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"Fé - Verdade - Tolerância", de Joseph Ratzinger

A apresentação do livro de Joseph Ratzinger, Fé – Verdade – Tolerância: O Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo, necessita de um enquadramento. No Prefácio que Ratzinger escreveu, em 2000, à reimpressão do seu livro de 1968, Introdução ao Cristianismo, observou que, se tivesse concebido essa sua obra nesse momento, teria dado maior relevo ao tema do diálogo inter-religioso.  E, contudo, Ratzinger foi um teólogo que logo desde o início da sua actividade docente no âmbito da Teologia Fundamental, em 1958, primeiro no Instituto Superior de Filosofia e Teologia de Freising e a seguir na Faculdade de Teologia da Universidade de Bona, se dedicou ao estudo das grandes religiões do mundo. Até 1963 leccionou nomeadamente Filosofia das Religiões e História das Religiões.  Mas nessa altura tratava-se mais de questões académicas. A própria Declaração Nostra aetate do concílio Vaticano II sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, votada em 1965, teve uma origem meramente ocasional, apesar da importância que posteriormente lhe foi reconhecida.  Só algumas décadas depois a discussão desceu à praça pública. Sintomáticos dessa generalização são o texto elaborado pela Comissão Teológica Internacional sobre O Cristianismo e as religiões, de 1997, e o documento que o Cardeal Ratzinger assinou na sua qualidade de Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, com o título Declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, a qual foi aprovada na Sessão Plenária da Congregação e ratificada pelo Papa João Paulo II, em 2000.  Vale a pena retermos alguns traços dessa Declaração.

A “unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja”, a que se refere o título do documento, é fundamentada no Novo Testamento e no Símbolo da Fé (n. 1). Daí deriva a missão da Igreja. A Declaração prossegue: “Assim se explica a especial atenção que o Magistério tem posto na motivação e apoio da missão evangelizadora da Igreja, nomeadamente no que diz respeito às tradições religiosas do mundo.” (n. 2) E, reportando-se à doutrina do Vaticano II, continua: “Tendo em conta os valores que essas tradições testemunham e oferecem à humanidade, com uma atitude aberta e positiva, a Declaração conciliar sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs afirma: ‘A Igreja Católica não rejeita absolutamente nada daquilo que há de verdadeiro e santo nessas religiões. Considera com sincero respeito esses modos de agir e de viver, esses preceitos e doutrinas que, embora em muitos pontos estejam em discordância com aquilo que ela afirma e ensina, muitas vezes reflectem um raio daquela Verdade que ilumina todos os homens.’” Referindo-se, mais concretamente, ao diálogo inter-religioso, Dominus Iesus diz ainda: “Este diálogo, que faz parte da missão evangelizadora da Igreja, comporta uma atitude de compreensão e uma relação de recíproco conhecimento e de mútuo enriquecimento, na obediência à verdade e no respeito da liberdade.” (ibid.) Só depois de estabelecer estes parâmetros de “obediência à verdade” e de “respeito pela liberdade”, a Declaração se pronuncia sobre certos desvios que entretanto haviam surgido no diálogo inter-religioso. Mencionam-se, em primeiro lugar, “teorias de índole relativista que pretendem justificar o pluralismo religioso não apenas de facto mas também de iure (ou de principio)”. (n. 3) Os exemplos são vários, sob os quais se detectam “certos pressupostos, de natureza tanto filosófica como teológica, que dificultam a compreensão e a aceitação da verdade revelada” (n. 4). Daí a necessidade de afirmar e fundamentar aspectos nucleares da doutrina, compreendidos em seis pontos que constituem seis capítulos: I. O carácter pleno e definitivo da revelação de Jesus Cristo; II. O Logos incarnado e o Espírito Santo na obra da Salvação; III. Unicidade e universalidade do mistério salvífico de Jesus Cristo; IV. Unicidade e unidade da Igreja; V. A Igreja, Reino de Deus e Reino de Cristo; VI. A Igreja e as religiões no que se refere à Salvação. (nn. 5-22)

O debate que se seguiu foi aceso, pois a Declaração tocava os pontos mais sensíveis do diálogo inter-religioso e apresentava aspectos da doutrina que não poderiam ser postos em causa nesse diálogo; para uma certa incompreensão com que se deparou contribuiu também o facto de aspectos de doutrina muito complexos serem aí tratados de forma forçosamente sintética.

Foi neste contexto que o então Cardeal Ratzinger, em 2003, decidiu juntar num só volume estudos seus sobre a temática em questão. São escritos que vão desde um texto de homenagem a Karl Rahner, de 1964, ainda em pleno tempo conciliar, a vários outros, surgidos na década de 90 e que podem ser conferências em congressos e dias de estudo, artigos publicados na revista Communio, uma conferência na Sorbonne ou a introdução à encíclica de João Paulo II, Fides et ratio (1998), encíclica em que ele próprio colaborou. No último capítulo do livro, há um texto publicado pela primeira vez sobre o tema de toda a obra: Fé – Verdade – Tolerância, à qual se segue uma contribuição final sobre Liberdade e Verdade.

