Federico Barocci, nascido na atual Itália no ano de 1535, foi uma das figuras que expressou a corrente artística que será denominada, de maneira subtilmente depreciativa, de “maneirismo”. Na verdade, a tela que proponho atesta o apuro deste estilo, que sabe criar um encanto paisagístico em cujo interior respira livremente uma doce atmosfera familiar.
O motivo desta pintura está indiretamente ligado ao Evangelho de Mateus. Nele, com efeito, faz-se referência à advertência angélica dirigida a José para se transferir para o Egito, para evitar ao Menino o massacre que Herodes tinha ordenado para os recém-nascidos de Belém: «José levantou-se de noite, tomou o menino e sua mãe e partiu para o Egito, permanecendo ali até à morte de Herodes».
Serão os evangelhos apócrifos a constelar de acontecimentos felizes e prodigiosos a viagem da família refugiada, e Barocci refere-se a este repertório imagético através do seu quadro de 1,33 x 1,10 metros, pontuado por múltiplos aspetos poéticos e simbólicos.
Antes de tudo está ela, a delicada e graciosa Maria, colhida num gesto quotidiano como o de extrair água de um regato com uma pequena taça; absorta no seu ato, parece na sua compostura quase ritual aludir, através do seu gesto, à concha com que João Batista recolherá a água batismal do Jordão e a derramará sobre a cabeça de Cristo.
Mas, em segundo plano, como compete à sua função de pai somente legal, está também José, que da árvore arranca um ramo de cerejas de cor vermelho-rubi, precisamente como o sangue que Cristo derramará na cruz, e o estende ao pequeno sorridente e alegre, que estende a sua mãozinha, guloso como qualquer criança. É por este particular pitoresco que a tela é popularmente conhecida como a “Nossa Senhora das cerejas”.
Por fim, há um quarto ator, afastado em relação à Santa Família: é o modesto burrico, que volta a sua cabeça para contemplar a cena, consciente de participar como intermediário material da salvação, mas também como prefiguração daquele burro – que era a montada dos reis em tempo de paz – destinado a suster Cristo durante a sua entrada triunfal em Jerusalém, no limiar da última semana da sua vida terrena.
Sob esta pacífica e deliciosa cenografia de uma experiência familiar quotidiana, o pintor consegue estender um anagrama simbólico respeitante à figura divina de Cristo. É, provavelmente, por isso que também aquele pão que desponta do alforge dos três refugiados, colocado aos pés de Maria, pode elevar-se até a um aceno eucarístico.
Mais uma vez se confirma que a Bíblia permanece o grande léxico iconográfico – para usar uma locução do poeta francês Paul Claudel – que durante séculos foi desfolhado pelos artistas.
"Nossa Senhora das cerejas" | Federico Barocci (1528-1612)