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A Arte Sacra e os processos da criação

Numa perspetiva da História da Arte, a partir de 1054, século XI, com o Cisma do Oriente, as duas Igrejas, a católica e a ortodoxa, divergiram em orientações e práticas artísticas, que tornaram bem diferentes a tradição ocidental e romana da oriental e bizantina.

Começarei por dar alguns exemplos de obras que caracterizam ambas as tradições e vou trazer à memória dos presentes algumas obras essenciais da arte sacra europeia. Não há qualquer relação temática ou estilística entre elas, apenas as juntei por serem representativas, embora diversas, do modo como na Europa se tratavam as imagens religiosas.

Matthias Grünewald, pintor do séc. XVI e precursor do expressionismo alemão, pintou a Crucifixão num retábulo que está em Colmar na Alsácia. Esta obra é conhecida pelo modo terrível e surpreendente como Jesus Cristo é representado. Trata-se, provavelmente, da mais impressionante pintura de Cristo na cruz que alguma vez foi feita. Grünewald, um homem místico e profundamente religioso, distorceu o corpo de Jesus em espasmos de dor e pintou-o com cores que ilustram o dramatismo da tortura e da morte. Este retábulo foi realizado para um convento de frades de Isenheim que geriam um hospital e a ideia era a identificação dos doentes e dos seus males com a Paixão de Cristo.



Imagem "Retábulo de Isenheim" (det.) | Matthias Grünewald


Outra obra famosa, é a pintura de Rembrandt que ilustra o encontro do Pai com o Filho Pródigo num comovente gesto de acolhimento. A composição e a interpretação das figuras tornam esta encenação da passagem bíblica numa obra de arte única. Estamos perante uma das mais importantes pinturas do Ocidente, feita por um pintor genial que sabia dar toda a profundidade à cor. Profundidade que ultrapassava a perspetiva e a densidade do espaço físico para representar o espaço emocional que envolve as figuras.



Imagem "O regresso do filho pródigo" | Rembrandt


Entre as obras magistrais, não posso deixar de referir a Última Ceia pintada por Leonardo da Vinci que inventou um espaço e uma encenação que ficou gravada como matriz no imaginário da cristandade. É-nos difícil conceber um outro modo de representar esse momento fundador do sacramento da eucaristia. Foi copiada por mestres e aprendizes até aos nossos dias, incluído o próprio Rembrandt. Foi reproduzida e em todos os tamanhos e materiais. Ainda hoje vemos cópias nas lojas de produtos religiosos, nas de decoração e nas feiras. Leonardo inventou uma imagem que se sobrepôs a qualquer outra representação da Última Ceia durante séculos.


Imagem "A Última Ceia" | Leonardo da Vinci


Para usar uma linguagem contemporânea, é um caso de êxito de imagem de marca que qualquer designer de produto invejaria.

Posso continuar a citar exemplos fantásticos de obras que nos marcaram e que se tornaram símbolos da nossa cultura. Quando pensamos em S. Francisco de Assis vêem-nos imediatamente à memória as pinturas a fresco de Giotto ou a transverberação esculpida por Bernini quando pensamos no êxtase de Santa Teresa de Ávila.

Entre centenas de exemplos, escolhi apenas um pequeno número de obras que se caracterizam por serem de expressão muito forte e representativas da arte ocidental. Convém dizer que estes artistas trabalhavam por encomenda e cumpriam as determinações da Igreja. A hierarquia romana tem afirmado, desde há séculos, que a arte religiosa deve ser inteligível e realista servindo, acima de tudo, como ilustração dos textos sagrados e estímulo emocional à religiosidade. As obras selecionadas ilustram estes princípios.

Passando para o lado do Oriente, vemos uma linha artística bem diferente, que decorre do Cristianismo ortodoxo. Embora nos primeiros tempos a influência fosse comum, foi em Constantinopla que se deu o grande debate sobre as imagens e a crise iconoclasta. À distância, parece-nos hoje, que se trata de uma discussão académica mas, no seu tempo, deu origem a grande violência, destruição de imagens e finalmente à necessidade de se estabelecer uma teologia da imagem. A fase iconoclasta e o seu desfecho vieram a influenciar a cultura do mundo civilizado da época.

