Entre os mais autorizados biógrafos de Bento XVI, que a 29 de junho de 2021 celebra setenta anos de ordenação sacerdotal, está o padre italiano Roberto Regoli, diretor do Departamento de História da Igreja da Universidade Gregoriana e diretor da revista “Archivium Historiae Pontificiae”. O seu livro “Além da crise da Igreja. O pontificado de Bento XVI” (em italiano, ed. Lindau) é uma narrativa do pontificado de Ratzinger no contexto mais amplo da história da Igreja. O investigador mostra a grande figura do papa-teólogo que teve de enfrentar múltiplas crises tanto na Igreja como no mundo.
Em 18 de abril de 2005, após um dos mais breves conclaves da história, foi escolhido como bispo de Roma o cardeal Joseph Ratzinger. O novo papa escolheu o nome de Bento para referir-se a Bento XV, o papa da primeira guerra mundial, e S. Bento de Núrsia, pai do monaquismo ocidental e padroeiro da Europa. Porquê estes dois personagens?
No nome escolhido há uma clara visão política do catolicismo e do papado no mundo. A Europa é central na visão de Ratzinger, mas aqui o horizonte papal supera as fronteiras continentais. A referência à paz parece inevitável após o 11 de setembro de 2011 e na presença de várias regiões de guerra em 2005. Em todo o caso, como disse o próprio Ratzinger poucos dias depois da sua eleição, na referência ao papa Bento XV, homem de paz ao tempo da primeira guerra mundial, vê-se o desejo do próprio Ratzinger de estar «ao serviço da reconciliação e da harmonia entre os homens e os povos», e na referência a S. Bento de Núrsia, que, graças à sua Ordem, «exerceu um influxo enorme na difusão do cristianismo em todo o continente», vê-se «um ponto de referência fundamental para a unidade da Europa e um forte chamamento às irrenunciáveis raízes cristãs da sua cultura e da sua civilização».
Em 2005 começava o pontificado do ex-prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, um dos mais estreitos e confiáveis colaboradores de João Paulo II. Para muitos, o seu pontificado, programaticamente, é visto como a continuação do pontificado de João Paulo II. O que é que no pontificado de Bento XVI marca a continuação e que dossiês foram novos?
Ratzinger foi a alma teológica do pontificado de S. João Paulo II, e de facto na sua eleição os cardeais queriam uma continuação das linhas do pontificado precedente. Esta marca especifica-se com facilidade nos temas antropológicos, nas questões de ética sexual, bioética, defesa da vida, no empenho ecuménico, na realização do Concílio Vaticano II e na busca da unidade da Igreja. Obviamente há diferenças. Como a maneira de delinear o diálogo inter-religioso (com Bento XVI mais cultural e nada teológico), uma atenção reduzida às relações políticas, a par de implementar modalidades concretas de realizar a unidade (com a tentativa concreta de recuperar o diálogo com o mundo lefebvriano e com a constituição dos ordinariados para os anglo-católicos).
Joseph Ratzinger estava bem preparado para ocupar a cátedra de Pedro: um grande teólogo da Igreja (provavelmente o maior), conhecedor da Cúria (durante mais de 25 anos dirigiu uma das suas mais importantes congregações) e das Igrejas locais (encontrou-se com bispos de todo o mundo durante as visitas “ad limina”). Mas, por outro lado, não era um político nem administrador (a Santa Sé faz política internacional, a Cidade do Vaticano tem de ser administrada). Como é que isto influenciou o seu pontificado?
Sem dúvida que esse foi o lado fraco do seu pontificado. Bento XVI não foi um político. Ao longo das decisões do seu pontificado não se preocupou em encontrar o consenso e implementá-lo, mas apenas colocou a pergunta sobre o justo, o verdadeiro e o bom, fornecendo a sua resposta. Infelizmente, isso tornou-o exposto enormemente aos ataques, sem encontrar apoios adequados ao seu trabalho. Ele cobria os outros, mas quem o cobria?
Bento XVI tinha muitos inimigos, inclusive dentro da Igreja. Antes de tudo, a sua eleição foi obstaculizada pelo denominado “grupo” de St. Gallen. Os eclesiásticos de alto nível convidados pelo bispo de St. Gallen, na Suíça (entre os quais os cardeais Martini, Silvestrini, Murphy-O’Connor e Danneels), que queriam a Igreja “aberta” e criticavam a Igreja durante a última fase do pontificado de João Paulo II. O seu alvo foi primeiro que todos o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Ratzinger, porque, segundo eles, exercia uma influência centralizadora e conservadora. Como se não bastasse, também na sua pátria muitos católicos e bispos alemães criticavam abertamente o papa («na Alemanha algumas pessoas procuram desde sempre destruir-me», disse o papa emérito num livro-entrevista). Como é que Bento XVI reagia a estes ataques e às críticas?
Permanecia no seu lugar. Não se descompunha. Continuava a sua política eclesiástica. Como soubemos das palavras do próprio cardeal Danneels e da sua biografia autorizada, existia uma rede de cardeais e bispos que se reuniam para promover a sua agenda eclesial. Ratzinger nunca teve uma sua rede/estrutura, nem se preocupou em criar uma. Como teólogo que era, tinha uma clara consciência da obra de Deus na Igreja e no mundo, pelo que estas dinâmicas muito humanas não o interessavam particularmente. Conhecia as críticas, estava consciente dos ataques, e a sua resposta era ao nível das argumentações, e não de uma política de repressão. Ele queria convencer, e não impor. Aqui surge uma característica de Ratzinger, que é ao mesmo tempo a força e a fraqueza do seu pontificado.
