Na sua recente visita apostólica ao Panamá, por ocasião da 34.ª Jornada Mundial da Juventude, o papa Francisco dirigiu um discurso aos bispos centro-americanos, a que é preciso regressar. Trata-se de um discurso de grande densidade espiritual, mas também com uma inegável intencionalidade prática: oferecer um modelo fortemente cristológico [baseado em Jesus Cristo] à Igreja do nosso tempo. A fonte imediata da inspiração do discurso papal foi o testemunho de S. Oscar Romero, que escolhe como moto do seu brasão episcopal a expressão «Sentir com a Igreja».
O que significa «sentir com a Igreja»? Romero explicava-o como uma participação na glória da Igreja, que é transportar no próprio íntimo toda a “kènosis” [auto-esvaziamento] de Cristo.
É daqui que Francisco parte, reiterando que a “kènosis” de Cristo não pertence ao passado, mas é uma garantia atual para descobrir e experimentar a sua presença operante na história. Porque a “kènosis” atesta que a salvação de Deus não se produz de uma forma abstrata, mas atravessa verdadeiramente a realidade como ela é, fazendo-se próxima da vida concreta, com as suas feridas e contradições, com a sua sede e a sua esperança.
Neste sentido, a “kènosis” de Cristo representa um chamamento a deixarmos para trás o plano virtual, isto é, das idealizações e dos discursos de circunstância, e a abraçarmos a vida real, permitindo-lhe imprimir na comunidade eclesial (nas nossas prioridades, gostos e opções) um sinal efetivo.
Não podemos permanecer indiferentes aos sofrimentos das multidões de excluídos, daqueles que são catalogados como mercadorias descartáveis, que são descidos à “segunda divisão” e cuja dignidade não é tomada em consideração na ordem social e do progresso. Não podemos esquecer, insiste o papa Francisco citando uma frase de Bernanos [escritor], que «uma verdadeira dor que sai do homem pertence, antes de tudo, a Deus».
É importante recordar que o termo “kènosis” não é, por si, um termo bíblico, embora se inspire indiscutivelmente nas Escrituras. Ele foi cunhado tardiamente, pela mão dos Padres gregos, e conheceu um relevante amadurecimento na história da teologia e da espiritualidade, mas remonta diretamente àquela insólita fórmula que faz o seu aparecimento no hino cristológico da Carta aos Filipenses (2,7), quando se diz que Cristo «se esvaziou a si mesmo» (“heauton ekenosen”).
É a única vez, em todas as Sagradas Escrituras, que o vermo “kenoun” – um verbo que no Novo Testamento só Paulo utiliza – conhece um uso reflexivo. Paulo retoma o verbo noutros quatro passos das suas cartas (1 Coríntios 1,17; 9,15; 2 Coríntios 9,3; Romanos 4,14), com gradações diferentes de significado, mas que convergem todas na ideia de «espoliar», «esvaziar», «privar de força», «reduzir a nada», «anular».
Em todos estes passos, no entanto, o verbo aparece no interior de uma cláusula de negação: o objetivo é, nestes casos, evitar o «esvaziamento», seja o do valor da cruz de Cristo, ou da fé, ou da credibilidade do apóstolo. Mas em Filipenses 2,7 assistimos a uma clamorosa inversão: é o próprio Jesus que toma a iniciativa de esvaziar-se: «[Cristo Jesus, apesar de ser na condição de Deus, não retém como um privilégio o ser como Deus,] mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo uma condição de servo…». Na verdade, este «esvaziamento», esta “kènosis”, não é só uma singularidade deste fascinante elogio de Cristo que Paulo insere na Carta aos Filipenses, fazendo-se provavelmente eco de uma tradição pré-existente, e que podemos descrever como uma espécie de ícone para pensar e amar Cristo.
A “kènosis” é uma característica permanente do caminho de Jesus, ao ponto de podermos dizer que todo o seu caminho entre os homens foi um abaixamento contínuo, expresso no dom radical de si. O modo como Jesus assumiu a condição humana foi, até ao fim, um serviço amoroso aos irmãos, reservando para si o último lugar, dispondo-se a uma progressiva humilhação, obedecendo até à morte, e morte de cruz. Mas esta “kènosis” assumida por Jesus não eclipsou a sua divindade: ao contrário, precisamente através dela Jesus revelou a sua divindade e a do Pai, dado que «Deus é amor» (1 João 4,8).