Será útil dizer que a querela das imagens é a mesma dos ícones pois a palavra vem do grego εἴκων (eikôn), que quer dizer imagem, retrato. A expressão iconoclasta quer dizer destruidor de imagens.



Deus, sendo invisível, não pode ser representado e todas as ilustrações só podem ser falsas e intoleráveis para Jeová. De facto, desde a Antiguidade, a cultura hebraica assim o entendeu e cumpriu. Conhecemos também as consequências que este mandamento teve na cultura islâmica. No cristianismo a situação é diferente



Postas estas primeiras considerações, vamos agora debruçar-nos sobre a génese das imagens cristãs e de como nasceram no contexto da sua proibição, contra a lei do Antigo Testamento. Os Dez Mandamentos constituem o código mais importante das três "Religiões do Livro”. É no texto do Êxodo (20,2-17), repetido no Deuteronómio (5,6-20), que se encontra a lei básica para os mundos judaico, cristão e muçulmano e, consequentemente, para o comportamento das suas sociedades. Portanto, Jeová afirma: “Eu sou o Senhor teu Deus (…). Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti ídolos ou coisa alguma que tenha a forma de algo que se encontre no alto do céu, em baixo na terra ou nas águas debaixo da terra. Não te prosternarás diante desses deuses e não os servirás, porque eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento". Ainda no Deuteronómio (4,15-18) repete a mesma ideia: “No dia em que o Senhor vos falou no Horeb, do meio das chamas, não viste forma alguma. Não vos corrompais fabricando um ídolo, uma forma qualquer de divindade, imagem de um homem ou de uma mulher, imagem de qualquer animal da terra, de qualquer pássaro que voa no céu, imagem de qualquer réptil que rasteja sobre o solo ou de qualquer peixe que vive nas águas sob a terra".

A regra é clara, Deus proíbe a realização de imagens, porque as imagens são consideradas formas de idolatria. Portanto, Deus, sendo invisível, não pode ser representado e todas as ilustrações só podem ser falsas e intoleráveis para Jeová. De facto, desde a Antiguidade, a cultura hebraica assim o entendeu e cumpriu. Conhecemos também as consequências que este mandamento teve na cultura islâmica. No cristianismo a situação é diferente.

Com o dogma da Encarnação, Jesus Cristo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, encarna e assume integralmente a natureza humana sem perder a divina. Na tradição ortodoxa, a Encarnação de Jesus Cristo torna-o ícone do Pai. Para o afirmar baseiam-­se nas palavras de S. João: “Quem me vê, vê o Pai” (14,9) e na carta de S. Paulo aos Colossenses: “É Ele a imagem do Deus invisível” (1,15).



Em todo este processo é de destacar o papel de S. João Damasceno, o teólogo que elaborou a primeira reflexão teológica sobre o tema, tendo redigido três versões do Discurso para a Defesa das Imagens. Foi pioneiro na teorização da representação visual e a ele devemos grande parte da arte que se produziu depois da crise iconoclasta



Portanto, há aqui uma diferença fundamental em relação aos Judeus e Muçulmanos.

Pela Encarnação. Jesus Cristo torna-se o Pontifex, aquele que participa das duas naturezas e faz a ligação entre o divino e o humano. Assim, é possível representá-lo porque Ele próprio também é uma representação de Deus Pai.

Evidentemente esta questão é teológica e, já no Concilio de Niceia I, em 325, Santo Atanásio combate o arianismo abordando a questão das imagens. É ele que estabelece a primeira base teológica da representação, sobretudo do Cristo “Pantocrator” e depois da corte celeste, santos e anjos.

Entretanto, as coisas vão evoluindo e por volta de 726, em Bizâncio, os imperadores, por influência dos povos vizinhos islamizados, retomam a questão da iconoclastia. Voltam a proibir as imagens por serem ídolos, e o próprio imperador destrói uma imagem de Cristo exposta em lugar público. Mais tarde, em 787, o Concilio de Niceia II, vem estabelecer novas bases teológicas, produzindo afirmações muito claras contra a iconoclastia, considerando que a destruição das imagens não é uma boa prática religiosa e afirmando que estas devem ser respeitadas ao mesmo nível que as relíquias, os vasos sagrados e outros instrumentos litúrgicos. O assunto fica encerrado com um Decreto imperial promulgado pela Imperatriz Teodora em 843 que regula, definitivamente, a questão da iconoclastia. Se depois desta crise e da sua resolução, a Cristandade passou a aceitar as imagens, os Judeus e os Muçulmanos, continuaram a ter a mesma convicção, rejeitando a representação de figuras humanas e, em certos casos, de animais.

