O que faz um escritor? Cuida das palavras. Cultiva-as em silêncio (as palavras precisam dele). Prepara o terreno, arroteia-o, antes de semear. Dobra-se sobre a página com «aquele humilde cuidado» (Giuseppe Pontiggia), em virtude do qual renuncia aos advérbios gastos, atributos redundantes, não se afunda em “areias imóveis” (expressões esvaziadas de significado, manipuladas ao ponto de significar o seu contrário).
A sua máxima aspiração é dar vida a páginas cuidadas, «onde cada palavra está em casa, no seu lugar para apoiar as outras» (Thomas S. Eliot). Uma página cuidada é um edifício estável, resiste à intempérie; é espaço acolhedor, de bom grado uma pessoa habita-a.
O escritor é um camponês, um arquiteto. Um escritor dá-se conta (e sofre com isso) quando as palavras perdem o seu espírito vital. Ao escrever, aplica-se para o restituir. Cada palavra é conjunto de relações. Quando se rompe um destes laços (por inabilidade, «descuido» - diria Raymond Carver – ou vontade de manipulação), a palavra perde o seu espírito. Pode tornar-se nociva, veneno: «O falar incorreto não é só coisa por si inconveniente, mas faz mal também às almas» (Platão). Pode ser contagiosa, desencadear «uma epidemia pestilenta» da linguagem (Italo Calvino). Por sorte, sabemos onde encontrar os anticorpos: na literatura. A literatura ensina a cuidar das palavras. Não só. As palavras, por seu lado, podem cuidar de nós. As palavras curam.
Na última década está a redescobrir-se o valor da narração em âmbito medicinal. A iniciadora, Rita Charon, sentiu a necessidade de estudar literatura para ser uma médica melhor. E fundou, em 2000, na Universidade de Columbia, o primeiro Programa de Medicina Narrativa.
O que oferece a literatura à medicina a mais (em vez) que os fármacos, que os cuidados especializados? A doença não é somente um conjunto de sintomas, uma condição anormal do organismo humano; é uma experiência complexa que envolve corpo, alma, psique do paciente, e a comunidade de que é membro. Não é por acaso que a língua inglesa tem três palavras para dizer doença: “desease”, “illness”, “sickness”.
A primeira define a doença na sua dimensão objetiva, do ponto de vista científico, considerando-a um conjunto de desordens orgânicas. A segunda define-a na sua dimensão subjetiva, como é percecionada pelo paciente, com os seus aspetos psicológicos e emotivos. A terceira palavra diz respeito à dimensão social da doença, a maneira como o doente é reconhecido na sociedade. Podemos imaginá-las como os três eixos de um espaço no qual a doença deve ser enfrentada.
Nesta perspetiva tridimensional a leitura faz três coisas preciosas pela medicina. A primeira é dar palavra à doença enquanto “illness”. Através de uma linguagem metafórica, repleta de emoções e descrições, oferece à medicina páginas que podem ser consideradas «fichas clínicas paralelas» (Rita Charon), complementares às médicas e não menos preciosas para compreender a doença. Ao dado frio junta-se a palavra emotiva.
A segunda coisa é representar a doença na sua complexidade, ou seja, nas suas múltiplas relações: entre paciente e doença, médico e doença, médico e paciente, paciente e sociedade… Quando uma pessoa adoece, adoece com ela uma parte da comunidade (família, amigos, colegas), que deveriam ser igualmente envolvidos na cura.
A terceira coisa é fazer experimentar: a literatura produz experiência, permite entrar no mundo da doença e identificar-se com pontos de vista diferentes(médico, paciente, sociedade). Oferece uma experiência (literária) que veicula conhecimento.
Fazer isto quer dizer tomar parte do processo de cura; quer dizer reduzir a distância entre pessoas sãs e doentes. «Também através das curas e dos esforços da ciência em seu socorro, o mundo doente é apenas tocado pelo mundo saudável, impedindo o estabelecimento de uma relação humana e aprofundando cada vez mais o sulco que divide estes dois mundos», escrevia Franco Basaglia ao referir-se à doença mental.
Aqui a relação entre palavra, doença e cura é crucial. Quando são a mente e a alma a adoecer, a linguagem pode tornar-se inapreensível, explodir no delírio ou petrificar-se no silêncio (da afasia, da vergonha, da exclusão): extremos que a literatura desde sempre procurou escutar, voltando a dar voz e dignidade ao doente.
O escritor é também um pouco médico? Em particular quando escreve sobre doença? Talvez o seja ao quadrado: ensina a cuidar de palavras que curam.