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Ilda David': a percepção do sublime

«Sublime é aquele objecto em cuja representação a nossa natureza sensível reconhece os próprios limites...» (Friedrich Schiller, Do Sublime)

Em ‘De Rerum Natura’ há um ponto em que Lucrécio se separa de Epicuro. Todo o esforço de Epicuro tinha sido fornecer uma justificação racional para aquilo que liga imago e realidade. Mas Lucrécio, que chama a Epicuro pai e mestre glorioso, esquece a lógica dos simulacra e aproxima-se, inesperadamente, da percepção sublime, cedendo a uma escritura inspirada, a um alfabeto do enthousiasmos, ao transtorno de uma potestade imensa: «mostra-se a nós o grande poder divino» («forte deum nobis immensa potestas» V, 1209).

O projecto de Lucrécio é consolar «os doentes da morte», que somos todos, da sua dor, e o sublime funciona como um dispositivo de elevação (estética, moral, teológica...) que dará aos homens, como possibilidade autêntica, a tão inapreensível natureza das coisas. Pois quem acolhe o discurso sublime está em condições de perfurar a escravidão das representações fáceis (e Lucrécio dizia, «canto coisas difíceis», «sigo por estradas nunca antes percorridas...»).

Podia-se aludir, em outra geografia do espírito, ao desenho sonoro de algumas escassas palavras que serviram aos Padres do Deserto. Amerimnìa, que, na aparência, é surpreendida como um descuramento, um irreparável desleixo, mas que se pretende separação de todas as determinações exteriores, enquanto condição de uma existência atenta, imperturbavelmente atenta. Xenìteia, um exílio espiritual voluntário, que pode chegar ao escândalo de «se viver no mundo como alguém que não existe». Hesychìa, o profundo silêncio, não o do mergulho, mas o de ter mergulhado na imprevisível vastidão. Este vocabulário de renúncia, dos anacoretas do deserto, tal como o poema didascálico de Lucrécio, cede ao peso fascinante do sublime, do indefinido, do inominável.

É neste horizonte de sentido que, a meu ver, se constrói o impressionante e solitário percurso de Ilda David’. A sua pintura não tem a preocupação, tão corrente, tão triunfante, pelos nexos entre simulacros e realidade, não se enreda na trama especular das explicações, não reflecte a actualidade, não responde à voracidade do imediato com que a temporalidade nos cega. «O tempo retirou-se do meu sangue», escreveu Cioran, e apetece evocá-lo porque a verdade da pintura de Ilda David’ tem esse modo peremptório, quase brutal.

Escamas móveis, lâminas que se entreabrem, uma crosta lacerada: eis a sua paisagem. A tinta não se fixa. O olhar é convocado para a interioridade escura dos lances (fendas, corredores, pulsações ou, como em Teresa de Àvila, uma progressão de moradas ou, como em João da Cruz, «para chegar ao que não sabes,/ hás-de ir por onde não sabes»). O devir dos traços recusam a presunção de uma fala. O silêncio da figuração é feita de arquétipos, não de indivíduos.

E, depois, é como se a terra (e essa terra que é a pintura) cedesse ao peso do sublime. E o estremecimento que produz a instabilidade do mundo, indicasse também a deflagração de uma presença rara, absoluta.

***

Às vezes penso que a pintura de Ilda David’ tem a beleza dos aluimentos que as grandes chuvadas provocam nos campos, vizinhos de novo ao seu início.


 

José Tolentino Mendonça
Atualizado (mudança de grafismo da página) em 17.10.2023

 

 
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