Fica assim dado o tom geral da obra de Joseph Ratzinger que agora é editada em tradução portuguesa pela Editora da Universidade Católica. Embora supondo-os, ela não se destina a discutir os pontos doutrinais enunciados na Dominus Iesus, mas os aspectos formais a que essa Declaração também se referia ao falar de “certos pressupostos, de natureza tanto filosófica como teológica, que dificultam a compreensão e a aceitação da verdade revelada”. (n. 4) A maior parte dos textos que a integram foram escritos num contexto académico, o que não facilita o trabalho de tradução. Ratzinger, quando não tem a preocupação de fazer textos acessíveis, como nas homilias, pode usar a língua alemã com um virtuosismo que se compraz em explorar todas as suas riquezas e capacidades de expressão. O que coloca o tradutor de maneira particular no conhecido dilema de ou ser fiel ao original, ainda que forçando o génio da língua para que traduz, ou adaptar o original a uma linguagem mais fluente mas com o perigo de substituir o que o autor diz por uma sua paráfrase. Na presente tradução, optou-se normalmente pela primeira orientação, até porque, de outro modo, se perderia muitas vezes o próprio nervo da argumentação do Autor, que nos assuntos que são tratados é muito importante.

Se quisermos definir um eixo central da argumentação de Ratzinger podemos fazê-lo com palavras que já encontrámos na Dominus Iesus: respeito pela liberdade na obediência à verdade.

A verdade é, aliás, uma das palavras-chave do pensamento de Ratzinger, como o revela o seu lema, episcopal e papal: cooperatores veritatis, uma citação da 3ª carta de S. João, v.8. Na sua relação com a religião, a verdade aparece da maneira mais central na conferência pronunciada na Sorbonne, desenvolvendo um tema que já vinha da tese de doutoramento do Autor, Povo e casa de Deus na doutrina sobre a Igreja em Agostinho. Este Padre da Igreja, ao examinar o conceito de religio vera, religião verdadeira, parte da classificação das diversas teologias formulada por Marcos Terêncio Varrão, o doctissimus Romanorum, o mais douto dos Romanos, como lhe chamou Cícero.  Por teologia ele entendia a ratio quae de diis explicatur, o entendimento e o esclarecimento do divino, segundo a tradução de Ratzinger, e pode ser tripla: a teologia mítica, própria dos poetas, a teologia natural (fysikê), própria dos filósofos, e a teologia civil (politikê), própria dos povos. Só a theologia naturalis, dos filósofos, procura a ordem da realidade e sua verdade, a qual se situa para além dos mores, dos costumes. Ora a teologia civil optou pela teologia dos poetas e suas fábulas, interessando-se apenas pela sua utilidade política. É certo que à teologia natural não importa o culto, mas apenas a verdade e realidade do que se quer dizer quando se fala do mundo divino. Mas, segundo St. Agostinho, foi precisamente essa teologia que o Cristianismo adoptou, aliando-a ao seu próprio culto. Este passo dado pela religião cristã, na Antiguidade, foi importantíssimo porque deixou claro que o seu culto se entende como culto ao verdadeiro Deus. Para reflectir a verdade de Deus e da religião, o Cristianismo recorre à filosofia, ao pensamento do Logos, pois é aí que encontra a preocupação pela verdade. Este o sentido da religio vera, de uma religião que apenas se contenta com a verdade, para a qual a verdade é determinante. Daí a tese recorrente nesta obra de Ratzinger, de que o Cristianismo sempre esteve aliado a um esclarecimento racional, a uma Aufklärung, a um iluminismo. É afinal este mesmo pensamento que o Papa, na lição de Regensburg, encontrou no imperador bizantino Manuel II Paleólogo: a verdade que a razão reconhece é condição para que uma religião seja autêntica, só ela é digna do Deus a quem dedica o seu culto. Essa também a ideia que leva Ratzinger a aprofundar e discutir a relação do Cristianismo com a Aufklärung dos Tempos Modernos. Antes de mais, torna-se evidente que não é o facto de este movimento cultural europeu procurar e exigir o esclarecimento racional que o afasta do culto cristão de Deus. Pelo contrário, essa sua procura e exigência filia-o na mais lídima tradição cristã. O que aconteceu é que foi o Iluminismo que, nos Tempos Modernos, se afastou do Cristianismo, ao restringir o Logos àquilo que a razão pode dominar em vez de respeitar toda a amplitude real da razão que, para além do positivo imediato, é chamada a reconhecer a transcendência do divino. Essa a sua vocação mais alta, aquela em que a razão encontra o seu estatuto mais elevado.