Em todo este processo é de destacar o papel de S. João Damasceno, o teólogo que elaborou a primeira reflexão teológica sobre o tema, tendo redigido três versões do Discurso para a Defesa das Imagens. Foi pioneiro na teorização da representação visual e a ele devemos grande parte da arte que se produziu depois da crise iconoclasta. Poderíamos ter estado sujeitos a séculos de proibição de imagens. Esta fobia não está tão longe de nós, quanto podemos imaginar, porque com a Reforma vemos de novo implantar o repúdio da figuração. Aliás, é curioso que os Imperadores iconoclastas diziam que as únicas imagens autorizadas de Cristo eram a cruz e a eucaristia.



O ícone não é uma simples imagem, nem uma decoração, nem mesmo uma ilustração da Santa Escritura. É muito mais: é o equivalente da mensagem evangélica, um objeto de culto que faz parte integrante da vida litúrgica



O Cardeal Schönborn, no livro O rosto do invisível, comenta a teologia de S. João Damasceno e afirma: "João define a imagem como 'uma semelhança que figura o protótipo, sendo diferente do modelo em qualquer coisa'" e acrescenta "toda a questão é de definir esta 'qualquer coisa' que distingue a imagem do seu modelo. Por isso, João considera várias categorias de imagens desde a imagem 'consubstancial', a mais perfeita, em todos os pontos semelhante ao modelo, não só na aparência mas também na substância (a única imagem consubstancial é o Filho, imagem do Pai na Trindade) até à imagem desenhada para guardar a memória de algo passado. É nesta categoria que inclui o ícone." ( ... ) "No entanto, João vê entre o (cone e o seu modelo um pouco mais que uma simples semelhança: uma certa participação da imagem à santidade e à graça do modelo".

Em relação à veneração dos ícones, S. João Damasceno escreveu: "Eu não venero a matéria mas o criador da matéria que se fez matéria por mim". E Schönborn conclui: "Toda a economia da salvação nos vem pela matéria, desde a mais santa que é o corpo de Cristo. até à cruz, aos livros santos, às relíquias e às imagens."

Vou agora citar um teólogo ortodoxo do séc. XX, Leonid Ouspsnsky, que também foi pintor de ícones, tendo por essa razão uma formação qualificada para abordar o problema da criação artística e da arte sacra. "O ícone não é uma simples imagem, nem uma decoração, nem mesmo uma ilustração da Santa Escritura. É muito mais: é o equivalente da mensagem evangélica, um objeto de culto que faz parte integrante da vida litúrgica. Isto explica a importância que a Igreja atribui à imagem; não a qualquer representação, mas à imagem específica que construiu no decurso da História. ( ... ) Portanto, não se pode compreender, nem explicar a imagem sagrada fora da Igreja e da sua vida. O ícone, imagem sagrada é uma das manifestações da tradição da Igreja, do mesmo modo que a tradição escrita e oral. O culto dos ícones do Cristo, da Virgem, dos anjos e dos santos é um dogma da fé cristã, formulada no Concilio de Niceia II; deriva do dogma fundamental da Igreja: a sua confissão do Deus tomado Homem. A imagem deste é o testemunho da sua incarnação verdadeira e não ilusória. Esta é a razão pela qual o ícone é muitas vezes apelidado de "teologia em imagem".



