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A “recompensa” como absoluto do ato próprio

No mundo – movimento, espaço, tempo –, nada se faz sem alguma forma de esforço. Ironicamente, mesmo o assentimento espiritual à graça, ao puro dom, ainda isso, implica esforço. O mesmo não é dizer que tal graça, tal dom, tenham preço, ou que não sejam grátis. Fisicamente, nada se pode fazer sem a grandeza – física – «trabalho» (eticamente detestada pelos preguiçosos); espiritualmente, nada se pode realizar sem o ato de querer, de, pelo menos, querer aceitar: a figura do diabo corresponde à figura de esse que não quer receber o dom de Deus, no que tem a sua imediata e absoluta recompensa, em auto-poética justiça.

Ora, esta aparentemente indesejável invocação de negativo paradigma (negativo, mas não necessário) não é sem justificação: se o diabo é o inecessário paradigma da má escolha e da imediata consequência ontologicamente negativa, para o próprio, de tal escolha, tal modelo não se esgota quer em tal simbólica figura quer em mais vasto âmbito religioso, embora aqui tenha a sua origem.

Todavia, isso de que aqui se trata extravasa tais âmbitos – restritos, porque não universais –, aplicando-se, transcendentalmente, isto é, universal e necessariamente, ao todo do humano, a toda a humanidade, não como coisa abstrata, mas como concretude de cada e todo o indivíduo humano de sempre e para sempre.

O paradigma é antropológico, ético e político; mas, sobretudo, é ontológico, diz respeito ao ser do ser humano, da pessoa humana, como, no mito/símbolo dado como exemplo, à pessoa (não-mundana) do diabo. Ontológico e não apenas «ôntico», pois, diz respeito ao que o ser da entidade humana individual é na sua realidade, única e irredutível – salvo aniquilação como ato de sentido –, de ‘coisa’, de ato de sentido, de «ente como ato de sentido». Nada mais há, senão este sentido em ato, como Santo Agostinho bem percebeu quando entendeu a densidade absoluta – e única – do ato do presente, único real ‘realmente real’.



O criador deu o dom – repetição propositada – de ser, como absoluto de «poder-ser», à criatura; melhor, criou a criatura como tal dom absoluto de possibilidade. Este é o ato pelo qual o criador é responsável



Uma interpretação aburguesada, comercial, de típicas relações mercenárias, dos Evangelhos, transforma a questão, absolutamente fundamental, da «recompensa» em algo de superficial, de acrescentado ao ser, ao ato de ser do recompensável, do recompensado, como se houvesse ‘mais ser’ para lá da recompensa, como se o agente humano fosse algo como uma essente-substância pré-fabricada como ‘coisa a que se acrescentam atos e recompensas’, e relativamente à qual tais acrescentos, no fundo, pouco ou nada acrescentariam de fundamental, de literalmente essencial, isto é, de definidor – e definitivo, pois não há magia que aniquile o absoluto do haver sido – do que constitui o cerne do ato de tal ‘coisa’.

Ora, o ser humano não é isto. ‘Isto’ corresponderia antropologicamente, em termos não puramente materialistas, a algo como o que sucede na visão materialista – visão que, em si mesma, é um ato não-material, ironicamente –, em que o ser humano é uma mera organização efémera de átomos, moléculas, etc., a que se acrescentam, enquanto tem capacidades lógicas – de sentido – outras realidades, que se podem resumir como «a sua história», finda a qual, nada mais resta do que um pedaço de matéria em desorganização progressiva, até se atingir o mesmo nível material de que se partiu, moléculas, átomos, etc.

Deste modo, por exemplo, em termos ditos cristãos, perspetivar o ser humano como algo de pré-fabricado e pré-definido ontologicamente como algo definitivo a que se acrescentam uns atos superficialmente, é estar a usar um modelo semelhante ao modelo materialista (aliás, questiona-se se este último não foi beber ao religioso, mesmo tendo sido criado há mais de dois mil anos pelos antigos Atomistas).

Uma leitura dos Evangelhos não apenas aburguesada e comercial, mas também piegas, transforma-o não apenas num manual de economia comercial para a salvação através de atos realizados não para a glória de Deus, através do serviço ao bem de suas criaturas, mas de acumulação de créditos de boas ações, a ser descontados aquando da metamorfose entre ‘mundos’, o nosso, o do movimento e do tempo, e o ‘outro’, o da eterna luz de Deus.

No entanto, os Evangelhos não são um manual piegas de negócios de possível santidade e salvação pessoal: são a mostração – o «phainomenon», o fenómeno, literal «vinda da luz» – do paradigma de modo de ação tendo como fim exclusivo o bem do mundo e, através de tal ação, a glória de Deus. É deste modo paradigmático que nasce o sentido da ‘imitação de Cristo’, que não é a ‘macaqueação’ acéfala dos atos do Mestre, mas a tomada destes como modelo de possibilidade de ação; modelo universal e necessário, transcendental, portanto.



