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Religiosidade: O seu caráter irreprimível

«O esforço concertado para conter, ou mesmo policiar, a religiosidade e assim confiná-la aos domínios definidos pela razão secular, é francamente sintomático da sua irreprimibilidade, assim como da instância critica que por sua vez representa. É um facto que ela não pode ser definitivamente confinada. No entanto, necessita ser constantemente repensada, reconsiderada.»

Estes são alguns dos pressupostos da obra “Religiosidade – O seu caráter irreprimível – Perspetivas contemporâneas”, organizado por Manuel Sumares, Helena Catalão e Pedro Valinho Gomes, numa edição da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (Braga).

Propomos de seguida um excerto do primeiro texto do volume, assinado por Alfredo Dinis, e no fim apresentamos o índice da obra.

 

A ciência e a experiência religiosa

De que falamos quando nos referimos à expressão "experiência religiosa"? Antes de mais, toda a experiência tem uma dimensão cognitiva e uma dimensão emocional, acontece num ser humano corpóreo em interação com outros seres humanos corpóreos. Tradicionalmente, o ser humano tem sido considerado numa dupla dimensão, física ou material, por um lado, e metafísica, espiritual ou imaterial, por outro. Na antropologia tomista, a dimensão espiritual corresponde à alma, a qual tem como potências a mente e a consciência, ambas igualmente espirituais. Nesta tradição, a experiência religiosa tem sido identificada com a dimensão espiritual do ser humano. Esta dimensão é como que uma porta aberta para um "outro mundo", o mundo da transcendência, por oposição ao mundo da imanência. E através dessa porta aberta para a transcendência que o ser humano pode encontrar-se com Deus. No seu grau máximo, a experiência religiosa é a experiência mística, na qual se dá um contacto pessoal, direto e íntimo com Deus não mediado por conceitos nem imagens mentais.

Neste sentido, tem sido sempre atribuída à experiência religiosa um caráter fora do comum, individual e privado, sendo os seus conteúdos muito diferentes dos conteúdos de qualquer experiência humana comum que acontece no contexto do espaço e do tempo. Esta conceção da experiência religiosa tem conduzido ao longo dos séculos ao problema de saber como distinguir entre uma experiência fora do comum, mas não religiosa, e uma experiência igualmente fora do comum, mas religiosa.

Experiências "estranhas", "sobrenaturais", são frequentemente narradas por pessoas afetadas por doenças mentais. Tais experiências são habitual e rapidamente desvalorizadas, o que levanta a questão de saber se pessoas com perturbações mentais poderão ter genuínas experiências religiosas. Mas esta questão ultrapassa os limites do presente ensaio.

Para alguns neurocientistas que se têm pronunciado sobre esta questão em décadas recentes, as experiências fora do comum, relacionadas com Deus, anjos e demónios, relatadas pelos seus pacientes afetados de perturbações mentais, são acriticamente identificadas como experiências religiosas, e com base nelas se pode proceder a uma análise clinicamente objetiva da experiência religiosa em geral.

Estas breves considerações têm o objetivo de introduzir a problemática da experiência religiosa no contexto das neurociências. O estudo da correlação entre experiências ditas religiosas e a ativação de determinadas zonas cerebrais deu origem a uma nova disciplina, a neuroteologia.

E no contexto da neuroteologia que surgem quatro afirmações sobre a experiência religiosa.

A primeira é a de que ela acontece nos estreitos limites do cérebro humano.

A segunda, é a de que a experiência religiosa é algo de extraordinário, não comum, e está com frequência associada a perturbações mentais.

A terceira é a de que tal experiência é essencialmente emocional e não cognitiva.

A quarta, consequência das três primeiras, é a de que o conteúdo da expe­riência religiosa nada tem a ver com qualquer realidade existente fora dos percursos neuronais do cérebro humano.

Veremos que uma apreciação crítica das teses da neuroteologia pressupõe, de algum modo, uma apreciação igualmente crítica do conceito de experiência religiosa presente nas diversas tradições religiosas em geral, e na tradição cristã em particular.

