Nascida em 1914, na Holanda, Etty Hillesum morreu em 1943, aos 29 anos, dois meses depois de ter sido deportada, com a família, para o campo de concentração de Auschwitz, na Polónia.
É por a leitura dos seus textos continuar «a criar um espantoso turbilhão de interpretações e ampliações» que a Paulinas Editora lançou o livro “Cada batida do coração”, com seleção e comentários do Fr. MichaelDavide.
«Gostaríamos de presentear-vos com a possibilidade de passardes algum tempo, quase de mão dada, com uma mulher que através das suas palavras escritas em caderninhos de “linhas azuis”, se tornou amiga de muitos», escreve o organizador da obra.
Com efeito, Etty «tornou-se companheira de caminho de todos os que procuram aprender com a sua dor sem fechar os olhos ao sofrimento dos seus irmãos e irmãs em humanidade».
«Diante dos “horrores”, cada vez mais atrozes, de que é testemunha, Etty Hillesum chega a uma conclusão inesperada e talvez mesmo um pouco irritante para nós que a lemos: “A vida é bela”, aponta o Fr. MichaelDavide.
Etty Hillesum ensina aos seus leitores uma lição: «Viver com gratidão e plenitude cada instante da existência, apesar de tudo aquilo que se deva ou se possa sentir, é a tarefa que ninguém pode fazer em vez de nós, para podermos ser declarados maduros e aptos para a vida».
«O testemunho de Etty Hillesum não nos deixa escapatória: a nossa vida deve medir-se com o metro da sensibilidade à dor e à necessidade de quem é mais pobre e mais pequeno», realça a meditação final.
A concluir, lemos: «São muitas as coisas que podem tornar a vida bela ou feia, agradável ou invivível, mas a última paçlavra é sempre e só a do amor que é mais forte do que a morte».
Oração
Etty Hillesum
In “Cada batida do coração”
Um dia pesado, muito pesado. Um “destino de massa” que temos de aprender a suportar juntamente com os outros, eliminando todos os infantilismos pessoais. Aquele que pretender salvar-se deve começar por saber que se ele não for, irá outro no seu lugar. Como se importasse muito que se tratasse de mim ou, então, de qualquer outro, ou ainda de um terceiro. Já se tornou um “destino de massa” e devemos ser muito claros sobre este ponto. Um dia muito pesado. Mas sempre sei encontrar-me a mim própria numa oração – e sempre me será possível orar, mesmo no espaço mais apertado. E, nem que seja um embrulhinho, eu amarro-o sempre às costas e levo, cada vez mais como uma coisa minha, aquele pedacinho de destino que sou capaz de suportar: com este embrulhinho já caminho pelas estradas.
Inseparável embrulhinho
Fr. MichaeleDavide
In “Cada batida do coração”
A oração é uma grande porta para aprender a amar e é a escola para apreender a arte de viver sem restrições interiores nem barreiras em relação a todos com quem somos chamados a partilhar a longa peregrinação da vida. De facto, não é difícil entrever em Etty Hillesum uma digna filha de Abraão que, quando ousa orar, fá-lo para arrancar a Deus a salvação dos habitantes de Sodoma e Gomorra, identificando-se completamente com a sua condição de “cinza e pó” (Gn 18, 27) e sentindo-se radicalmente solidário até com os habitantes daquelas cidades transviadas, continuando a esperar que haja ao menos alguns justos que devem ser honrados e salvos.
A oração é precisamente como o amor: é visionária! Vê sempre além daquilo que se pode ver, para colher, para perceber um excedente de graça em todas as ocasiões e em todas as pessoas. Assim, este excesso de graça torna-se uma tarefa para abrir sulcos hospitaleiros em que as pequeníssimas sementes de bem possam ser guardadas até germinarem.
