Excerto do livro “Seguimento. A decisão por Jesus Cristo”, de Dietrich Bonhoeffer, recentemente lançado pela Lucerna.
«“Não ajunteis tesouros na Terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no Céu, onde nem a traça nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam nem roubam. Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. A candeia do corpo são os olhos; de sorte que, se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo terá luz; se, porém, os teus olhos forem maus, o teu corpo será tenebroso. Se, portanto, a luz que em ti há são trevas, quão grandes serão tais trevas! Ninguém pode servir a dois senhores; porque, ou há de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon” (Mt 6, 19-24).
A vida do discípulo comprova-se na medida em que nada se interpõe entre Cristo e ele: nem a lei, nem a própria piedade, mas também não o mundo. O discípulo vê sempre só Cristo. Não vê Cristo e a lei, Cristo e a piedade, Cristo e o mundo. Nem sequer entra nesta reflexão, antes segue em tudo só Cristo. Assim, o seu olho é simples. Repousa inteiramente na luz que lhe vem de Cristo e nele não há trevas nem ambiguidade. Como o olho tem de ser claro, puro, para que o corpo permaneça na luz; como o pé e a mão não recebem a luz de parte alguma senão do olho; como o pé vacila e a mão falha quando o olho está turvo; como todo o corpo se encontra na escuridão quando o olho se apaga, assim o discípulo só permanece na luz enquanto olhar simplesmente para Cristo e não também para isto ou aquilo. O coração do discípulo tem de estar orientado exclusivamente para Cristo. Se o olho vê algo mais do que o real, todo o corpo é enganado. Se o coração se prende à aparência do mundo, à criatura em lugar do criador, o discípulo está perdido.
São os bens do mundo que querem dispersar o coração do discípulo. Onde está o coração do discípulo? Eis a questão. Está com os bens do mundo, ainda que com Cristo e com os bens? Ou está só com Cristo? A lâmpada do corpo é o olho, a lâmpada do discípulo é o coração. Se o olho estiver nas trevas, até que ponto não estará o corpo nas trevas! Se o coração estiver nas trevas, quantas trevas não haverá no discípulo! O coração, porém, obscurece-se quando está preso aos bens do mundo. Quando assim é, por mais vigoroso que seja o chamamento de Jesus, acaba por fazer ricochete, não consegue entrar no homem, porque o coração está fechado, pertence a outro. Do mesmo modo que a luz não penetra no corpo quando o olho é mau, também a palavra de Jesus já não penetra no discípulo quando o seu coração se fecha. A palavra é sufocada, como a semente no meio dos espinhos, entre “os cuidados, e riquezas, e deleites da vida” (Lc 8, 14).
A simplicidade do olho e do coração corresponde àquele escondimento que não sabe de nada a não ser da palavra e do chamamento de Cristo e que consiste na plena comunhão com Cristo. Como é que o discípulo lida com simplicidade com os bens da Terra?
Jesus não lhe nega o uso dos bens. Jesus era um homem, comia e bebia tal como os seus discípulos. Dessa forma, purificou o uso dos bens da Terra. Os bens discretamente consumidos, para fazer face às necessidades quotidianas e alimentar a vida corporal, devem ser usados pelo discípulo com gratidão.
“Há que caminhar como peregrinos,
livres, despojados e verdadeiramente vazios;
recolher muito, guardar, negociar
torna pesado o nosso andar.
Quem quiser, morra de tanto carregar;
Nós viajamos isolados,
contentamo-nos com pouco,
só usando o que à necessidade bastar.”
(Tersteegen)
Os bens são-nos dados para serem usados, não para serem acumulados. Como Israel no deserto recebia diariamente o maná das mãos de Deus e não tinha de preocupar-se com o que comer e beber, e como o maná conservado de um dia para o outro apodrecia, assim o discípulo de Jesus deve receber o que é seu diariamente de Deus. Mas, se o acumula como posse permanente, estraga o dom e estraga-se a si mesmo. O coração está preso ao tesouro amealhado. Os bens acumulados interpõem-se entre mim e Deus. Onde está o meu tesouro, aí estão a minha confiança, a minha segurança, a minha consolação, o meu Deus. O tesouro é idolatria.
Mas qual é a linha de fronteira entre os bens que devo usar e o tesouro que não devo ter? Viremos a frase ao contrário: ao que o teu coração está preso, esse é o teu tesouro. A resposta já está dada. Pode ser um tesouro muito discreto, não importa o tamanho; só importa o coração, só importas tu. Se pergunto em seguida como reconheço a que está preso o meu coração, também aqui a resposta é simples e clara: tudo o que te impede de amar Deus acima de todas as coisas, o que se interpõe entre ti e a tua obediência a Jesus é o tesouro a que está preso o teu coração. (…)
Se o discípulo tem o seu coração por inteiro junto de Deus, então torna-se-lhe claro que não pode servir a dois senhores. Não pode. No seguimento, é impossível fazê-lo. Poderia parecer lógico comprovar a sua inteligência e a sua experiência precisamente sendo capaz de servir a dois senhores, o dinheiro e Deus, concedendo a cada um o seu direito limitado. Porque não haveríamos de ser filhos alegres deste mundo justamente também enquanto filhos de Deus, que se regozijam com as suas boas dádivas e que recebem os seus tesouros como bênçãos de Deus? Deus e mundo, Deus e os bens opõem-se, porque o mundo e os bens agarram o nosso coração e só são aquilo que são quando ganham o coração.
Sem o nosso coração, os bens e o mundo não são nada. Vivem do nosso coração. Por isso, opõem-se a Deus. Só podemos dar o nosso coração com amor pleno a um senhor, só podemos dedicar-nos totalmente a um senhor. O que for contrário a este amor cai no ódio. Segundo a palavra de Jesus, em relação a Deus só há amor ou ódio. Se não amamos Deus, odiamo-l’O. Não há meio-termo. Deus é Deus por só poder ser amado ou odiado. Aqui só há “ou-ou”: ou amas Deus, ou amas os bens do mundo. Se amas o mundo, odeias Deus; se amas Deus, odeias o mundo. Não importa que o queiras ou não queiras, que o faças conscientemente ou não. Certamente não o quererás e também não saberás o que fazes. Mais: não o queres, antes queres precisamente servir a dois senhores. Queres amar Deus e os bens, ou seja, nunca vais acreditar que odeias Deus. Pois pensas que O amas. Mas exatamente na medida em que amamos Deus e também os bens do mundo, esse amor a Deus é ódio, o olho já não é simples, o coração já não está em comunhão com Jesus. Quer o queiramos, quer não, não pode ser de outra forma. Não podeis servir a dois senhores, vós que vos encontrais no seguimento de Jesus. (…)
Não vos inquieteis! Os bens induzem o coração humano a pensar que eles lhe dão segurança e tranquilidade. Mas, na verdade, são eles a primeira causa de inquietação. O coração preso aos bens recebe, com eles, o sufocante peso da inquietação. Esta obtém para si tesouros e os tesouros trazem nova inquietação. Queremos assegurar a nossa vida através dos bens, queremos alcançar a despreocupação através da inquietação. Mas, na verdade, sucede o contrário. As amarras que nos prendem aos bens, que seguram os bens, são elas mesmas inquietações.»