Mas só é digno da verdade que esta seja proposta à liberdade, sem violência; e mais, a verdade só pode ser entendida em ligação íntima com a caridade. A fórmula agostiniana de Deus, como ser, saber e querer, segundo a imagem que o próprio Deus imprimiu na pessoa humana ao criá-la, está subjacente a todo o pensamento de Ratzinger. Ele vê nessa tripla dimensão da realidade humana a estrutura indispensável para que esta se mantenha fiel ao Deus que a criou, mantendo-se coerente consigo própria enquanto criatura de Deus. Seguindo a repartição antiga da filosofia – se adaptarmos um pouco a terminologia – em ontologia (fysikê), lógica e ética, o esclarecimento racional que o verdadeiro culto a Deus por Jesus Cristo exige, implica sempre, para além de uma lógica, também uma ética. É neste sentido que o teólogo reclama para a ortodoxia também uma ortopraxia. Não há religião sem ética, não há religião cristã sem a ética do amor que está intimamente implicada na racionalidade da fé em Deus.

A tríplice expressão Fé – Verdade – Tolerância tem, assim, um significado preciso no pensamento de Ratzinger. A tolerância não é atitude resultante de uma indefinição de atitude que remeta, afinal, para o relativismo de quem nada tem como certo, preocupando-se apenas com a utilidade que as coisas possam oferecer aos seus interesses. Pelo contrário, o cristão ao procurar a verdade à luz de Jesus Cristo encontra a libertação do egoísmo que nada esclarece, antes obscurece tudo o que lhe não convém.

Nesta perspectiva, de que modo se pode o Cristianismo então relacionar com as grandes religiões do mundo, como pode empreender juntamente com elas a procura da verdade?

Com o seu peculiar poder de síntese que lhe permite dizer o essencial em poucas palavras, Ratzinger passa em revista as principais teses acerca do diálogo entre a fé cristã e as religiões: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Considera, aliás, esta tipologia fruto de uma redução do diálogo inter-religioso à questão da salvação,  o que leva a considerar irrelevantes todos os seus outros aspectos. A esta homogeneização das religiões, Ratzinger opõe uma génese do fenómeno religioso que, a partir das experiências primitivas chega às religiões míticas, seguindo-se o que chama “as três rupturas do mito”, a saber, pela mística, pela revolução monoteísta e, finalmente, pelo esclarecimento racional, a Aufklärung, própria da cultura clássica grega.  Esta perspectiva permite ao Autor definir uma diferenciação interna das várias religiões e, assim, fazer uma apreciação específica da relacionação do Cristianismo com cada uma delas. Para além da questão da verdade, patente na opção do Cristianismo pela via filosófica do esclarecimento racional, evidencia-se o personalismo de uma religião para a qual o mistério de Deus e a sua relação do homem, só se pode colocar nos termos dialógicos de um eu em relação a um tu, no interior de um nós. Outra tipologia geralmente usada para designar o tipo de relação do Cristianismo com as outras religiões – eclesiocentrismo, cristocentrismo e teocentrismo – é apenas citada para a contrapor a uma mais recente teoria, a do reinocentrismo em que o conteúdo das religiões é considerado irrelevante, considerando-as somente “instrumentos para uma configuração do futuro”,  no que Ratzinger vê mais uma expressão do relativismo que hoje impera no nosso mundo.

Ainda que toda a obra me pareça importantíssima para se definir a missão evangelizadora da Igreja no contexto cultural em que vivemos, as suas últimas páginas são decisivas para conhecermos o pensamento do actual Papa. Analisa aí o conceito moderno de liberdade, quando esta é vista apenas como prerrogativa do indivíduo e sem fazer apelo à verdade do ser humano e ao bem do outro, ao bem comum. Surge então a pergunta: “como nos é possível enxergar o que é bom para todos, e o que é bom não só para hoje mas também para amanhã?”  Para responder, “a razão tem de ouvir o que dizem as grandes tradições religiosas, se não se quer tornar surda, muda e cega para o essencial da existência humana”.  Se for bem entendido, o ideal do Iluminismo continua válido sob três condições que Ratzinger enuncia, à maneira de conclusão de toda a sua reflexão:  1. A liberdade tem se orientar pela verdade e, neste sentido, o direito é constitutivo da liberdade; 2. O homem é sempre finito e nunca deixa de estar a caminho; donde que nunca possa desistir da justiça apesar dos seus contínuos fracassos, nem deva substituir a justiça que é hoje possível por uma utopia irreal e portanto destruidora; 3. Se a mais perigosa doença do espírito humano é a patologia da religião, esta surge sobretudo quando a religião como tal é rejeitada e se atribui aos bens relativos um valor absoluto. Não se pode prescindir da ideia de Deus ao adoptar-se uma concepção da verdade com carácter ético. E Ratzinger termina o seu livro com a frase do evangelho de S. João, que precisamente se refere à verdade de Deus: só a verdade liberta.


 

P. Henrique de Noronha Galvão
Professor da Faculdade de Teologia da UCP (Lisboa)
Atualizado (mudança de grafismo da página) em 17.10.2023

 

 

 
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