Quando soube que Bento XVI deixou o Vaticano rumo a Ratisbona para encontrar o irmão de 96 anos, Georg, doente desde há algum tempo, veio à minha mente o filme “Uma história simples”, de David Lynch.
A película, exibida nos finais do segundo milénio (1999), narra a história de Alvin Straight, um idoso camponês do Iowa que empreende uma improvável viagem com um transporte precário para voltar a abraçar o irmão, atingido por um enfarte, com o qual tinha cortado, desde há muito, qualquer relação. Recorda, deste ponto de vista, o episódio bíblico da reconciliação entre Esaú e Jacob.
É verdade que as circunstâncias são muito diferentes, sobretudo porque, ao contrário dos acontecimentos magistralmente narrados pelo cineasta norte-americano, os dois irmãos Ratzinger foram sempre ligadíssimos um ao outro (foram ordenados sacerdotes no mesmo dia, 29 de junho de 1951, na catedral de Frisinga).
O que mais acomuna as duas histórias é a viagem. As imagens destes dias mostraram um Joseph Ratzinger fortemente provado pela idade, com dificuldade de movimento.
No filme de Lynch, baseado numa história real, o protagonista, com evidentes problemas de locomoção, empreende uma longa viagem (386 km) a bordo de um desconjuntado corta-relva («é uma coisa que tenho de fazer!»), para rever, após muitos anos, o irmão Lyle.
O filme oferece um formidável fresco sobre a família e sobre a força dos laços, com uma coleção de personagens de viva e espontânea humanidade. A viagem de Alvin, a passo, intercalada por providenciais imprevistos, finaliza-se com um encontro que poderia ser o último. Como o que aconteceu entre Joseph e Georg.
As duas viagens são histórias verdadeiras e histórias belas. Ambas nascem de uma opção de coração, e, no caso de Bento, precisamente no dia em que a Igreja celebrou a festa do Sagrado Coração de Jesus.
Depois de tantas viagens com vestes oficiais, esta, para ele, foi uma viagem privada que diz muitíssimo, ainda que não tenham havido discursos. Foi uma viagem que diz uma vida inteira.
Fala de uma grande dificuldade movida por um grande amor. Fala da humanidade frágil e da força de um papa cujo pontificado esteve ininterruptamente debaixo de ataque. Fala da coragem de um homem que nunca teve medo de fazer escolhas fortes. Uma história verdadeira e uma história bela. Sobretudo para quem, hoje, não se resigna a renunciar à beleza e à verdade.