Para abordar em profundidade um discurso sobre a beleza, é preciso, antes de tudo, a coragem de dizer que a beleza é um enigma, ainda que hoje se fale muitas vezes dela com demasiada ingenuidade. Desde a aurora da modernidade ressoam como sempre atuais as inquietas palavras de Albrecht Dürer: «Que coisa é a beleza, não sei», porque toda a tentativa de a definir parece inadequada, insuficiente. A beleza é ambígua, como todas as coisas que se manifestam enquanto realidades terrestres, experimentadas pelos humanos. A beleza seduz, fere, intimida, exalta, emudece…
É necessário fazer uma distinção preliminar: há uma beleza cantada pela fé, a beleza de Deus, o Criador, da qual fazem a experiência quantos e quantas, graças à dýnamis do Espírito Santo, sabem exercitar os sentidos da fé; há, por outro lado, uma beleza das criaturas experimentável por cada ser humano, na plenitude dos seus sentidos corpóreos. O crente pode até chamar tu à beleza de Deus, confessando que a beleza não é um atributo, uma propriedade, mas um sujeito, o próprio Deus, segundo as conhecidas palavras de Agostinho: «Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei» (Confissões 10,27). Também nas sagradas Escrituras se proclama «esplêndido e magnífico és Tu, ó Deus!» (Sl 76,5), e afirma-se que Deus será a beleza da cidade santa: «Dominus erit pulchritudo tua» (Is 60,19). Mas quando o salmista e o profeta declaram isto, referem-se a uma beleza confessável só na fé, porque «a Deus, nunca ninguém o viu» (Jo 1,18).
Mais fácil de decifrar é a beleza do Rei Messias, celebrado como «o mais belo entre os filhos do homem» (Sl 45,3), cantado pela esposa do Cântico dos Cânticos com as palavras: «Tu és belo e gracioso, ó meu amado!» (Ct 1,15). Mas na medida em que as Escrituras se referem ao Messias Jesus esta beleza pode ser entendida como “outra”, beleza do pastor, daquele que assume o cuidado pelo seu povo: «Eu sou o pastor bom e belo (kalós)» (Jo 10,11.14); até pode ser não-beleza, quando Ele se revela como o Servo do Senhor: «Vimo-lo, não tinha nem beleza nem esplendor» (Is 53,2). A beleza de Cristo transcende o visível: só o agápe, o amor, é capaz de a narrar, e, portanto, de induzir a contemplá-la.
Há, por outro lado, a beleza das criaturas, aquela que Deus, depois de as ter criado, viu que eram «coisa bela e boa» (Gn 1,4.10.12.18.21.25); entre elas assinala-se o adam, o terrestre, criatura «muito bela» (Gn 1,31). Esta beleza oferece-se à nossa contemplação: é a beleza do céu (cf. Sl 8,4); é a beleza da natureza, das epifanias cósmicas (cf. Sir 42,15-43,33), nas quais «toda a obra de Deus supera a beleza da outra; quem pode cessar de contemplar o seu esplendor?» (Sir 42,25). Esta criação está repleta de beleza, de tal maneira que o livro da Sabedoria pode proclamar: «Tu amas todas as criaturas existentes, não experimentas desgosto por nenhuma das coisas que criaste (…). Como poderia conservar-se aquilo que por ti não foi chamado à existência, (…) ó Senhor, amante da vida?» (Sab 11,24-26).
Mas a beleza das criaturas – como se dizia – não é privada de ambiguidade e de equívocos, porque pode tornar-se beleza do ídolo, falso antropológico antes que teológico, pode ser uma beleza sedutora que induz à tentação: «A mulher viu que a árvore era (…) fascinante para os olhos» (Gn 3,6), tal como era boa e apetitosa; e David, vendo a belíssima Betsabé do terraço do seu palácio, foi seduzido, até causar o homicídio do seu marido para a ter (cf. 2Sam 11). Todos conhecem a frase de Fiodór Dostioévski: «A beleza salvará o mundo» (mas no texto de O idiota trata-se de uma pergunta!); esquece-se, no entanto, que para ele a beleza é tanto a epifânica, divina, quanto a idolátrica, que ele declara beleza de Sodoma. Portanto ambas as belezas ferem: ou são effroi, «surpreendente pavor» - como gostava de dizer Jean-Louis Chrétien – ou induzem ao ékstasis, mas são belezas diferentes!
Cada ser humano está esfomeado e sedento de beleza, mas o discernimento da beleza reveladora de Deus e da sua ação requer uma educação da inteligência do coração, um caminho de discernimento nunca concluído, um caminho árduo de procura do sentido inscrito em cada beleza. Quanto mais o aspeto sensível atrai pela sua beleza, mais o homem é tentado a não escutar a sua interioridade, para permanecer, antes, capturado pela exterioridade. São conhecidas as reflexões contidas no capítulo 13 do livro da Sabedoria, e, em particular, naquele passo que enternece o coração e, ao mesmo tempo, denunciar o processo de sedução da beleza, a qual desperta o desejo de possuir e de consumar:
«Se os homens, fascinados pela beleza das criaturas, as tomam por deuses, (…)
se, impressionados por elas,
não são capazes de contemplar,
através da sua grandeza e da sua beleza, o seu autor,
para eles leve é a censura,
porque se enganaram procurando Deus e querendo-o encontrar (…),
e porque belas são as coisas vistas» (Sb 13,3-7).
Eis o drama da beleza: é fácil proclamar que a beleza indica, ensina, revela Deus, mas fazer o itinerário através da beleza para chegar à contemplação da beleza divina não é fácil, aliás, é dramático! Basta pensar no rosto, no corpo do adam, masculino e feminino: quanto mais vemos o velo, mais poderemos colher nele o sacramento da beleza de Deus; mas mais facilmente nós, humanos, como que encantados, optamos pela via idolátrica da adoração da criatura, prostramo-nos por causa da sua beleza, até à coisificação do belo, ao consumismo do belo privado da sua subjetividade e da sua sacramentalidade divina. O homem é imagem de Deus (cf. Gn 1,26-27), mas não é fácil chegar a este reconhecimento. Não foi por acaso que Jesus – como narra um seu esplêndido dito não canónico – afirmou: «Viste um homem, viste Deus», revelação que deveria causar sobretudo uma responsabilidade do sujeito para com o outro.
Gosto muito da interpretação da transfiguração de Cristo provida pela espiritualidade oriental cristã. Segundo alguns autores, não foi Jesus a transfigurar-se, mas foram os olhos dos discípulos que conheceram um processo de transfiguração, e assim foram capazes de ver nele aquilo que antes não viam: Ele era carne frágil como eles, mas, ao mesmo tempo, Filho de Deus, imagem do Pai invisível. Sim, nós precisamos de transfiguração para perceber a verdadeira beleza, para ver o invisível no visível.