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Da divina força sem violência - «Dilexit nos»

Nietzsche foi criado numa época histórica de geral, vil, falta de misericórdia, em que se abusava da fraqueza de incontáveis milhões de seres humanos. Infelizmente, esta tem sido a condição comum da humanidade, salvo raras exceções. Em seu modo próprio, o mundo em que Nietzsche nasceu era, apenas, a continuação sua contemporânea de um mal tão antigo quanto a própria presença humana no mundo.

Mesmo numa parte do mundo que se autodenominava cristã, se pregava um triste ‘evangelho’ de absurda submissão a tal estado de coisas, em nome de Deus. Em tal parte do mundo, em traição aos fundamentos que se anunciava servir de orientação ao modo de ação cristã, tal, assim falso, ‘evangelho’ era posto em praça pública a fim de tornar incoativamente fracosfrágeis e vulneráveis todos os seres humanos são – e de manter assim fracos os seres humanos que eram considerados como não fazendo parte da oligarquia pseudo-cristã.

Tal objetivo era servido propondo e impondo, em vez de princípios de sã força inspirados da ação de Cristo, valores de humano aviltamento, de rebaixamento onto-antropológico, reduzindo o comum dos seres humanos abrangidos a meras funções ancilares de quem assim os reduzia. Nada mais anti-cristão pode haver.



Para muitas pessoas, cansadas de viver num cinzentismo mórbido e moribundo de constante rebaixamento da grandeza humana, este novo ‘evangelho’, de Nietzsche surgiu como proposta alternativa, clara, a tal ambiente teológico, filosófico, antropológico, ético e político vigente



Ora, Nietzsche, nascido no seio de parte da oligarquia fundada em valores redutores da humana possibilidade de bem próprio, individual de comunidade, acusou tal ‘civilização’, em que nasceu e em que foi educado, de ser algo de doentio, de ontologicamente miserável, acusando o cristianismo de nada mais ser do que um modo triste e mortal de vida.

Em oposição a este ‘evangelho’ de fraqueza e ressentimento contra a – outrossim irredutível – grandeza humana, Nietzsche propôs uma metamorfose vital em que o Homem pudesse assumir a sua grandeza própria, sem reduções, sem fraqueza, sendo e vivendo em pura alegria ontológica, ao ponto da amoralidade – pelo menos, como era comummente entendida por esses contra quem lutava. É um ‘novo evangelho’ esse que Nietzsche propõe, em nome da vida, irrestrita – sem Deus e suas leis, e sem humanas leis, também – , da alegria sem limite.

Para muitas pessoas, cansadas de viver num cinzentismo mórbido e moribundo de constante rebaixamento da grandeza humana, este novo ‘evangelho’, de Nietzsche surgiu como proposta alternativa, clara, a tal ambiente teológico, filosófico, antropológico, ético e político vigente.



Se Nietzsche, em grande parte – as universalizações são sempre demasiado arriscadas, demasiado ‘humanas’ –, tem razão no que critica em termos da hipocrisia de ‘um mundo’ dito «cristão», não a tem quanto à grandeza do Evangelho de Cristo



Todavia, se se quiser ser fiel à grandeza ontológica da proposta do «Evangelho» de Cristo, intui-se facilmente que, entre a triste realidade do rebaixamento da existência – da humana, por maioria de razão – em que culturalmente se vivia no tempo de Nietzsche – e em que se vive neste que é o nosso tempo – e o que há de mais profundo em termos antropológicos como proposta cristã – do Evangelho de Cristode grandeza própria de vida, há uma grande diferença, que Nietzsche não conseguiu ver ou não quis ver. Todavia, Nietzsche não está só.

Pouco há na grande incivilização em que o globalíssimo mundo se vai tornando – já assim era no tempo de Nietzsche, tempo dos grandes imperialismos variegados – que possa ser considerado como «cristão», como realmente alicerçado no Evangelho (na boa-nova) dos Evangelhos. De nada serve que alguém se diga cristão: pode quem quiser dizer o que quiser; o que conta é a realidade concreta de toda a sua ação, de que o dizer é apenas uma parte, essa que o vento costuma ‘levar’.

Ora, se Nietzsche, em grande parte – as universalizações são sempre demasiado arriscadas, demasiado ‘humanas’ –, tem razão no que critica em termos da hipocrisia de ‘um mundo’ dito «cristão», não a tem quanto à grandeza do Evangelho de Cristo, em termos quer da força quer da alegria com que tal força, que coincide exatamente com o que quer «o Cristo» quer o «cristão» é, quando é ato de força. Cristo não é um fraco cobarde; o cristão não deve ser um fraco cobarde. Não se confunda tal com violência, sempre abuso de força, por excesso ou por defeito.



