Propositadamente, abri de modo aleatório a Primeira exortação apostólica do Papa Francisco. Evangelii Gaudium, o olhar aterrou no § 211.
Terrível parágrafo. Perante a dureza da maldade humana, a dureza de um sentido humano incompatível com atos tirânicos que ameaçam toda a humanidade, seja na sua materialidade mundana, seja na sua essência. Lembre-se que os nazis começaram por matar o sentido humano das pessoas que decidiram aniquilar, assim facilitando o seu trabalho, o trabalho que, finalizado, livraria o mundo nazificado da presença dos «indesejados». Os nazis não são caso único. Variegadamente, sempre existiram seres humanos teleologicamente semelhantes aos nazis em termos éticos, políticos, antropológicos. Na verdade, «Arbeit macht frei»: o trabalho assassino dos nazis faria que se libertassem de todos os «indesejados». A receita, antiga, não está esquecida e pode ser aplicada a qualquer momento.
Ora, o modo de dividir a humanidade entre os «desejados», que são, precisamente, os «nossos», e os «outros» que, por não serem «nossos», são, assim e apenas por tal, «indesejados», persiste. A forma «etnocêntrica», ao modo onto-antropológico (pondo em causa o ser e a existência de tais «outros»), não morreu com o fim da Segunda Guerra Mundial, manteve-se, pois faz parte do pior que habita a mesquinha mente de quem assim pensa, de quem assim é, independentemente das desculpas que possam ocorrer.
Em tal, e, definitivamente, em termos ontológicos – mesmo sob misericórdia, que acolhe, mas não apaga magicamente o absoluto do que foi em ato –, já têm a sua recompensa, no que é santa justiça poética. Todavia, se tal dimensão ética, intransitável do sujeito que a é, premeia sem fim quem assim agiu, que é de esses que são vitimados por tais actos, que estão no objectivo fim de tal maldade?
Tal redução ontológica é irremível.
Se o perdão é bom para o agente do mal, de nada serve para a sua vítima, aniquilada; e este é o limite absoluto do perdão: negar tal, é entrar imediatamente em antropológica blasfémia, é negar o que há de mais precioso ontologicamente na humanidade, isto é, o seu direito ao seu possível próprio. Quem tem direito – seja a que nível for, seja em que âmbito for – de eliminar o absoluto do possível de um outro ser humano?
Tal limite absoluto nasce da impossibilidade de alterar ontologicamente isso que foi destinado, pelo ato de mal, à vítima. O perdão pode ser total para o agente do mal, no que é manifestação nobilíssima de misericórdia, acto em que o ser humano mais se aproxima do divino, transcendendo toda a miserável psicologia que o amarrava à memória de um passado já morto, morto assim que existiu. Tal implica que a vítima do mal não tenha sido mundanamente aniquilada, pois os cadáveres não conseguem perdoar.
No entanto, para a vítima mundanamente aniquilada, na relação com o agente do mal de aniquilação, ninguém existe que possa perdoar. Não faz sentido alguém (mesmo Deus) perdoar em nome de um outro, aniquilado: é, aliás, antropologicamente blasfemo, pois é usurpar (ainda que ilusoriamente) uma prerrogativa ética que apenas a esse que foi aniquilado compete. Redobra-se, assim, a redução ontológica da aniquilação com a redução ética do próprio irredutível do ato de perdoar.
De notar que só há um bom cenário onto-antropológico, ético e político, neste âmbito, que é esse em que ninguém é reduzido, ninguém é vitimado. Qualquer outro cenário (possível ou concreto-realizado) implica sempre um absoluto de mal que, em si mesmo, não tem redenção possível. É este o preço indelével da humana maldade.
Que fique bem claro: o agente do mal pode ser perdoado, todavia, o mal feito, em si mesmo, nunca é passível de ser apagado, remido.
É sobre este sentido necessariamente trágico do mal que se apoia essoutro sentido da necessidade da prudência, a fim de se evitar – tanto quanto humanamente possível – agir mal (não se trata de erro, impassível de ser evitado em termos absolutos, mas de mal propositado enquanto tal).
A morte e ressurreição de Cristo serviu também para assumir sobre si o mal assim irredutível, impassível de ser assumido pelo aniquilado, impassível de cair no absoluto vazio do absoluto nada. Tal reforça o sentido de que tão misericordioso ato é, precisa e exatamente, um assumir do absoluto da consequência do mal, não em substituição do outro, aniquilado, mas como próprio, sem redução, sem mágica aniquilação.