O papa que muitas vezes era apresentado como “conservador” fez um gesto “revolucionário”: a renúncia ao pontificado. D. Georg Gänswein, ao comentar essa renúncia, afirmou: «A partir da eleição de Francisco, a 13 de março de 2013, não há dois papas, mas de facto um ministério alargado – com um membro ativo e um outro membro contemplativo». Como interpreta estas palavras do secretário do papa emérito?
O arcebispo Gänswein quis reiterar que há um só papa, e ao mesmo tempo procurou explicar a novidade da situação. Não foi compreendido, e as suas palavras foram extrapoladas, cortadas, não citadas integralmente. Há sempre quem procure criar confusão. Na realidade, Gänswein, ao reiterar a unicidade do governo papal, tentou apresentar uma reflexão teológica sobre a renúncia, empregando uma linguagem analógica sobre o ministério petrino “alargado”, na interior do qual faziam parte – segundo o próprio Gänswein – dois biógrafos de Bento XVI, Peter Seewald e eu próprio, e ainda outros. Portanto este ministério “alargado” não parece muito perigoso no momento em que nele se incluem simples estudiosos. Nem todos prestaram atenção à integralidade do discurso. Não houve vontade de compreender.
O papa teólogo deixou a herança extraordinária do seu magistério: dezasseis volumes de ensinamentos e também três livros sobre Jesus de Nazaré. Hoje verifica-se um renovado interesse pelos escritos de Bento XVI. Porquê?
Porque permanecem atuais. São lidos por muitos jovens, não só estudantes de teologia, mas também de outras disciplinas. O interesse continua vivo porque Ratzinger-Bento XVI soube tocar temas centrais da vida dos crentes e das pessoas em geral, usando uma linguagem simples e acessível, que sabia ir ao coração das questões, sem banalizar as perguntas nem as respostas. Pela sua capacidade de ir ao centro do cristianismo e de o explicar claramente, há quem o considere desde há muito como um novo “doutor da Igreja”.
Na sua biografia de Bento XVI tenta fazer um balanço do seu pontificado (ainda que o papa Ratzinger continue vivo e realize o seu «ministério contemplativo»). Quais são as suas conclusões?
Se no início (2005) podia considerar-se um papado de transição, sobretudo por causa da idade do eleito e da provável continuidade magisterial com João Paulo II, no fim (2013) o juízo não coincide com as expetativas iniciais. Pode falar-se de um pontificado significativo, ao nível de alguns “eixos” na história do catolicismo, não só por causa da renúncia de 11 de fevereiro de 2013. Nota-se um primeiro período do pontificado com fortes reformas. O ápice é alcançado em 2009 (reformas ecuménica, litúrgica e canonista). Depois não houve mais. Seguramente após 2010 são evidentes os abrandamentos da máquina curial, provavelmente para responder aos ataques mediáticos, como também é inegável uma certa exaustão dos atores da Cúria. Não se tratou de um pontífice “restaurador”, como alguns temiam e outros desejavam, mas de um consolidador, que soube também jogar no relançamento, arriscando. Com originalidade e determinação enfrentou o assunto dos abusos sobre os menores da parte do clero, sem se deixar subjugar pela crítica mediática ou pelas inobservâncias episcopais. Soube dar orientação à atitude eclesial nessa matéria. Pode compreender-se o pontificado de Bento XI apenas na ótica do reformismo eclesial e sobretudo papa. Não foi por acaso que o papa realizou ao mesmo tempo reformas do sistema litúrgico e teológico em chave ecuménica (maximamente no que diz respeito às relações com os lefebvrianos e os anglicanos) e canonista (reforma de parte do código de 1983 e criação dos “ordinariatos pessoais”).
Mas como avaliar, em última análise, o pontificado de Bento XVI?
É reveladora a resposta de Bento XVI a uma pergunta de Peter Seewald. O entrevistador perguntava: «O senhor é o fim do velho ou o início do novo?». O papa responde: «Ambos». Pergunta e resposta acertadas. O seu pontificado não se pode encaixar em definições rígidas. Há uma avaliação do pontificado da parte do próprio Bento XVI, fornecida aos fiéis a 27 de fevereiro de 2013, o dia anterior à sede vacante. A sua leitura é claramente teológica, mas fascinante para compreender a mente do papa. É uma citação longa, mas que vale a pena reproduzir integralmente: «Foi um pedaço de caminho da Igreja que teve momentos de alegria e luz, mas também momentos não fáceis; senti-me como São Pedro com os Apóstolos na barca no lago da Galileia: o Senhor deu-nos muitos dias de sol e brisa suave, dias em que a pesca foi abundante; mas houve também momentos em que as águas estavam agitadas e o vento contrário – como, aliás, em toda a história da Igreja – e o Senhor parecia dormir. Contudo sempre soube que, naquela barca, está o Senhor; e sempre soube que a barca da Igreja não é minha, não é nossa, mas é d’Ele. E o Senhor não a deixa afundar; é Ele que a conduz, certamente também por meio dos homens que escolheu, porque assim quis. Esta foi e é uma certeza que nada pode ofuscar».