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A lição da Beleza

Excerto do livro “Cartas a um jovem católico", de George Weigel, edição de outubro de 2024 pela chancela Lucerna (ed. Principia).

Numa das cartas anteriores sugeri, temerariamente, que a Capela Sistina é porventura o recinto mais extraordinário do mundo. Se não te importas, vou dar mais um passo perigoso no ramo das comparações e declarar que a Catedral de Chartres é o edifício mais extraordinário do mundo. Já estive na Mesquita de Ormar, em Jerusalém; é magnífica, mas não é Chartres. Ainda não estive no Taj-Mahal, mas duvido que possa rivalizar com Chartres. Chartres tem pedra e vidro sobre os quais foram derramados a obediência da fé e um amor apaixonado e transformador por Cristo, Maria, o mundo e a beleza do que é humano. O resultado é exatamente aquilo que os seus construtores pretendiam que fosse: uma antecâmara do Céu.

Faz bem ir a Chartres quando se é novo. Eu, infelizmente, já tinha 46 anos quando lá fui pela primeira vez, na companhia do meu amigo Jean Duchesne. (…) Não tenho um temperamento contemplativo por natureza, mas houve qualquer coisa na Catedral de Chartres que me deixou literalmente sem palavras. Ao visitar e estudar um grande edifício pela primeira vez, geralmente gosto de falar sobre ele com um guia ou amigos conhecedores. Mas não ali. Ali, só quis olhar, e admirar, e absorver. Absorver o quê? Não é fácil explicar. Talvez lhe chame simplesmente a beleza do lugar – a beleza dos vitrais de Chartres. Nem queria falar deles, queria simplesmente deixar o esplendor luminoso daqueles vitrais inigualáveis inundar-me em grandes vagas. Tinha a sensação de estar a rezar sem palavras. Tal como a XI e a XII estações da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém, embora por razões muito distintas, Chartres convida-nos a «praticar a presença»: parar e deixar-se apenas estar, na bela, turbulenta e pacífica presença de Deus. (…)

Já leste, com certeza, de que maneira as estruturas das abóbadas, a altura e os arcobotantes das catedrais góticas transmitem uma noção de transcendência. O mesmo fazem, obviamente, as extraordinárias «paredes» de vidro emolduradas por pedra delicadamente cinzelada. O gótico dá a sensação de estar em suspensão ou de flutuar no espaço; e, quando estamos «dentro» do gótico, experimentamos uma sensação de leveza parecida. Mas tudo isso deve ser familiar para ti.



Imagem Catedral de Chartres | ValeryEgorov/Bigstock.com


O meu amigo Duchesne sugeriu várias outras razões para a permeabilidade à transcendência que é única no gótico. Designadamente, que o gótico é um estilo de arquitetura cristã particularmente bem-sucedida por ser caprichoso. As coisas não são uniformes. De facto, Chartres revela uma firme determinação em não ser uniforme. As grandes torres não formam um par: uma é profusamente decorada com filigrana de pedra, a outra tem um telhado simples. E depois temos as três rosáceas grandes, cada uma das quais delimitada por uma figura geométrica diferente: círculos dominam a rosácea da fachada sul, quadrados a da fachada norte, e círculos inseridos em elipses irregulares a rosácea da fachada poente. Esta misturada, segundo Jean, foi totalmente deliberada: Deus não fez um mundo homogéneo e os construtores de Chartres quiseram refletir isso no seu projeto. O gótico também sabe combinar o individual e o majestoso de uma maneira que outros estilos não conseguem igualar. Se a majestade de Chartres é evidente, é preciso olhar um pouco mais atentamente para encontrar o individual, mas está lá. Porque aqueles que, graças à sua generosidade, tornaram possível a construção de Chartres – os seus benfeitores, grandes e pequenos – são reconhecíveis nos extraordinários vitrais. Lavradores, sacerdotes, nobres, comerciantes de tecidos, padeiros, talhantes, banqueiros, peixeiros, taberneiros, ferreiros, boticários, retroseiros, torneadores, carpinteiros, sapateiros e peregrinos, todos contribuíram para a construção de Chartres. Todos são homenageados, não pelo nome, mas pelas imagens luminosas de mais de 100 cenas espalhadas pelas janelas. Alguns deram fortunas; outros, sem dúvida, deram pouco mais do que o óbolo da viúva bíblica. Estão lá todos, e todos contam, na democracia do dar-e-receber que é a Igreja. (…)