A força de «o Cristo», força que será incorporada, como paradigma para todo o possível cristão no “septivium” das virtudes cristãs (paradigmáticas: temperança, coragem, prudência, justiça, fé, esperança, caridade), é o modelo universal de motor de ação para qualquer candidato a cristão. Sem tal, não há cristão



Todavia, que força é esta? Não é, certamente, a força dos tiranos, «por pensamentos, palavras, atos e omissões»; por exemplo, a cobardia de um Pilatos ou de um Simão-três-vezes-negador. Se assim fosse, Nietzsche teria razão. Não tem.

Ora, «o Cristo», esse ‘o do cálice’, é tudo menos fraco. Frágil – como Pilatos, como Simão, como Nietzsche; mas também como Maria, a frágil-forte – «o Cristo é». Frágil, sim: fraco, não. De modo nenhum.

Quem tem coragem semelhante – igual não pode haver, pois a coragem é ato próprio irredutível de cada ser humano, incomunicável, incomparável em absoluto – à que «o Cristo» teve aquando da questão trágica que ele próprio suscitou sobre beber o que estava para si guardado no cálice, sem que tivesse, sequer, resposta, pois qualquer resposta eliminaria o absoluto de autonomia que a situação implicava.

Isso que define o que é ser-se humano, precisamente à imagem e semelhança de Deus, de esse Deus que não pode responder (não é psicologia, é ontologia em auto-poiese), isso o que é?

Quem? Eu? Tu? Nietzsche?

Isso é Cristo em ato de resposta: paradigmaticamente, é, como possibilidade própria irredutível, cada ser humano.



«Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através de uma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos»



Supremamente, esta terrível cena – tão ao gosto do trágico clássico (e trágico é, sempre, desde que não haja ressurreição) amado por Nietzsche – faz de «o Cristo» «o corajoso» por excelência, pois é esse que – esse quem – escolhe, podendo não beber o cálice – as consequências seriam devastadoras se fosse esta a escolha –, beber o cálice. O mais de tal decorre.

Fraco, «o Cristo»? Deveras?

Ora, a força de «o Cristo», força que será incorporada, como paradigma para todo o possível cristão – precisamente, isso que falhou em grande parte das vezes e que Nietzsche critica (e bem) –, no septivium das virtudes cristãs (paradigmáticas: temperança, coragem, prudência, justiça, fé, esperança, caridade), é o modelo universal de motor de ação para qualquer candidato a cristão. Sem tal, não há cristão.

 Não é, então, «o Cristo» esse a quem falta força, coragem, humana-divina nobreza.



O coração nunca é violento: a violência é da ordem da reação, do resquício de bestial animalidade presente no ser humano; é a resposta irrazoável, imprudente, injusta, a uma ação sofrida, a uma paixão



Falta, sim, a quem não quer ser como «o Cristo»: todavia, para poder «querer» tal tem de ser tal em ato – próprio; e é em tal, em tal acto que se é, que reside a real autonomia – a irredutível força. Fracos Homens fazem ‘incristãos’. É a estes fracos Homens que a crítica de Nietzsche deve ser dirigida; são eles quem perverte em ressentimento e cobardia o que é o mandamento e exemplo de «força» de «o Cristo». Sem violência. Incoercível força sem violência.

Todavia, tal «força de o Cristo» não é uma força qualquer. Sobretudo, não é, reafirma-se, violência.

Sábias palavras de Francisco, o Papa, podem ajudar-nos. Diz assim, Franciscus no §203 da sua Carta Encíclica Dilexit Nos. Sobre o amor humano e divino do coração de Jesus (usa-se a tradução das Paulinas, sem identificação do responsável pela versão, pp. 121-122):

«No que dissemos, é importante notar vários aspetos inseparáveis, porque estas ações de amor ao próximo, com todas as renúncias, abnegações, sofrimentos e fadigas que implicam, cumprem esta função quando são alimentadas pela caridade do próprio Cristo. Ele permite-nos amar como Ele amou e, assim, Ele próprio ama e serve através de nós. Se, por um lado, parece apequenar-se, aniquilar-se, porque quis mostrar o seu amor mediante os nossos gestos, por outro lado, nas mais simples obras de misericórdia, o seu Coração é glorificado e manifesta toda a sua grandeza. Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através de uma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos. Assim Cristo sacia a sua sede e espalha gloriosamente, em nós e através de nós, as chamas da sua ternura ardente. Reparemos na bela harmonia que existe em tudo isto».

