A literatura é um grande telescópio apontado para a vida, um instrumento prodigioso de leitura da experiência individual e coletiva, histórica e interior, na sua dimensão particular como na universal.
Não compreende verdadeiramente uma determinada tradição cultural quem ignora a sua literatura. Não compreende o ser humano, na sua universalidade, quem ignora os testemunhos poéticos que ele teceu ao longo dos milénios.
Para lá do abismo temporal que os separa, o homem contemporâneo não cessa, com efeito, de se reconhecer na dor de Heitor e de Gilgamesh, no amor apaixonado de Jacob por Raquel, na justiça da punição cómica do “Miles gloriosus”.
Na concretude incomparável com que se restitui a particularidade cultural, social, histórica dos mundos que explora, a arte dá expressão, com força igualmente incomparável, à sua pertença a uma única grande família, evidenciando aquela unidade profunda da alma que faz da história humana um todo, tecido por um único denominador comum, e não um amarfanho centrífugo e caótico de histórias incomunicáveis entre elas. Por isso continuamos a precisar da literatura, não como de um ornamento agradável, embora, tudo somado, supérfluo do nosso habitat espiritual, mas antes como de uma sua estrutura que o sustenta, um códice de sobrevivência do nosso estar no mundo.
Um dos dramas do cristianismo e das religiões do nosso tempo é a crescente deslocação da sua autocompreensão para fora do horizonte da literatura: cada vez menos a prática religiosa contemporânea recorre à literatura para articular as suas representações de fé, e cada vez menos a literatura recorre ao seu discurso como recurso de sentido.
É por isso uma responsabilidade urgente e gravíssima da Igreja, de todos os crentes, reativar processos culturais que desemboquem na criação de códices e chaves de leitura do presente hermenêuticamente e simbolicamente consistentes e vitais, que respondam às sofisticadas procuras avançadas pela história contemporânea. É um problema de conteúdos, mas antes ainda de racionalidade, de linguagens.
E é um problema de discernimento, mas antes ainda de maternidade. Só se a Igreja souber recuperar a capacidade de ser fonte, em todos os campos da racionalidade humana, a começar pela artística, se voltará a pôr-se em movimento a indispensável dinâmica criativa entre fé e cultura.
Demasiadas vezes, no passado, a Igreja concebeu defensivamente a relação entre fé e cultura como a de uma hegemonia, de um direito de controlo e sancionamento em nome de uma verdade de fé simplificada em verdade cultural. Recuperar a dinâmica geradora e não mecanicamente judicial desta relação, restaurar a maternidade da Igreja, significa acolher incondicionalmente não só a reciprocidade dialógica, mas a assimetria do serviço, da iniciativa gratuita e eventualmente não correspondida que é própria do amor.
Discernimento, escuta, proposta, são todos momentos essenciais do diálogo entre fé e cultura, entre fé e literatura, que para serem fecundos devem, no entanto, ser conjugados numa mais fundamental disposição de amor, numa incondicional vontade de encontro.
Quem ama procura a proximidade do outro, procura a sua presença. Amar a cultura, a criação artística, a literatura, significa ir procurá-las onde se encontram, correr o risco do contacto. Os textos são o corpo da literatura, e sem a sua frequentação direta, não mediada, o diálogo permanece estéril e irreal.
É por isso importantíssimo que nas páginas de uma revista como “La Civiltà Cattolica”, a mais antiga revista italiana – mais antiga do que própria Itália politicamente unida – façam caminho, a par das tradicionais leituras de textos, também textos a traduzir em leitura, poesia e prosa breve: narrativas a amar e, portanto, a decifrar, palavras poéticas a converter em palavras hermenêuticas, na cadeia inexaurível do sentido.
É um passo na direção certa, uma assunção de responsabilidade no grande compromisso de fazer nascer qualquer coisa de que não só a Igreja, mas toda a sociedade, tem desesperadamente necessidade: não uma leitura cristã, que pertence a um modelo de civilização do passado, mas uma literatura que faça da fé cristã, na sua articulação eclesial – de fontes, de tradição e de comunidade –, um recurso de sentido para a humanidade do nosso tempo.