Todos nos recordamos de como o fariseu da parábola evangélica (cf. Lc 18, 9-14), na sua presunçosa oração, se afastava dos seus irmãos em humanidade, sublinhando quanto a sua vida era diferente das deles. Ao contrário, Etty Hillesum, na escola da oração pura e purificadora, que aprendeu com a ajuda de Spier, tornar-se-á cada vez mais presente e solidária na vida dos seus irmãos e irmãs. Na escola da oração, Etty nunca poderá considerar – nunca e nunca – a sua vida nem mais digna nem mais preciosa do que a de qualquer outro, até mesmo do que a do seu perseguidor. A oração é sempre um ato de confiança que dá espaço à intimidade, que faz com que se espere sempre o melhor sem nos tornarmos prisioneiros do pior temido ou reconhecido.
Oração e confiança, confiança como oração… Com efeito, só os poetas conseguem dizer o gesto do amor através de uma sobriedade de palavras que tende para a própria essências de palavras, porque a oração entra na categoria das «coisas íntimas, quase mais intimas do que o sexo».
Não temos conhecimento de que Etty tenha participado em alguma oração oficial, tanto na sua tradição judaica como em outras com quem esteve em contacto. A oração de Etty é, continua a ser e quer permanecer, um gesto íntimo. Uma vez mais – e é sempre assim – o vínculo entre a oração e o amor é absoluto! Para Etty Hullesum, a oração não é uma questão só de palavras, mas, sim e antes de tudo, uma questão de gestos. O seu gesto de ajoelhar-se na intimidade, que se torna o gesto de se inclinar – amorosamente – sobre os outros abeirando a sua intimidade com um respeito e uma empatia que teria extasiado a própria Edith Stein. No seu itinerário, a oração é a única arma capaz de derrotar o mal, é a única revolução e restauração possível.
Misteriosa e estupendamente, a oração transforma-se numa mão estendida para Deus, para, finalmente, lhe dar a possibilidade de Ele se exprimir, de exprimir o seu coração, os seus sentimentos e a sua imensa dor. Deste modo, a oração torna-se uma grande responsabilidade. Trata-se da maior das responsabilidades que uma criatura pode ter diante de Deus e a favor dos homens e das mulheres. Esta responsabilidade assume em Etty a força de um amor que não se rende e que chega ao «extremo teológico» de quem pode falar a Deus tão íntima e ousadamente que o dispensa do seu dever de nos ajudar, sem, contudo, nunca o libertar do dever de permanecer ligado a nós: «E, se Deus deizar de me ajudar, então serei eu quem ajudará Deus».
A oração não é um acesso privilegiado ou uma forma de evitarmos o trabalho custoso, mas a forma mais perfeita de percorrermos até ao fim o nosso destino arriscando a nossa vida, como a rainha Ester que ousa desafiar as leis dos Medos e dos Persas (dela Etty tem o mesmo nome, só que no diminutivo). Perante qualquer restrição da necessidade, perante as realidades mais absurdas e face ao inevitável, ainda poderemos orar para não deixarmos de respirar e de esperar por todos. O coração de Etty Hillesum está cada vez mais habitado por dois desejos absolutos e complementares: o de solidão e de calma – em cujo contexto poderá cultivar serena e amplamente a sua busca interior – e o de viajar no meio dos homens e das suas histórias, para se tornar a sua fiel “cronista”.
Ela imagina-se lançada em direção à Rússia infinda numa viagem semparar, para descobrir e fotografar através da sua intuição interior a geografia dos intermináveis territórios das almas. Na realidade, estes dois desejos – de calma e de caminhada – são cada vez mais um só desejo. Mas o desejo à volta do qual se unificam todos os desejos é o de estar completamente no seu lugar e até ao fim numa espécie de recolhimento habitual. Este recolhimento abre-se, com toda a naturalidade, à intercessão como acolhimento, na profundidade do seu ser, da existência do outro em toda a sua alteridade. Por vezes, esta alteridade é dramaticamente difícil de integrar, sobretudo quando assume o rosto do perseguidor que se esforça por aniquilar. Também podemos orar por ele para não nos deixarmos contaminar pelo Mal, sem nos esquecermos do absoluto respeito que se deve até ao nosso algoz.