Situar o amor no coração é situá-lo no «topos» simbólico da força, da coragem, isso sem o que pode haver desejo, mas nunca haverá vontade: o coração significa o motor da ação propriamente humana, essa que não é reativa, própria das bestas (variegados reativos ‘cães de Pavlov’).



Faz bem Franciscus em reinvocar, em positiva grandeza ontológica e ética, o coração de Cristo como sede e fonte do ato de bem para com tudo, do ato de amor, inconfundível com qualquer paixão de violência, com qualquer desejo cleptomaníaco, com qualquer mania ou capricho tirânico



Por tal, o coração nunca é violento: a violência é da ordem da reação, do resquício de bestial animalidade presente no ser humano; é a resposta irrazoável, imprudente, injusta, a uma ação sofrida, a uma paixão, mesmo que esta paixão seja apenas a da notícia de que em mim há apenas um cobarde incapaz de ação, mas sempre pronto para a reação; uma ‘coisa irracionalmente animada’ sempre pronta a reagir ressentidamente.

Tal reação, simbolicamente, não promana «do coração», mas ‘das tripas’, do que há de mais animalesco em nós (e em que tanto uma certa modernidade cobarde gosta de se atolar a modo de desculpabilização). Simbolicamente, é a este ‘ventre’ e ‘baixo-ventre’ animalesco que a violência se deve, não ao coração; realmente, deve-se a escolhas em que se elege algo diverso do ‘melhor bem objetivamente possível’.

Faz, assim, bem Franciscus em reinvocar, em positiva grandeza ontológica e ética, o coração de Cristo como sede e fonte do ato de bem para com tudo, do ato de amor, inconfundível com qualquer paixão de violência, com qualquer desejo cleptomaníaco, com qualquer mania ou capricho tirânico. Sodoma e Gomorra não têm coração, mas são riquíssimos em ‘ventres’ e ‘baixos-ventres’.



Não se trata de usar Cristo como um refeitório, como depósito de energia grátis, como sustentáculo de preguiça ou de maldade, pois deste tesouro de possibilidade se alimenta o que faz o bem e o que faz o mal – na verdade, o amor de Deus como ato criador nunca se ausenta, é a criatura que se afasta na relação –, mas de usar da graça do dom (o tesouro) de possibilidade como fonte de energia para agir pelo bem



Assim sendo, é pela força motriz deste «coração» vocacionado para o bem objetivo, coração nosso e de Cristo em cada ato de amor – seja posto por quem for –, que nascem as «ações de amor ao próximo, com todas as renúncias, abnegações, sofrimentos e fadigas que implicam, cumprem esta função quando são alimentadas pela caridade do próprio Cristo».

Esta «alimentação» não é apenas doutrinal, não é apenas paradigmática, a partir do exemplo realíssimo de Cristo, é também, e sobretudo, providencial, no sentido em que «o coração de Cristo» é, na relação com o ser humano, acto de amor, de caridade, de dom de possibilidade de bem, sem defeção, sem traição, sem desatenção. É a fraqueza humana – não confundir com fragilidade ou vulnerabilidade – que impede tal alimentação.

Não se trata de usar Cristo como um refeitório, como depósito de energia grátis, como sustentáculo de preguiça ou de maldade, pois deste tesouro de possibilidade se alimenta o que faz o bem e o que faz o mal – na verdade, o amor de Deus como ato criador nunca se ausenta, é a criatura que se afasta na relação –, mas de usar da graça do dom (o tesouro) de possibilidade como fonte de energia para agir pelo bem. Pelo bem de quê? Pelo bem de tudo. É este o sentido de se ser «católico»/universal, católico como o coração de Cristo, católico como o amor de Deus, católico como a misericórdia da Santíssima Trindade.



Mãos à obra, pois, vencendo, com força e sem violência, os obstáculos do caminho, desmentimos a posição de Nietzsche, não apenas por meio de vãs palavras, mas por realíssimas palavras, e, sobretudo, por «atos»



Católico, também, como a mínima Teresa de Calcutá, gigante nos atos de amor, «sem olhar a quem». Assim: «Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através de uma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos».

Difícil?

Então, excelente: mãos à obra, pois, vencendo, com força e sem violência, os obstáculos do caminho, desmentimos a posição de Nietzsche, não apenas por meio de vãs palavras, mas por realíssimas palavras, e, sobretudo, por «atos», sem «omissões» e sempre com «pensamentos» para Deus e para o bem comum, perfeito à nossa medida como perfeito é Deus à sua medida.

Fraco Cristo? Fraco o cristão?

Haja força.


 

Américo Pereira
Universidade católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: Alexander Grey/Unsplash
Publicado em 28.05.2025

 

 

 
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