José Carlos Seabra Pereira/SNPC
O papa Bento XVI frisou bem que a Igreja precisa de celebrar um novo pacto criativo com o mundo da cultura e, em particular, das artes. As três palavras são preciosas: primeiro, pacto - só há pacto quando há interesse em convergir e concertar posições, com base num conhecimento mutuo e sem intuito de imposições unilaterais; depois, é um pacto novo, pois parecia que estava o pacto estabelecido de uma vez para sempre, mas nunca está de uma vez para sempre, portanto é incómodo mas talvez seja melhor assim, exigem mais de nós e podemos dar mais na medida dos talentos que Deus nos deu; finalmente, um novo pacto criativo, no sentido de que não estava já ali patente e disponível, mas que tem de ser demandado e inventado e dotado de virtualidades insuspeitadas.
Eminência: Em que ponto estamos desse novo pacto criativo? Onde e como estará avançando? Se não, por que razões?
Cardeal Gianfranco Ravasi Ravasi, presidente do Conselho Pontifício da Cultura
Este pacto criativo está a avançar, substancialmente, a dois níveis. Um primeiro, que foi aberto por Bento XVI, o debate com a cultura contemporânea, com visões alternativas, muitas vezes. Aqui entra todo o discurso sobre a categoria de “diálogo”, com a complexidade que comporta, sobretudo porque temos de estar conscientes, antes de tudo, do nosso “sujeito”, isto é, do tema, do nosso logos, da nossa riqueza, o que nem sempre acontece porque vive-mos num tempo de esquecimento. Por outro lado, é preciso reconhecer os valores que estão presentes dentro dos vários logoi da cultura contemporânea.
O segundo caminho neste pacto criativo, pedido também pelo papa Francisco, é o encontro no terreno concreto das relações sociais, das relações interpessoais, das relações entre os povos, que passam cada vez mais, na cultura contemporânea, não pelo diálogo, mas pelo monólogo, o medo, por exemplo, o fundamentalismo.
Por isso, penso que este novo pacto criativo com a cultura atual deve ter sempre dois níveis: o nível teórico e o nível prático, digamos, ser concomitantemente elaboração de uma visão e, por outro lado, declinação dessa visão na concretude da nossa existência.
Sua Eminência deu o exemplo da prática do «dueto» em vez do «duelo» com os intelectuais e os artistas que parecem gravitar fora da esfera da cultura cristã. Continua a crer que tal exemplo se justifica e que produz bons resultados?
Esta é a visão cristã, mesmo que não tenha sido sempre colocada em prática na história da Igreja, que muitas vezes adotou o duelo. Houve também o desejo de usar a força, de não dar atenção às minorias, a certas formas diferentes de cultura, alguns tipos de evangelização forçada – no mundo português, no mundo espanhol, noutros ainda. Havia esta mentalidade.
O duelo é sempre mais fácil, porque se tenta recorrer à força. Pelo contrário, o dueto é precisamente a consciência da pluralidade da realidade. A realidade eterna e finita, a que nos precede e nos excede, que é transcendente. Como tal, nós não a podemos dizer. Mesmo como crentes católicos, conscientes de ter uma verdade, a Verdade, mas não toda a verdade, porque essa é apenas de Deus, que possui a plenitude.
Por esta razão, há a consciência da própria verdade que se tem, que foi conquistada, através da pesquisa, neste caso, da Revelação. É preciso reconhecer, no entanto, que existem sementes do Verbo que estão presentes noutras culturas, noutras religiões, uma alma da mesma verdade, da única verdade divina.
O dueto faz com que exista a noção de que não dizemos a mesma coisa, que temos posições diferentes. Cada um dialoga na harmonia e coloca em prática, no fundo, a verdadeira linha do cristianismo, que não por acaso introduziu a lei fundamental da Caridade, também a caridade intelectual. Com o duelo, não há Caridade…
Na cultura contemporânea parece vigorar um princípio de incerteza ou de indeterminação. Concorda com a perspetiva de que a crescente consciência da relatividade dos paradigmas de conhecimento e dos critérios estéticos, num contexto de globalização e multiculturalismo, aumenta a exigência da interpretação cristã e a responsabilidade nos juízos de valor?
Antes de tudo, é preciso dizer que multiculturalismo - no qual apenas se está, respeitando cada um, à distância, sem uma verdadeira relação - não é a grande meta cristã. A grande meta cristã é a interculturalidade.
O cristianismo tem uma presença. Não é um acaso que a figura do papa Francisco é significativa, ainda: na sociedade contemporânea, é a única voz mais importante, do ponto de vista ético, que é ouvida. Os outros procuram gritar, fazer o que fazem, e sabemos bem o que significam, às vezes, certas vozes de certos políticos… Não têm uma capacidade tão forte.
Há necessidade de escutar uma voz assim. O cristianismo, o Evangelho têm uma força extraordinária, devemos ter mais noção disto, que o mundo espera esta mensagem, ainda que não o saiba. No interior destas perguntas há um reconhecimento otimista, positivo, não devemos dizer simplesmente que «o relativismo atual se tornou reinante, que as pessoas não querem ter palavras com pretensão de verdade»…
Pelo contrário, esta necessidade sente-se, eu vejo-o no Átrio dos Gentios. As pessoas não conseguem imaginar quanto nos pedem para participar, os não crentes, mais do que os crentes. Há tantas iniciativas a decorrer que já não consigo sequer segui-las, em todo o mundo. São eles os primeiros a pedir que intervenha, a falar sobre um tema.
Na atualidade, mestres da espiritualidade lamentam que a filosofia da segunda metade do séc. XX e dos alvores do séc. XXI quase tenha deixado cair a ontologia, a cosmologia e a antropologia filosófica, num empobrecimento imponderado da reflexão metafísica. Em contrapartida, a Igreja e os intelectuais católicos confrontam-se - nos debates sobre questões ético-sociais ditas «fraturantes», por exemplo - com as consequências de assim ter-se cedido a certos domínios de ponta da investigação científica, como a genética, a robótica e a astrofísica, o espaço de interrogação sobre os problemas antropológicos e cosmológicos de fronteira.
Acho muito bem observadas por si essas questões; e considero-as muito pertinentes. A tal ponto as considero importantes que elas constituem a temática principal da conferência sobre a problemática atual da evangelização da cultura que vou proferir amanhã – ciência e antropologia (genética e ADN, neurociências, inteligência artificial) infoesfera e “rede”, etc. - no âmbito das Jornadas sobre Secularização, Diálogo, Discernimento [Jornadas de Atualização do Clero do Sul, Albufeira, 29.1.2018 - 1.2.2018].