Há como que um receio do artista de tocar no transcendente, ou mesmo de ser capaz de lhe dar forma. Parece-lhe mais provável que a obra se autonomize para poder adquirir toda a carga espiritual que o autor recusa aceitar como sendo sua. Talvez seja esta a explicação de haver tantas pinturas que os artistas de arte sacra dizem serem feitas por milagre



Noutro texto, Ouspensky explica ainda melhor o seu pensamento: “Não é objetivo do ícone emocionar o seu observador ou quem o contempla. Também não procura lembrar experiências da vida natural, pretende conduzir o sentimento, a razão e as outras qualidades da natureza humana para o caminho da iluminação. (…) As suas formas são baseadas na sabedoria contida nos textos teológicos e litúrgicos da Igreja Ortodoxa e estão intimamente ligados à experiência da vida contemplativa”.

Quando este autor refere os primeiros ícones não pode esconder a tradição e o que esta diz sobre a maneira sobrenatural como as obras surgiram. Também me parece importante analisar estes primeiros casos porque são obras fundadoras que influenciaram definitivamente toda a produção posterior, sobretudo no cristianismo oriental, embora não exista na atualidade nenhuma obra que esteja cientificamente comprovada como sendo da época de Jesus Cristo.

O ícone de Edessa, também dito Mandylion, é considerado a primeira imagem de Cristo. Sobre esta obra, ou a sua memória, existem vários testemunhos escritos e os relatos mais antigos. Outros ícones de Cristo são a Santa Face, impressa no lenço de Verónica, e o Sudário de Turim. Destas imagens existem várias versões, garantindo os seus proprietários que são as mais antigas e verdadeiras.



Imagem "Ícone de Edessa" (reprod. séc. XVIII, det.)


A tradição cristã atribui a S. Lucas o primeiro retrato de Nossa Senhora, crença testemunhada por um grande número de ícones de séculos mais recentes representando o evangelista a pintar o retrato da Virgem.

Neste contexto, vale a pena referir ainda a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, apenas para afirmar que este fenómeno milagroso não é exclusivo de uma determinada cultura, sensibilidade religiosa ou área geográfica.

Existe uma série de textos sobre estas primeiras imagens. É interessante conhecer o que a tradição diz sobre o modo como surgiram. Da "Santa Face" ou Mandylion conta-se a seguinte história:

Abgar Oukhama, príncipe do Reino de Edessa um país entre o Tigre e o Eufrates, encontrava-se leproso e tendo ouvido falar de Jesus Cristo enviou um seu funcionário, Hannan, com uma carta a convidá-lo para ir a Edessa curá-lo. Hannan era pintor e no caso de Jesus Cristo não poder deslocar-se, Abgar recomendou-lhe que fizesse o retrato do Mestre para lho levar.

Hannan encontrou Jesus Cristo rodeado de uma multidão e subiu a uma pedra para o ver melhor. Tentou retratá-lo mas não conseguiu e Jesus, vendo que Hannan se esforçava para fazer o seu retrato, mandou-o chamar, pediu que lhe trouxessem água, lavou-se e secou o rosto com um tecido, tendo ficado impressos no pano os traços do seu rosto. Entregou ao emissário o pano e uma carta em que recusava ir pessoalmente a Edessa mas prometia a Abgar que, uma vez terminada a sua missão, enviaria um dos seus discípulos. Quando recebeu o retrato, Abgar ficou quase completamente curado da doença tendo ficado apenas com algumas marcas na cara. Depois do Pentecostes, S. Judas Tadeu, um dos setenta, foi a Edessa completar a cura do rei e convertê-lo. O Reino de Edessa veio a ser o primeiro estado cristão do mundo, entre 170 e 214, no reinado de Abgar IX.

O ícone foi conservado na cidade como o seu tesouro mais precioso sendo muito conhecido e venerado em todo o Oriente. Durante o período iconoclasta S. João Damasceno referiu-se-Ihe várias vezes, tendo também sido citado durante o II Concilio de Niceia. Mais tarde o Imperador Nicephorus Phocas teria transportado o icone para Constantinopla por volta do ano de 965.



