«He was pretty good in there today» (esteve muito bem lá [na cruz] hoje.» Este é o tema de uma das mais interessantes experiências literárias de Ernest Hemingway. Um minúsculo drama semisério, um ato único de quatro páginas em que o futuro prémio Nobel se cimenta com a escrita teatral e desce às raízes do cristianismo. “Today is friday” (hoje é sexta-feira) foi publicado pela primeira vez em 1926, op mesmo ano do “cínico” e felicíssimo romance de estreia, “Fiesta”.
No texto, a crucificação é representada da maneira mais modesta e irreverente que se possa imaginar: o diálogo sem fanfreluches entre três soldados romanos, alegretes numa tasca. Participaram na execução de Jesus, e agora, noite dentro, afogam cansaço e tensões no vinho. São servidos por um vinhateiro judeu, pouco interessado nos “feitos” de Cristo, e muito mais na conta que os soldados tardam em pagar. Não é dia de pré, cortam cerce os militares, num diálogo vivo, malgrado alguns lugares-comuns: o taberneiro baixa a cabeça e rende-se ao arbítrio dos conquistadores.
Um dos soltados, o terceiro, acusa um estranho mal-estar, mas forte que a mixórdia curativa que o tasqueiro lhe põe; o segundo está desiludido por não ter visto o «filho de Deus» descer da cruz; o primeiro, pelo contrário, admira a conduta de Jesus no suplício, diz que o atingiu com a lança para lhe abreviar a agonia, e continua a repetir «esteve muito bem lá hoje».
O modelo do diálogo enganadoramente simplista e aparentemente não resolvido, típico de Hemingway, enriquece-se aqui de um evidente anacronismo. A gíria americana moderna das personagens pode diminuir a exatidão da reconstrução histórica, mas funciona para comunicar aos leitores a atitude espontânea e insolente que os soldados têm em relação a Cristo.
Alguém comentou que os soldados se comportam como se comentassem um jogo de basebol ou um encontro de boxe, provavelmente por causa da familiaridade que tinham com as execuções na cruz. Tudo é observado da perspetiva de um homem simples que é um soldado, não exatamente habituado a considerações religiosas ou filosóficas.
O diálogo permanece no plano humano, acentuado pelo ambiente e pelas circunstâncias da bebedeira. Mas os contornos deste plano humano são tratados com grande habilidade: a necessidade de afastar-se do horror do sofrimento através do abandono à euforia do vinho, as referências a Maria da Madalena como «a miúda» de Jesus, e aos apóstolos como o seu «bando», os traços de «jogo» que a crucificação assume para olhos e mentes habituados ao «espetáculo».
O extraordinário, o sobrenatural, mostra-se nos detalhes, incongruentes e misteriosos. O mal de estômago do terceiro soldado, que entrevê um mal-estar mais profundo que a bebedeira e arranca ao homem um «Jesus Cristo!» entre a derisão e a invocação, a insistência do primeiro soldado sobre como o condenado foi corajoso.
«Mostra-me alguém que não queira descer da cruz. (…) Mostra-me alguém que quando chega o momento – quando chega o momento – não quer descer da cruz, e subirei à cruz juntamente com ele»: o segundo soldado, o mais cético, que define Jesus como um «falso alarme», espreme também o suco da história.
Também neste pequeno portento da produção de Hemingway está presente o âmago da sua conceção filosófica: a ideia que a resistência na derrota exprime a dignidade humana a um nível mais alto em comparação com o esplendor da vitória. Cristo é «sobre-humano» porque leva a resistência às consequências extremas, para além do limite diante do qual cada pessoa se renderia, até à morte. Talvez porque tem com a morte uma relação especial: dela sabe algo que os outros não sabem.
«Esteve muito bem lá hoje.» Nas palavras de admiração do terceiro soldado está todo o Hemingway: genial a colher o fundo da grandeza humana, e todavia humano, excessivamente humano, excessivamente mergulhado na vida, excessivamente obcecado pela escrita, para viver essa grandeza em plenitude. A 2 de julho de 1961, esgotado pela luta consigo próprio, desceu da sua cruz.