se, fazer pausas no quotidiano. Muitas vezes, para tentar fugir dos problemas, assumindo uma alienação pouco saudável. Outras, entrando no divertimento industrializado e massificado que, por vezes, deixa de ser divertimento e passa a ser apenas mais uma ocupação forçada do tempo.

Mas ele existe, o tempo do divertimento, do lazer, da festa. E levanta tremendos desafios aos cristãos. Quer na forma como se divertem ou usam o tempo livre, quer na forma como propõem a utilização. Que fique claro: não defendo que tenha que haver filmes cristãos, festivais de música cristã ou bares cristãos numa espécie de sociedade “purificada” e alternativa ao que existe. Mas na forma como cada um se situa ou naquilo que se propõe pode ser também traduzida uma identidade.

No precioso texto Do Tempo Livre à Libertação do Tempo, do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (disponível em http://www.snpcultura.org/do_tempo_livre_a_
libertacao_do_ tempo.html
), podemos ler que “a democratização, o incremento das propostas culturais de vivência dos tempos livres são aspectos positivos de uma mutação profunda nos modos de vida, consolidando uma consciência do direito ao bem-estar e à qualidade de vida”. Por isso, a sua utilização é um “factor de desenvolvimento e acréscimo que dá vida à vida”.

Entre outras ideias importantes para os tempos que correm, o documento diz ainda que “a gratuidade do lúdico mostra uma dimensão existencial que não podemos negligenciar, abre uma clareira no utilitarismo habitual com que se pensa o tempo (time is money) e, em consequência, o homem. (...) Pensar o que se faz do tempo é reflectir como se define o homem.”

Esta afirmação leva-me a pensar que tive pena ter visto a Igreja abdicar tão prontamente da afirmação de uma outra antropologia que não a que nos pretende vender o homo economicus como única via: perante a ditadura financeira que nos cerca, a atitude deveria ter sido a de dizer a políticos, economistas, comentadores e financeiros que não deveríamos perder salários nem nenhum feriado – nenhum mesmo, civil ou religioso.

Para além das razões económicas que outros já sublinharam (trabalhar mais quatro ou cinco dias não resolve o problema do país; a questão não é que os portugueses trabalham pouco...), há outra razão mais funda: a celebração, a festa, introduz um tempo de diferenciação fundamental para a vivência dos afectos, do lúdico, da contemplação. E é isso que nos torna mais pessoas. O discurso da Igreja repete-o incessantemente, teria sido bom tê-lo traduzido numa posição concreta.

Como diz o texto citado, o tempo livre “não é apenas um tempo ‘entre’ tempos, já ocupados, mas interroga-nos, antes de mais, sobre a realização pessoal e social que projectamos, sobre o projecto que pessoal e socialmente desejamos para as nossas vidas. (...) O tempo livre é tempo de integração. De enriquecimento cultural, pessoal, afetivo. De exercitação do músculo da imaginação e da criatividade. De explicitação da vida interior.”

O tempo livre coloca-nos perante outra questão: ele é hoje um território ocupado em grande parte pelos jovens. E não é preciso fazer grandes esforços para reconhecer a dificuldade de a Igreja chegar aos mais novos – seja pelo discurso, seja por algumas práticas. Na sua Breve História da Alma, o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura, cita Jack Kerouac, em Pela Estrada Fora: “A vida é sagrada e cada momento é precioso.” Esta é uma imagem da cultura juvenil actual, perante a qual a mensagem “eterna” da Igreja deve aceitar pôr-se em causa (por isso, penso que se teria acertado muito mais se, no ano de Guimarães Capital Europeia da Cultura e de Braga Capital Europeia da Juventude, se tivesse escolhido o tema da cultura juvenil para a sessão do Átrio dos Gentios que terá lugar em Guimarães, em Novembro).

Numa curta entrevista que pude fazer-lhe para o Público (edição de 26 de Maio), o cardeal Ravasi dizia que a Igreja deveria ser capaz de fazer descobrir “o eterno no tempo – e isso é o cristianismo. (...) Trata-se de descobrir a importância do instante, do tempo que se vive, mesmo para construir-se a si mesmo. Se a pessoa vive bem o presente, vive-se já, em certo sentido, criando. Quando se está enamorado, é como se se vivesse o eterno, a felicidade. (...) Devemos, talvez, tirar partido desta ligação ao quotidiano que têm os jovens, para lhes dizer que no presente se joga a vida.”

Jogar a vida. Os afectos, os anseios, as expectativas, o trabalho, o amor, a contemplação, o gratuito. Poder simplesmente olhar o mar, escutar uma música, ler um livro, ver um filme, passear, estar com amigos, beber um café... Na mesma entrevista, o cardeal Ravasi acrescentava: “Os modelos de desenvolvimento deveriam ser de tipo humanístico (...). A religião deve fazer qualquer coisa nesta linha. E também a cultura: impedir que tudo esteja nas mãos da finança, que o primado seja o do poder financeiro e do ter. (...) Henry Miller, descrente e anticristão, autor do Trópico de Câncer, escrevia: ‘A arte, como a religião, não serve para nada a não ser para mostrar o sentido da vida.’ Isto não é pouco.”

É mesmo muito.

 

Este texto segue a anterior norma ortográfica.

 

António Marujo
Jornalista do Público
© SNPC | 04.06.12

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