A experiência da incomparável beleza de Chartres é a principal razão para a visitar. Ao mesmo tempo, enquanto gravas essa beleza nos olhos da tua mente, permite-me que te sugira que há algumas coisas a aprender aqui – coisas que são importantes para a tua vida católica. (…) Chartres dá-nos também uma lição sobre a importância da beleza e do belo para a fé católica. O mais triste é que uma grande parte do catolicismo contemporâneo é feia: construções feias, acabamentos feios, decorações feias, paramentos feios, música feia. Há exceções, grandes exceções, com certeza. Mas, nos Estados Unidos, a tendência católica geral não é, para falar com delicadeza, para a beleza. O problema não é somente estético. É um problema religioso e teológico sério.

Porquê? Porque a beleza nos ajuda a prepararmo-nos para ser o tipo de pessoas que se sentem confortáveis no Céu, que conseguem viver com Deus para sempre. As coisas belas e a música bela fazem-nos sair de nós e ir ao encontro de uma verdade que nos supera mas é, porém, acessível aos nossos sentidos. Nestas cartas tenho falado muito do dom de si, e não da afirmação de si, como estrada régia para a felicidade humana e o progresso espiritual. Ora bem, para o dom de si poucos obstáculos são maiores do que a autoadmiração. E a beleza que, por natureza, nos faz sair de nós próprios é um antídoto para essa autoadmiração. A beleza de Beatriz arrastou Dante para fora de si próprio até ao Paraíso, para um encontro com a beleza que é o próprio Amor. A mesma experiência está ao nosso alcance nos nossos encontros com o belo.



Imagem Catedral de Chartres | isogood/Bigstock.com


A alegria da beleza é mais uma antecipação do Reino e mais uma forma de nos prepararmos para ele. Como poderíamos ser pessoas capazes de ser felizes para sempre, especialmente aquelas de nós que são rabugentas de nascença? A beleza, proporcionando-nos aqui e agora experiências de alegria imaculada, prepara-nos para essa dimensão da vida com Deus. Tal como a inesgotabilidade da beleza – o facto de nunca nos cansarmos de um belo quadro, escultura, edifício, poema ou peça musical. Na carta anterior falei da amizade e da exigência de compreensão enquanto realidades humanas que podíamos imaginar a «aumentar» indefinidamente, infinitamente até. O mesmo se aplica à inexorabilidade da beleza, que é mais uma razão por que a beleza nos prepara, ao mesmo tempo que a antecipa, para a vida no Reino, a vida para sempre com Deus. Como Hans Urs von Balthasar escreveu, quanto mais conhecemos e amamos e compreendemos uma obra de arte, mais reconhecemos que, em última análise, somos incapazes de «captar» o seu génio. É por isso que nunca «ultrapassamos» uma obra de arte amada. E essa inexorabilidade prepara-nos para «contemplar a Deus na visão beatífica, [em que] veremos que Deus é para sempre o sempre-maior».

Por conseguinte, a beleza contribui para arreigar em nós a noção do nosso espírito humano e espiritual que é a de viver eternamente na luz e no amor da Santíssima Trindade. A beleza guarda ainda outro vínculo com a fé que eu gostaria de referir de forma breve. Ela é algo que até os modernos mais céticos podem conhecer. Balthasar escreveu que as pessoas que duvidam de poder dizer o que é bom ou o que é verdadeiro não podem ser igualmente céticas em relação ao significado da beleza desde que a tenham experimentado. As pessoas sabem que sabem o que é belo. Assim, a beleza é um dos meios pelos quais podemos introduzir os nossos amigos ou colegas com dúvidas no mistério que frequentemente negam: o mistério de que a verdade existe e nós podemos conhecê-la. Depois de terem atravessado a ponte do ceticismo radical, os resultados podem ser dramáticos e surpreendentes. (…)

Tudo isto leva-nos ao grande mentor teológico da Idade Média, Santo Agostinho, e às suas Confissões. No momento porventura mais lírico e mais célebre dessa primeira autobiografia autêntica, Agostinho repreende-se pela sua resistência, exultando depois na sua rendição a Deus, que é a própria Beleza:

«Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Te amei! Tu estavas dentro de mim e eu fora, e era aí que Te procurava. Na minha deformidade, precipitava-me nas coisas formosas que Tu criaste. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Mantinham-me longe de Ti as criaturas, que não o seriam se em Ti não fossem. Chamaste, gritaste, e rompeste a minha surdez. Brilhaste, cintilaste, e dissipaste a minha cegueira. Exalaste o teu perfume; eu respirei e agora suspiro por Ti. Saboreei-Te, e agora tenho fome e sede de mais. Tocaste-me, e ardi de desejo do teu abraço».