São inúmeros os relatos em que o pintor confessa ter adormecido e que, quando acordou, o quadro estava acabado. Ou então, teve uma visão em que a Virgem projetou a sua sombra sobre a tela e nela imprimiu o seu retrato



No que se refere ao Ícone da Virgem, diz a tradição, que S. Lucas teria pintado não um, mas três retratos e que a Virgem os teria abençoado transmitindo-lhes assim a sua graça. Neste caso, temos o reconhecimento de um autor ilustre, embora a lenda tivesse necessidade de lhes acrescentar valor, afirmando que as pinturas foram acabadas por anjos. Atualmente, há mais de uma dezena de ícones atribuídos a S. Lucas, mas nenhuma obra é reconhecida como sendo original. Pelos documentos sabe-se que a mulher do Imperador Teodósio II, Eudóxia, no ano de 450 enviou de Jerusalém para Constantinopla uma imagem da Mãe de Deus, atribuída a São Lucas, uma Theotokos, dita ·Virgem de Ternura", Outra pintura de S. Marcos teria sido enviada para Roma a Teófilo, convertido de que falam os Atos dos Apóstolos. A terceira pintura teria sido enviada ao mesmo Teófilo, mas desta vez para Antioquia.

A Verónica ou "Vero Icone" também tem pelo menos seis versões dadas como autenticas: A Verónica do Vaticano, O lenço de Manoppello em Itália, “A Santa Face" de Viena e de Alicante, entre outras. A Verónica não é uma figura testamentária, aparece ligada e largamente figurada na Via Crucis ou Via-sacra na qual participou a imaginação franciscana, tal como na criação do Presépio.

O Sudário de Turim é um lençol de linho com a imagem impressa de Cristo morto, depositado no sepulcro. Está guardado numa capela da Catedral de S. João Baptista em Turim, Itália. A veracidade desta peça tem sido objeto de grande polémica, estudos científicos e muitas notícias nos jornais. Sob o ponto de vista estético, não deixa de ser uma obra impressionante.

Finalmente, nestes exemplos inclui-se uma imagem muito venerada na América Latina, uma pintura de Nossa Senhora de Guadalupe feita sobre tecido de cânhamo e linho. A Virgem apareceu a um Índio, Juan Diego, no México em 1531, tendo deixado a sua própria imagem impressa milagrosamente.



Imagem "Nossa Senhora de Guadalupe"


Estes ícones que “não foram feitos por mão de homem” dizem-se em grego Ἀχειροποίητος (acheiropoiètos). Esta palavra aparece três vezes no Novo Testamento:

- Em S. Marcos (14,58): “Nós o ouvimos declarar. Eu destruirei este santuário feito por mãos de homem e, em três dias, construirei ouro (acheiropoiètos) [ou seja] que não foi será feito por mãos de homem”;
- S. Paulo diz na segunda Carta aos Coríntios (5,1): “Pois sabemos que, se a nossa morada terrestre, que não passa de uma tenda, vem a destruir-se, nós temos um edifício, obra de Deus, uma morada eterna nos céus (acheiropoiètos) [ou seja] que não foi feita por mãos de homem”;
- E na Carta aos Colossenses (2,11): “Nele fostes circuncidados com uma circuncisão (acheiropoiètos) [o que quer dizer] na qual a mão do homem não interveio, e que vos despojou do corpo carnal: tal é a circuncisão de Cristo”.

Temos aqui o anúncio do Homem Novo, a passagem do carnal ao espiritual. No fundo, a essência do Evangelho, a Boa Nova.

É exatamente a palavra acheiropoiétos que nos faz dar o salto qualitativo, nos obriga ao upgrade entre uma arte psicológica, da alma, das emoções humanas e uma arte do Espírito entendida como uma inspiração divina. É esse estado, quase mediúnico, que o autor não reconhece como sendo seu, uma capacidade de se transcender e de atingir uma linguagem universal.



Existe uma enorme diferença entre a visão da arte sacra no Ocidente e no Oriente. Enquanto este considera que a arte religiosa não pode existir sem uma reflexão teológica e deve ser entendida na dimensão exata do Mistério da Encarnação, no Ocidente a arte acabou por ser resumida a uma expressão meramente humana, confinada à intuição e talento do artista



De facto, há como que um receio do artista de tocar no transcendente, ou mesmo de ser capaz de lhe dar forma. Parece-lhe mais provável que a obra se autonomize para poder adquirir toda a carga espiritual que o autor recusa aceitar como sendo sua. Talvez seja esta a explicação de haver tantas pinturas que os artistas de arte sacra dizem serem feitas por milagre. São inúmeros os relatos em que o pintor confessa ter adormecido e que, quando acordou, o quadro estava acabado. Ou então, teve uma visão em que a Virgem projetou a sua sombra sobre a tela e nela imprimiu o seu retrato.