E precisamente no corpo dos escritos joaninos encontramos uma imagem que nos explica a estranheza da afirmação do hino dos Filipenses. Trata-se do capítulo 13 do Evangelho de João, quando Jesus se espolia, depõe as suas vestes e põe-se a lavar os pés dos discípulos.
O Mestre e Senhor que se torna Servo para deixar um exemplo: «Se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros… para que também vós falais como Eu vos fiz a vós» (João 13,14-15).
No seu discurso no Panamá, o papa Francisco ajudou-nos, uma vez mais, a compreender em que circunstância a Igreja se distancia de Cristo: quando, em vez da “kènosis”, a Igreja se fecha, por medo ou por orgulho, numa lógica de autossuficiência; ou quando o modelo funcionalista e burocrático se sobrepõe à experiência efetiva da fraternidade, onde a capacidade de chorar as lágrimas uns dos outros e de partilhar reciprocamente as alegrias se torna a norma escrita no coração; ou quando o clericalismo, feito fetiche e ideologia de domínio, faz um uso abusivo do poder. Francisco propõe à Igreja de hoje pôr-se na dependência de Cristo, interpretando a sua missão não só genericamente na ótica de Cristo, mas como participação real na missão de Cristo.
Ora, a sabedoria cristológica diferencia-se de qualquer outra sabedoria humana, e aos olhos desta última poderá parecer falta de sabedoria, auto-esvaziamento de si, desperdício do eu e loucura. Mas não existe construção da identidade cristã sem esta “imitatio” da “kènosis” de Cristo. O Santo Padre indica três elementos concretos e atuais de tal “imitatio”.
A Igreja é chamada a redescobrir a centralidade da compaixão. «A “kènosis” de Cristo é a expressão máxima da compaixão do Pai. A Igreja de Cristo é a Igreja da compaixão; e isto começa em casa», recorda-nos Francisco. É muito fácil, inclusive nos ambientes eclesiais, deixar-se contaminar por uma lógica de condenação do irmão, em vez de fazer prevalecer os dinamismos da caridade fraterna.
Devemos voltar a dar vida àquilo que Paulo escreve na Carta aos Filipenses, quando nos ensina que a «vanglória» (“kenedoxia”) é o oposto daquela humildade que é assim indispensável à “kènosis”: «Não façais nada por rivalidade ou vanglória, mas cada um de vós, com toda a humildade, considerais os outros superiores a vós mesmos» (2,3).
A Igreja é chamada a redescobrir a importância da escuta. Esta é ameaçada por um grande risco, tanto na complexidade organizativa como no quotidiano da vida eclesial: sem nos darmos conta, permitimos que prevaleça um espírito administrativo, em vez de um espírito de escuta.
Ocupamo-nos tanto da funcionalidade do sistema, que perdemos de vista as pessoas e a necessidade de as colocarmos no centro da missão eclesial.
Bem depressa nos encontramos sem mais tempo para nos escutarmos, as portas fecham-se, e os monólogos erradicam aquilo que deveria ser, acima de tudo, o espaço de diálogo e de mútua edificação.
A Igreja é chamada a redescobrir a força geradora da pobreza. A Igreja aprofunda o seu mistério quando redescobre que a pobreza a torna mais materna e melhor fortificada para aquela que é a sua verdadeira força: os braços estendidos e impotentes do Crucificado.
Deste modo, a Igreja revive as palavras de Pedro e de João nos Atos dos Apóstolos: «Não possuo nem prata nem ouro, mas aquilo que tenho dou-te: no nome de Jesus Cristo, o Nazareno, caminha!» (3,6). A pobreza evangélica serve à Igreja de bastião, pois protege-a da mundanidade espiritual, do poder sem discernimento, e das cedências às forças externas (sejam políticas ou económicas) que depois limitam a sua liberdade de pregar profeticamente o Evangelho de Cristo. Esta pobreza é certamente um exercício de “kènosis”, mas também uma condição para a fecundidade de uma Igreja que se quer hoje configurada a Jesus.