Curiosamente, a posição dos atuais neuroteólogos não é tão original como se poderia pensar. Já William James, na sua obra “Varieties of Religious Experience”(1902), procede logo de início a uma distinção que considera fundamental. Há, por um lado, a experiência religiosa do crente comum, seja ele cristão, budista ou muçulmano. Para James, o crente comum limita-se a seguir a sua tradição religiosa e a imitar acriticamente as práticas que lhe foram transmitidas. Como tal, este género de experiência religiosa tem para o autor um interesse nulo. A experiência religiosa que lhe interessa é a dos fundadores de religiões ou de igrejas, os quais, contudo, sofrem tipicamente de algum género de perturbação mental:

«tais indivíduos são “génios” religiosos; e tal como muitos outros génios que produziram frutos suficientemente efetivos para serem registados na sua biografia, tais génios religiosos manifestaram com frequência sinais de instabilidade nervosa. Talvez mais do que outros géneros de génios, os líderes religiosos foram objeto de experiências psíquicas anormais. Normalmente, foram pessoas de uma exaltada sensibilidade emocional. Tiveram com frequência uma vida interior contraditória, e sentiram-se melancólicos durante parte da sua vida. Não se furtaram a exageros, foram sujeitos a obsessões e ideias fixas, e com frequência caíram em transe, ouviram vozes, tiveram visões e exibiram todo o género de peculiaridades que são habitualmente classificadas como patológicas. Estas características patológicas permitiram-lhe com frequência ter autoridade e influência religiosas.
Esta conceção de experiência religiosa exclui as experiências comuns do dia a dia, na vida de família, no trabalho, na política, etc. Está refém de uma conceção de experiência religiosa que é tipicamente patológica. Trata-se de um pressuposto inaceitável e sem convincente fundamento. (...)

 

O Dualismo Material-Espiritual

Um outro dualismo associado à visão tradicional da experiência religiosa é o dualismo matéria-espírito. É comum afirmar-se que a experiência religiosa pertence à esfera espiritual e não à esfera material. Mas o que se entende exatamente por "espiritual"? Tradicionalmente, o "espiritual" é uma dimensão do ser humano radicalmente diferente do material. O espírito é praticamente identificado com a alma, e a matéria com o corpo. Por isso, a experiência religiosa é fundamentalmente de natureza espiritual e tem lugar na alma, embora, dada a união profunda das duas dimensões do ser humano, ela se manifeste visivelmente no corpo material. A teologia cristã tem sempre afirmado a indivisa natureza do ser humano, mesmo afirmando a distinção entre corpo e alma. Mas parece ser a categoria antropológica de relação a que melhor permite entender a experiência religiosa do ser humano enquanto unidade corpo-alma.

O teólogo Joseph Ratzinger considera na sua obra “Introdução ao Cristianismo”que numa linguagem histórica e atualizada, contraposta a uma linguagem mais tradicional e metafísica, a expressão "ter alma", poderá ser substituída, numa lingua­gem mais atual, pela expressão "ser objeto de uma especial relação com Deus":

«Ter alma espiritual quer dizer exatamente ser quisto, conhecido e amado de modo especial por Deus; ter alma espiritual significa ser-se alguém que é chamado por Deus para um diálogo eterno e que por isso, é capaz, por sua vez, de conhecer Deus e de Lhe responder. Aquilo a que, numa linguagem mais substancialista, chamamos 'ter alma, passamos a chamar, numa linguagem mais histórica e atual, “ser interlocutor de Deus”.

Ratzinger rejeita claramente a metafísica dualista da filosofia grega por estar pouco de acordo com a conceção antropológica bíblica. Por conseguinte, o autor não concebe a existência dos dualismos tradicionais, corpo-alma, matéria-espírito, natural-sobrenatural, em sentido estritamente substancialista. De acordo com Ratzinger: «é impossível, em última analise, fazer uma distinção clara entre 'natural' e 'sobrenatural'; o diálogo fundamental, que em primeiro lugar constitui o ser humano enquanto tal, passa a ser, sem rutura, diálogo da graça, que se chama Jesus Cristo».

 

O desafio fundamental

O desafio fundamental que a neuroteologia coloca à teologia e à filosofia da religião cristãs parece-me ser o de abandonar uma conceção de religião em geral, e de experiência religiosa em particular, que seja tipicamente individualista, desincarnada e descontextualizada em relação à vida da comunidade cultural em que as pessoas crentes se inserem e vivem. O individualismo é ainda na tradição cristã um elemento excessivamente presente na conceção da experiência religiosa.