O que as palavras de Cristo implicam é que, ao modo dos exemplos que aduz, adequados ao tempo em que se situava, é que, o absoluto dos atos praticados são a recompensa imediata de quem os pratica



O momento, por um lado mais simples, por outro mais profundo – e diamantinamente duro –, de tal mostração modelar encontra-se em Mateus, 6. 1-5 (especialmente na curta síntese de 6. 5: «têm a sua recompensa [no que estava em causa e a ser discutido]», «ἀπέχουσι τὸν μισθὸν αὐτῶν»).

O contexto imediato é o da oração, de como orar. Ora, em 6, 9-14, encontra-se o «Pai-Nosso». É, assim, todo este trecho do Evangelho, um passo incontornável, em que se define a relação fundamental entre criatura e criador, ou seja, está-se em ambiente ontológico. Não se trata, assim, de definir como é que a criatura comercializa o sentido da sua existência com o criador, como se estivesse a tratar do acerto logístico da ritualidade do existir.

É o modo como o sentido próprio da criatura se relaciona ontologicamente – plenitude de sentido do termo – com o criador que está em causa: como se constrói, na relação com isso que possibilitou em absoluto o ser, o ato, da criatura, isso que é próprio e apenas próprio da criatura?

O criador deu o dom – repetição propositada – de ser, como absoluto de «poder-ser», à criatura; melhor, criou a criatura como tal dom absoluto de possibilidade. Este é o ato pelo qual o criador é responsável (responsabilidade, aliás, infinita, tal a ‘distância’ ontológica entre o nada de ‘antes da criatura’ e o seu ato de possibilidade-em-ato).

Todos os outros atos são responsabilidade da criatura; sem desculpas – como em Job, como com Maria, mas, também, como com Judas Iscariotes –, sem que se possa alienar o agente do absoluto de sua responsabilidade sem que se aniquile este (manobra usada desde sempre por tiranos e seus ancilares sabujos).



Mais próximos do paradigma Maria ou do paradigma Pedro ou, ainda, do paradigma Judas Iscariotes, cada um de nós não apenas tem já a sua recompensa, como já é a sua própria recompensa



Ora, o que as terríveis, simples, palavras de Cristo implicam é que, ao modo dos exemplos que aduz, adequados ao tempo em que se situava (surpreendentemente, não fala, por exemplo, em telemóveis), é que, o absoluto dos atos praticados são a recompensa imediata de quem os pratica e, assim, constituem quer como princípio irredutível de ação, em termos éticos, quer como consequências, em termos políticos, o ato próprio e inalienável de seus sujeitos praticantes.

Exemplificando claramente, a fim de que não restem dúvidas: os atos de Maria são Maria como recompensa de tais atos: a sua perene bondade é a sua recompensa própria e inalienável, a sua ‘eterna salvação’, imediatamente reconhecida como tal por Deus (que, convém lembrar, não tem a nossa limitação de inteligência).

Por seu turno, os atos de Pedro são, também, a sua imediata recompensa: negar Jesus, é negar Jesus, com ou sem arrependimento: este, reabre caminho de esperança de bem para Pedro, mas não anula magicamente a traição, realizada independentemente de desculpas ou razões, que não podem, ontologicamente, magicamente, aniquilar o que foi feito e o que tal é em termos do ato de Pedro. A cruz de Pedro não foi em Roma, feita de madeira, foi a traição a Cristo; a outra, foi só ‘na carne’; a traição a Cristo não matou a ‘carne’, matou parte do espírito e tê-lo-ia morto todo, não fora o arrependimento.

É, assim, terrível a exigência ética e política, com repercussões onto-antropológicas ponderosíssimas, que Cristo reclama da ação que, única, pode fazer de nós pessoas humanas, não pedaços de matéria, mais ou menos desanimada ou bestas vorazes, cujo único fito é preencher o nosso vazio espiritual onto-lógico, com a ilusão do exercício do poder de vida e de morte sobre os ‘outros’.

Mais próximos do paradigma Maria ou do paradigma Pedro ou, ainda, do paradigma Judas Iscariotes, cada um de nós não apenas tem já a sua recompensa, como já é a sua própria recompensa.

Que se escolhe, a grandeza ontológica de serviço ao bem de Maria ou a bestialidade mesquinha dos que se vendem por um mísero prato de lentilhas de efémero e perverso poder?


 

Amérito Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Imagem: Aaron Burden / Unsplash
Publicado em 04.07.2025

 

 

 
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