Em redor de um livro: «A solidão dos filhos de Deus»
Importa tomar Ruy Belo como um dos escritores espirituais do séc. XX português. E sem pretender contornar as veementes e sucessivas afirmações do poeta, que nos orientariam num sentido diferente. Por exemplo, em 1970, no prefácio a Homem de Palavra(s): «O clima do livro já não é o da fé, aliás perdida» ou, em 1972, na reedição de Aquele Grande Rio Eufrates: «todo este livro foi escrito num clima a que não só já não tenho acesso hoje em dia como espero não o voltar a ter». Só que o novo 'clima' em que o poeta se move, no começo da década de setenta, é de resistência àquilo que o catolicismo, na sua opinião, simbolizava enquanto servidor do ordenamento político e cultural vigente. Talvez fosse agora tempo de começar a olhar esta poética naquilo que ela também é: aventura espiritual intensa como poucas, colóquio interior, despojado mesmo quando a voz tinha a energia sagrada das falas ininterruptas, ponte estendida no território de chamas que é essa quase circularidade entre presença e silêncio, entre dúvida e crença, dialéctica que aproxima a aridez trágica da passagem do tempo desse «no sé qué», de que João da Cruz falava e que nos romances de Bernanos e Graham Green, que Ruy Belo leu, recebia o nome de Graça.
Um dos seus poemas, «Nós os vencidos do catolicismo», deu o nome a uma geração que, tendo-se destinguido por um grande empenhamento eclesial, se afastou em desilusão e ruptura. Vale a pena, à distância de alguns anos, tornar a esse poema surpreendente:
Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana
Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos
Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana
Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos o jogamos
«Meu deus meu deus porque me abandonaste?»
O primeiro verso retoma a formulação, também ela geracional, 'vencidos da vida', numa equivalência que sublinha a importância da experiência aqui em jogo. Experiência descrita como derrota e perda. De um saber («não sabemos já»); de uma condição («o perdido misticismo», «perdemos na luta da fé»); de uma estruturante certeza («não lutamos já firmes», «duvidamos»). Como se diz, a crença não deixou de existir, mas recuou para o território íntimo, «mais fundo», pois «nenhum garizim nos chega agora». Pelo poema irrompe, inesperado, o capítulo quarto do Evangelho segundo João. Aí Jesus, na ausência dos discípulos, dialoga com uma mulher samaritana, transgredindo o código judeu de conduta. À samaritana, Jesus anuncia que não é no Templo de Jerusalém ou no Santuário samaritano do Monte Garizim que se deve adorar a Deus: «os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade». Ora, esta irrupção evangélica, é tanto mais espantosa quanto ela conta a construção da fé, em Jesus, não a sua perda, por parte de um sujeito social e religiosamente incorrecto (a mulher samaritana).
Outra referência são os 'carmina burana', a monumental colecção de líricas e cantos medievais, de origem vária, que deve o seu nome à Abadia Beneditina de Beuron (Alemanha). Este repositório responde ao gosto do 'vagare', próprio dos estudantes, laicos ou eclesiásticos, dos 'studia' conventuais. É uma mistura fascinante de cristianismo e paganismo, de espírito e matéria, de finura e vulgaridade, de filosofia e puro passional. Lado a lado, convivem o canto gregoriano, a melodia trovadoresca e a sátira popular. Alvo do burlesco, porém, não é a experiência espiritual autêntica, mas os fingimentos, as falsas contrições, a mera representação da devoção ou da virtude. Os 'carmina burana' não são, afinal, figuras de substituição do «perdido misticismo», mas de purificação pelo abalo que o seu riso traz a uma religiosidade institucional, socialmente instalada, donde a aventura interior está ausente. Estamos, de novo, à procura do espírito e da verdade.
E a parte final do poema, guarda-nos a maior surpresa. O poema que até aqui parecia apenas uma declaração, revela ter um destinatário. O mesmo do Salmo 22, que Jesus grita na hora da cruz: o próprio Deus, aqui invocado repetidamente, «meu deus, meu deus». E aludindo ao «abandono» de Deus, o poeta faz a composição transfigurar-se, pois o que parecia ser uma perda do sujeito é agora atribuído a esse escândalo teológico, por excelência, que é o silêncio de Deus. Esta não é a única oração que Ruy Belo poeticamente teceu (lembremos essa outra, comovente, que começa «Nem palavras nem coisas tenho para o teu altar»), mas é aquela que no seu imprecar doloroso, no seu falimento, no seu avanço sem defesas melhor ilumina, isso que Bernanos chamou, a medonha solidão dos filhos de Deus.
Com «Nós os vencidos do catolicismo» estamos, é verdade, perante um texto de crise. Mas esta é a crise de uma fé que se transmuda simplesmente em descrença ou é, pelo contrário, uma fé que se descobre como experiência inevitável de crise diante das suas próprias formulações e saberes? É o ponto final de um caminho ou, como no Cântico Espiritual de João da Cruz, a ocultação de Deus e os soluços da alma são, antes, o princípio de um nomadismo espiritual admirável? E suportará a fé a condição de vencedores ou os crentes, como nas confissões bíblicas de Jeremias, são os inapelavelmente derrotados ('Ó Deus tornaste-te forte demais para mim/ tu me dominaste')?
Autor: Ruy Belo
Editora: Assírio & Alvim
JTM
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