O espírito católico não pode viver sem beleza; o espírito humano não pode viver sem beleza. (…)



Imagem Catedral de Chartres | Tashka/Bigstock.com


Gostava de concluir esta carta atando algumas pontas soltas da nossa conversa por meio de um apontamento sobre ícones. Os ícones foram sempre parte integrante da devoção das igrejas católicas orientais, igrejas particulares de liturgia bizantina que permaneceram em plena comunhão com Roma. Porém, até há pouco tempo, o ícone não tinha um papel significativo na Igreja Católica Ocidental. Agora, muitas igrejas paroquiais ostentam ícones e eles podem ser facilmente encontrados em livrarias católicas e boas lojas de artigos religiosos. São, além disso, cada vez mais os católicos que os têm em casa e rezam diante deles. Porquê? (…)

Os católicos pós-Vaticano II poderão estar a descobrir a força dos ícones, após muitas décadas pré-conciliares de «arte» religiosa que era, verdade seja dita, muito má. Em todo o caso, seja como resposta à fealdade na Igreja Americana atual, seja por um desusado mau gosto católico, o interesse recente pelos ícones é pedagógico pela mesma razão que Chartres é pedagógica: diz-nos que a beleza e a oração andam de mãos dadas.

Quando Chartres nos exorta a sairmos de nós próprios para um reino de luminosa beleza está a exortar-nos delicadamente a rezar. Os admiráveis artífices que deram aqueles azuis e aqueles vermelhos aos vitrais de Chartres entendiam o seu trabalho como uma oferta à Rainha do Céu, padroeira e protetora da sua cidade. Ao mesmo tempo, os vidros que fizeram constituíam um convite a uma visão mais ampla e profunda da condição humana que leva, necessariamente, ao louvor e à ação de graças, à intercessão e à contrição, numa palavra, a rezar. Isso vale igualmente para os ícones. Penso que é isso que intuitivamente compreendem as muitas pessoas que atualmente adquirem ícones, ou aplaudem a ostentação de ícones nas suas igrejas.

Como já vimos, nós não olhamos apenas para os ícones; nós olhamos através deles e descobrimo-nos embrenhados na Verdade que o iconógrafo «escreveu». Encontramos a verdade de Cristo através do Christos Pantokrátor, tal como encontramos a verdade de Maria na Virgem Negra e a verdade da Santíssima Trindade na célebre representação da visita dos anjos a Abraão da autoria de Andrei Rublev. Todos esses encontros são convites à oração. A beleza é um convite à oração. Deus, que é a «Beleza tão antiga, tão nova» de Santo Agostinho, derrama a beleza no mundo como uma faceta da sede que tem de nós. Deus pede que bebamos da fonte da beleza, aqui e agora, para um dia podermos por fim saciar-nos da sua própria beleza inefável, inexprimível e inesgotável na Nova Jerusalém.



Imagem Catedral de Chartres | ValeryEgorov/Bigstock.com


Através da beleza de Chartres encontramos aquilo a que os Padres Gregos chamavam a «divinização» do homem. O cardeal Christoph Schónborn, O.P., arcebispo de Viena, recorda-nos que esta «divinização» do homem é possível por aquilo a que o cardeal chama «a humanização de Deus»: a Encarnação. Quando o Deus feito carne entra na história, transformam-se radicalmente não só a história, mas também as possibilidades do que é humano. Graças à Encarnação, a natureza humana é levada ao seu cumprimento, à sua plenitude.

É esta a verdade que resplandece nos indescritíveis azuis das janelas de Chartres. É esta a verdade que torna possível cada ícone. É a Graça em ação: Deus derrama sobre o mundo e sobre as nossas vidas a sua vida superabundante. À semelhança de Santo Agostinho, desejamos ardentemente o abraço da Beleza, que é sempre a mesma e se renova sempre. Este desejo ardente, que o próprio Deus inscreveu em nós, é o início de qualquer oração.



 

George Weigel
In "Cartas a um jovem católico"
Imagem de topo: ValeryEgorov/Bigstock.com
Publicado em 11.12.2024

 

Título: Cartas a um jovem católico
Autor: George Weigel
Editora: Lucerna
Páginas: 312
ISBN: 9789899207479

 

 
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