«Quando um escritor morre, como ironicamente escreve Alexandre O’Neill, talvez o registo oficial seja apenas o de “uma tosse a menos na cidade”. Na verdade, porém, ele legou aos seus contemporâneos e aos vindouros um território que antes não existia, como por vezes o fazem as erupções vulcânicas com os seus derrames de lava.»
Na página que assina na revista do “Expresso”, o cardeal Tolentino Mendonça destaca, esta sexta-feira, a dupla tarefa da literatura: «Por um lado, tornar consciente em nós o impacto avassalador da vida, mas, por outro, tentar uma espécie de reparação».
A literatura, explica Antonio Tabucchi, a quem o bibliotecário e arquivista da Santa Sé dedica grande parte da crónica, «existe para dar uma hipótese à piedade e para que a versão dos vencidos possa ser escutada».
No final de novembro, o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura observou que a literatura é «uma grande escola de sabedoria», que «permite escutar as lições de mestres de todos os tempos».
Nesse sentido, «a ideia que agora circula de associar a arte ao entretenimento é um mal-entendido. A arte é uma mistagogia, uma iniciação ao mistério, um despertar», apontou, em entrevista ao blogue “Somos livros”, de Bertrand.
Convidado a nomear «cinco ou seis livros absolutamente essenciais», o Card. Tolentino começou por mencionar “Ilíada”, «mas também o comentário que Simone Weil escreveu (“A Ilíada ou o poema da força”)».
E prosseguiu: «Que se lesse as “Confissões”, de Santo Agostinho, e o pequeno ensaio de Harold Bloom, “Santo Agostinho e a leitura”; a “Divina comédia”, de Dante Alighieri, e o comentário que escreveu Mandel'štam ou Borges».
E, ainda: «A poesia de Rainer Maria Rilke e o intenso e radical comentário que Etty Hillesum faz no seu “Diário”; um livro de Maria Gabriela Llansol e a chave oferecida por Silvina Rodrigues Lopes em “Teoria da des-possessão”». Porque «é importante ler os livros, mas também entrar no espaço vivo da leitura».
E a Bíblia? «Não é um livro, é uma biblioteca vertiginosa. Permitam-me não fugir dela, porque o meu amor pela literatura nasce daí», declara.
«Quando fui ordenado padre, há trinta anos, fiz aquilo que todos os padres fazem: a promessa de recitar diariamente o Livro dos Salmos. É uma antologia poética tremenda. Uma espécie de autobiografia da inquietação e do desejo de Deus. Sem dúvida que a literatura bíblica sapiencial me toca particularmente: os Salmos, mas também o Eclesiastes ou o Cântico dos Cânticos», afirma.
O elenco prossegue: «Depois, os profetas: Isaías à cabeça, mas também a prodigiosa oficina de imagens de Ezequiel, ou o existencialismo atribulado de Jeremias. Dos Evangelhos, Lucas tem sido o que tenho trabalhado mais persistentemente, mas cada um dos outros é absolutamente inesquecível. E para citar um dos textos de São Paulo, a Carta aos Romanos que é um dos textos mais fulgurantes que li».
A literatura, anota no “Expresso” desta semana, é uma cartografia composta por «mapas aumentados que os romances, os contos, os poemas obrigam a produzir, porque nos informam que a paisagem que vemos esconde imprevisíveis elipses, que as ruas que percorremos se prolongam quando nos parecem que terminam, que há mais passagens, praças, colinas, jardins e morada».
A obra mais recente do Card. Tolentino, “Rezar de olhos abertos” (ed. Quetzal), ocupa o terceiro lugar dos livros de não-ficção mais vendidos (16 a 22 de novembro).
«A oração não é simplesmente um assunto privado, mas, como defendo no livro, é um problema político, um assunto de conversa para todos. Trata-se de compreender e experimentar a religião como prática vital, e não apenas como teoria ou doutrina», assinala.
Do título, a explicação: há «pessoas que abrem esforçadamente os olhos ao rezar, que finalmente os abrem numa tentativa de olhar a vida no seu flagrante espanto, no seu rasgão dilacerante, no seu risco, na sua inteireza e alegria».