O desafio inclui também a proposta de uma reelaboração da conceção da experiência religiosa que seja incarnada e corporizada no espaço e no tempo e na experiência humana comum, experiência complexa e por vezes aparentemente absurda, como a do sofrimento e da injustiça; mas também experiência de relação interpessoal de amor, de conforto e de altruísmo. O caráter transcendente e não comum atribuído à experiência religiosa, tanto por crentes como por não crentes, embora por razões diferentes, explica bem por que razão estes últimos parecem seguros de poder reduzir a experiência religiosa à atividade neuronal; sobretudo à atividade neuronal de pessoas com perturbações mentais e que tipicamente relatam em termos religiosos as suas estranhas experiências. As pessoas que têm uma existência normal, não patológica, vivem a sua experiência religiosa "neste mundo", de forma muitas vezes discreta e silenciosa, de tal modo que essa experiência pode aparecer tão comum, que não mereça considerar-se religiosa, por lhe faltar o elemento extraordinário e pouco comum que seria de esperar. O mesmo caráter transcendente e sobrenatural atribuído à experiência religiosa por muitos crentes explica também por que razão eles próprios se podem sentir excessivamente ansiosos com a explicação "materialista" e "reducionista" da neuroteologia. Os dualismos já por diversas vezes referidos fazem parte de um respeitável património filosófico. Mas eles têm contribuído e continuam a contribuir para uma imagem desfocada da experiência religiosa, desincarnada, separada da vida comum dos seres humanos comuns para se transformar num género de experiência “extraordinária” de seres humanos também eles “extraordinários”. Trata-se de uma imagem da experiência religiosa que pertence já ao passado, e que, por isso mesmo, já não é compreensível nem aceitável pela cultura atual, e que não deveria continuar a ser proposta como prática cristã para o nosso tempo.

 

Índice

I – Religiosidade e ciência contemporânea
1. A ciência e a experiência religiosa (Alfredo Dinis)
2. Deus e a espiritualidade sob olhares científicos pós-modernos: Limites e possibilidades da nova biologia, da genética e da neurociência no campo da(s) Ciência(s) da Religião (João J. Queiroz)

II – Religiosidade, dom e experiência originária
1. Experiência religiosa e metafísica: Breve leitura de Jean-Luc Marion (João Manuel Duque)
2. A negação, o dom e a perspetiva da “kenosis” no horizonte da experiência religiosa no contemporâneo (Adelino Francisco de Oliveira)
3. “Sacrum Facere”: A cidade dos dons sacrificiais (Pedro Valinho Gomes)
4. Reconhecimento, dom e comunicação não violenta (Helena Catalão)
5. Estética do originário e absoluto nas imediações da fenomenologia de Mikel Duprenne (Carlos Morais)

III – Religiosidade e viragens
1. A religião numa era “pós-cristã” (José Rui da Costa Pinto)
2. Laicismo pós-moderno e privatização da fé (Elias Couto)
3. Religião e educação na pós-modernidade: pressupostos de uma prática (Maria Luiza Guedes)
4. Velhice e pós-modernidade: dimensões e espiritualidade (Ruth Lopes, Suzanna Medeiros, Elisabeth Marcadante)

IV – Religiosidade e contextos
1. Impacto da pós-modernidade sobre o Kardecismo brasileiro: um estudo psicoantropológico de caso (Edênio Valle)
2. Do enigma à verdade no pensamento português contemporâneo (José Gama)
3. Retiradas nordestinas: Condição humana e valor transcendente (Hermide Braga)

V – Religiosidade, linguagens e bio-grafias
1. Os embaraços da língua (e do testemunho) cristão (José Augusto Mourão)
Podem as experiências religiosas fundamentar as crenças religiosas? A resposta de William Alston (Gerson Júnior)
3. “Adequatio mentis et viate”: Sobre a experiência religiosa (Manuel Sumares)

 

Nota: Esta transcrição omite as notas de rodapé e adota o novo acordo ortográfico.

 

In Religiosidade - O seu caráter irreprimível - Perspetivas contemporâneas, ed. Faculdade de Filosofia, UCP, Braga
© SNPC | 21.02.11

Capa

Religiosidade
- O seu caráter irreprimível
- Perspetivas contemporâneas

Organizadores
Manuel Sumares, Helena Catalão, Pedro Valinho Gomes

Editora
Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (Braga)

Ano
2010

Páginas
288

ISBN
978-972-697-192-4












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