Cristo assume a todo o irremível do mal e guarda-o, pois não há como o aniquilar.
A irredutibilidade do mal, a sua própria irremissibilidade, é a dor de Cristo. A grande dor, muito mais terrível do que as dores das vergastadas ou dos pregos na carne.
Ora, isso sobre que Franciscus reflete, no § 211 da encíclica que aqui nos ocupa, pondera duramente sobre as relações perversas que certos seres humanos impõem – sem qualquer direito a tal exercício – sobre outros seres humanos. Tal é o mal. Tal nunca deveria existir.
São as seguintes as palavras do Papa (versão da Editora Paulus, sem indicação da autoria da tradução, p. 152):
«Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objeto das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9) Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás a matar cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede de prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita cumplicidade… A pergunta é para todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade.».
Isto sobre que Franciscus reflete pertence ao âmbito do que nunca deveria existir. Todavia, existe, e ajuda a manter o poder de oligarquias anti-humanas, formas parasitárias que apenas sobrevivem sacrificando os «irmãos», sempre os reduzindo a meros servos dos seus interesses, como coisas descartáveis, sem qualquer relevo ou importância ontológica própria.
Note-se que têm «valor»; aliás, é apenas porque têm valor como objectos exploráveis que lhes é permitido viver, viver enquanto tal valor lhes for reconhecido. Ora, reduzir um ser humano a algo como valor, seja este qual for, é, imediatamente, aniquilar isso que o ergue como propriamente humano: a sua irredutível e inavaliável dignidade humana, que, em termos da tradição judaico-cristã, é feita à imagem e semelhança do criador, de Deus. Fora deste âmbito, é, pelo menos, existente com uma dignidade ontológica ética e política de semelhança com os demais seres humanos, em ambiente ateu e agnóstico, ou com divindades várias, em ambiente crente vário.
Tais entidades parasitárias do bem próprio e irredutivelmente alheio – próprio do «outro» (que é um semelhante) – podem ser perdoadas pelo mal que fizeram. Não há outro limite à misericórdia humana senão o da vontade de perdoar; à misericórdia divina, senão o do desejo de ser perdoado, sem o que não pode haver perdão divino.
Todavia, nada, nada, em absoluto, remedia o mal feito.
Não é com néscio pensamento mágico que se combate os efeitos do mal, que, pura e simplesmente, não são combatíveis. É com, é através, de «pensamentos, palavras, atos e não-omissões», no sentido do bem, é com amor para com o próximo, que não significa ‘gostar dele’, mas agir no sentido objetivo do seu bem, mesmo que, para tal, haja que, imitando Cristo, pegar numa verdasca e expulsar quem age perversamente, pois o bem primeiro a preservar não é o do autor do mal, mas o da preciosidade do «templo», quer dizer, do absoluto do bem, absoluto que nunca deve ser maculado.
De cada vez que quem nota o mal e não age de forma a anular a sua presença, a sua possível continuidade, está a incluir-se no grupo dos que «têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade». Não são apenas os ditos ‘poderosos’ quem preenche tal grupal conjunto, é, também, cada um de nós, quando, cobarde, podendo agir no sentido do bem, não o faz.
Por exemplo, eu.
Por mais que nos arrependamos, permitimos que um mal passível de ser evitado, não o fosse, e, em tal, já temos a nossa eterna recompensa. No entanto, a vítima que, com tal «omissão», ajudámos a produzir, também já tem a sua, na forma de uma qualquer redução onto-antropológica. Quem omitiu a ajuda merece tal recompensa, mas quem sofreu o mal, não, nunca.
Ora, pense-se bem: isso sobre que Franciscus discerne neste seu parágrafo não corresponde a uma realidade provavelmente tão antiga quanto o símbolo veiculado pela questão «onde está o teu irmão», ou seja, desde os primórdios do humano histórico (sem símbolo)?
Então, pergunta-se, e a pergunta permanece: tal humanidade, em que se pratica este tipo de constante redução humana, merece existir?
Vista tal ‘perversa coisa’, objetivamente, ‘de fora’, parece que a resposta mais adequada será: não, não merece existir.
Talvez não seja, então, má ideia de todo, assumir o mandamento de Cristo acerca do amor.
Pode ser que ainda se esteja a tempo.