Escolhi propositadamente estes ícones que "não foram feitos de mão de homem" porque o mistério que está na sua origem me fascina pessoalmente enquanto artista. Levantam problemas de carácter estético e teológico que são um desafio à compreensão, estudo e análise do processo criativo.

A questão da autoria - que é determinante na arte contemporânea - desaparece face ao reconhecimento de um fenómeno que ultrapassa o seu criador. Apaga-se a assinatura, o autor e o respetivo ego.

Perante o ato criativo, fica a interrogação de qual é a verdadeira participação do autor material. Em que medida a arte é um processo individual ou a capacidade de canalizar perceções coletivas sintetizadas pelas respetivas culturas? Será que o artista é apenas o intérprete dos mitos universais? Fica o mistério da inspiração ou da comunicação entre o homem e a potência divina. Com estes exemplos põe-se a questão primordial da divinização do homem e da sua capacidade criativa enquanto ser feito à imagem e semelhança de Deus.

Rodin que era um homem bem carnal, disse uma vez: “O que é profundamente verdadeiro para um homem é-o para todos". Uma frase que era já o prenúncio dessa vocação profética que possui os grandes artistas.



O enquadramento histórico e o empobrecimento da nossa realidade contemporânea vem de longe. A partir da Idade Média a arte europeia, liberta da problemática da iconoclastia, faz proliferar no Ocidente todo o tipo de representações, desde o retrato aos diversos tipos artísticos de figuração



Quando, com os óculos da globalização, analisamos o panorama da arte contemporânea verificamos que o mapa-múndi se divide em zonas culturais que ainda não foram submetidas à colonização do Ocidente. Isto é evidente para o Islão e também para outras culturas que tiveram de sobreviver a políticas antirreligiosas, como é o caso da ortodoxia.

Existe uma enorme diferença entre a visão da arte sacra no Ocidente e no Oriente. Enquanto este considera que a arte religiosa não pode existir sem uma reflexão teológica e deve ser entendida na dimensão exata do Mistério da Encarnação, no Ocidente a arte acabou por ser resumida a uma expressão meramente humana, confinada à intuição e talento do artista. Por isso a Hierarquia entende as artes visuais como uma ilustração da Bíblia, uma catequese visual dos ensinamentos evangélicos, tal como foi praticado na Idade Média, em que as catedrais eram ditas "catecismos de pedra".

A consequência desta perspetiva reducionista da arte no Ocidente teve como resultado uma desorientação nos critérios da Hierarquia, encomendas de objetos de arte a quem não compreende os mistérios da Igreja e um óbvio abaixamento da participação e da qualidade artística nos templos católicos contemporâneos.

Nesta perspetiva, passamos a compreender a atual moda dos ícones, pois qualquer representação do sagrado, vinda da tradição ortodoxa, mesmo dessorada e em reproduções de má qualidade, é preterível e satisfaz melhor a espiritualidade dos crentes.



A antiga relação do homem com a arte e o religioso está a desaparecer. Nas igrejas já não vemos arte inovadora ou, pelo menos, diferenciadora de uma vivência espiritual, produzindo obras que acrescentem qualidade à prática cristã



O enquadramento histórico e o empobrecimento da nossa realidade contemporânea vem de longe. A partir da Idade Média a arte europeia, liberta da problemática da iconoclastia, faz proliferar no Ocidente todo o tipo de representações, desde o retrato aos diversos tipos artísticos de figuração, invadindo igrejas e palácios, adaptando-se aos estilos e às épocas. Com a Renascença e a descoberta da arte grega, o sentido de um sagrado mais canónico dissolve-se. Os artistas ousam assumir, nas suas obras, representações do corpo cada vez mais realistas. O Barroco acrescenta mais carne e sensualidade às figuras. Depois. seguem-se todos os outros estilos que conhecemos da História da Arte até que, nos nossos dias, as imagens parecem despojadas de qualquer sentido do sagrado.

Se o sagrado desapareceu das representações da nossa cultura, que outro imaginário veio substitui-lo? Os conteúdos da arte contemporânea passaram a ser universais e globalizados. Podemos visitar galerias em Berlim, Nova Iorque ou Tóquio que encontramos uma transversalidade de temas e estéticas e uma crítica da arte cada vez mais unificada. Eventos de caracter mundial ditam as novas tendências e os artistas de renome circulam dentro de uma rede globalizada.

A antiga relação do homem com a arte e o religioso está a desaparecer. Nas igrejas já não vemos arte inovadora ou, pelo menos, diferenciadora de uma vivência espiritual, produzindo obras que acrescentem qualidade à prática cristã. Antes pelo contrário, a arte sacra que temos vem a reboque do que se faz no campo da arte profana, copiando modelos que obviamente não lhe servem.

No entanto, a perca do sentido do religioso na arte deu-se a par de uma série de ruturas e denegações que caracterizam a arte do século XX. Os movimentos artísticos do século passado recusaram a herança de épocas anteriores, começando pelos cânones da arte clássica para acabar no desinteresse pela própria cultura. O modernismo introduziu novas ideias que até ai não constavam dos objetivos da arte. O abstracionismo, ou a recusa da figuração, é o retomar da iconoclastia. Outros movimentos deixaram a sua marca, o minimalismo, a "arte bruta", as teorias da "desconstrução", etc. e, sobretudo, o conceptualismo, que considera o conceito mais importante que o fazer, negando a essência da linguagem plástica e visual, como se fosse possível fazer música sem utilizar instrumentos de som.



Pelo Espírito, o ato criador é não só transmutação da matéria mas, sobretudo, transfiguração do homem. A arte pode permitir ver Cristo na luz do Tabor e ensinar ao artista a usar os sentidos interiores ou espirituais



Dostoievski profetizava que o homem se dissolveria, até na sua forma exterior, se perdesse a esperança na integração divina. Esta frase profética toca-me, porque julgo que a única estética capaz de colaborar na transformação do homem é aquela que vem de uma reflexão e de uma vivência espiritual. Infelizmente, poucos estudos têm sido feitos neste domínio, recuperando a tradição e as formas que ligam o humano ao transcendente. Seria importante pesquisar e desenvolver a criação de novos imaginários, capazes de representar o que, por enquanto, nos é invisível.

E termino com uma citação do Cardeal Ratzinger, mais tarde Bento XVI, que afirmava “a crise da Arte reflete por sua vez a crise da existência humana” que (…) atingiu “um estado de cegueira que quase pode ser designado como cegueira do espírito”. E eu acrescento, é a contaminação de uma cultura sem Espírito que gera a desorientação humana.

De facto, como diz Berdiaev, "há um antagonismo profundo entre a arte pagã e a arte cristã". A arte à luz de Cristo só pode ser um prolongamento e um testemunho da Encarnação. Pela arte aprendemos o caminho da integração na natureza restaurada e participamos do mistério do Segundo Adão que em nós lança a semente do Homem Novo. "A Encarnação significa, em primeiro lugar, que Deus, o invisível, entra no espaço do visível, para que nós, que somos presos à matéria, o possamos reconhecer". Pelo Espírito, o ato criador é não só transmutação da matéria mas, sobretudo, transfiguração do homem. A arte pode permitir ver Cristo na luz do Tabor e ensinar ao artista a usar os sentidos interiores ou espirituais. Como "S. Cirilo de Alexandria precisa, é próprio do Espirito ser o Espírito da Beleza, a forma das formas; é no Espirita que participamos da Beleza da natureza divina"?

Esta intimidade entre o ato criador e o Espírito Santo torna toda a verdadeira arte sagrada e litúrgica. Deste modo, a criação artística passa a ser parte integrante e inalienável da liturgia cristã porque é a celebração da união do humano com o divino.

Nas palavras de Evdokimov, “o artista só encontrará a sua verdadeira vocação numa arte sacerdotal realizando um sacramento teofânico”.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.


 

Clara Menéres
In Ciclo de conferências "A Estética da Espiritualidade", Museu de S. Roque, Lisboa, 19.10.2017
Publicado em 09.07.2020 | Atualizado em 08.10.2023

 

 
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