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Portugal: história ou profecia?

As leituras providencialistas da história portuguesa são tão antigas como a própria nacionalidade. Digo nacionalidade em termos de sentimento de destino comum e não apenas como realidade político-militar talhada pela espada de algum.

Com efeito, quando a nossa consciência comunitária venceu em Aljubarrota as leis da sucessão senhorial e se manifestou na geografia da expansão e na arte dos painéis de S. Vicente, também a história de Portugal começou a buscar em Deus a chancela que o nosso primeiro rei procurara mais prosaicamente no reconhecimento papal. No século XII, D. Afonso garantira a independência portuguesa com o trabalhoso placet do papa Alexandre III; no século XV o «milagre de Ourique» apareceu como a garantia divina para a perenidade portuguesa: ali o próprio Cristo teria prometido um Portugal imperecível.

Depois a profecia foi aumentada ainda, como aumentada foi a projecção portuguesa no mundo: Portugal levaria a toda a parte o Reino de Cristo de quem trazia as cinco chagas nas cinco quinas do seu escudo…

Os meados do século XIX submeteram esta interpretação providencialista da história pátria ao desenganado crivo da ciência. Alexandre Herculano aprofundou o cepticismo das Luzes face ao «milagre de Ourique» e a sua História de Portugal, que o negava, provocou uma grande e esclarecedora polémica no meio cultural português. Mais do que o alegado facto de 1139, estava em causa a identidade do país: uma acção providencial e directa de Deus ou um fenómeno político sem significado transcendente?

A rasoira continuou o seu trabalho já neste século, com a República de 1910. Ligada à protecção do Cristo de Ourique estava também a de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, que D. João IV e as cortes de 1646 tinham proclamado rainha e padroeira da nação. Pois bem, em 1910 Portugal perdia a linhagem real garantida em Ourique e os novos doutores de Coimbra deixavam de jurar defender a Imaculada Conceição de Maria. O país ficava pronto para ser outra coisa, mais imediata e positivista.

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Assim o quiseram uns, assim o negaram outros. É dos tempos da primeira República o realce dado a Nun’Álvares pelos jovens católicos portugueses: salvador da pátria e homem de Deus, o Santo Condestável refundara Portugal pela espada e pela oração. O sinal estava dado para a reconsideração religiosa do país. Em 1913, o movimento católico, quase aniquilado em 1910-1911, reafirma o seu desígnio de construir um Portugal cristão. São os jovens universitários católicos de Coimbra, são os próprios bispos a apelarem à união dos fiéis para defender e promover a religião e a alma da nação… Estávamos assim em 1917. Em Maio desse ano três pastorinhos de Fátima falam duma visita do Céu… A partir de então, a nossa identidade providencial irá tomando novos contornos.

Fátima esperou até 1930 para ser oficialmente reconhecida pela Igreja. Nesse ano abriu-se uma década decisiva na reorganização do movimento católico que, a partir de 1933, ficou polarizado na Acção Católica Portuguesa: visava-se «reconquistar» Portugal para Cristo, levando o Evangelho a todas as dimensões da vida pessoal e colectiva. A par disso, o Estado Novo procurava também refazer o país em termos «tradicionais». As duas iniciativas não se confundiam, ainda que tivessem contactos eventuais, sobretudo ao nível de sujeitos comuns. Em 1940, a Concordata entre a Santa Sé e o Estado Português conseguia o reconhecimento mútuo que 1910 pusera em causa. Era também o ano das comemorações centenárias da fundação e da restauração de Portugal. Tudo isto se juntou para dar azo a uma nova leitura providencial da nossa história e do nosso destino.

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A 27 de Junho de 1940 o cardeal Cerejeira lembrava nos Jerónimos: “Este mosteiro votivo é o Te Deum permanente da Nação Portuguesa a Deus, que a escolheu para ministro dos seus planos de revelar o mundo aos homens e Deus ao mundo”. Em hora de celebração e síntese, retomava-se a leitura providencialista da nossa história. Uma história que – continua Cerejeira – “pertence a Deus, enquanto dilatámos a Cristandade, levando o conhecimento do nome verdadeiro de Deus até às remotas paragens do Japão, onde o sol nasce, e até às selvas virgens do Novo Mundo, onde ele se põe”.

Portugal retomaria a sua autoconsciência de dilatador da fé e do império, ou do império da fé… Mas se isso era necessário para se situar no mundo, não o era menos para se entender a si mesmo, fronteiras adentro. – Que lembrara Fátima? Que pretendia agora a Acção Católica? Três anos antes já escrevera alguém: “Os males contemporâneos que originaram o aparecimento da AC com a sua organização actual haviam chegado também à nossa Pátria, ameaçando por toda a parte a preciosa herança de vida cristã que nos legaram os gloriosos portugueses que nos precederam. Quando o perigo se tornou mais ameaçador e os católicos de boa vontade faziam as primeiras tentativas de organização, aparecia em Fátima a Celeste Padroeira de Portugal, decerto para auxiliar mais uma vez a “nossa terra, que salvara já mil vezes”.

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Fátima lembrara-nos o Céu, a Acção Católica queria aproximar-nos dele. Tinha como protectores Cristo-Rei e Nossa Senhora de Fátima, reencontrando assim o Portugal providencialmente garantido em Ourique e Vila Viçosa. A ligação já fora expressamente feita pelas Novidades de 17 de Novembro de 1933: “Cristo-Rei é o mesmo Deus de Ourique: Nossa Senhora de Fátima é a mesma que celebra o mosteiro de Santa Maria da Vitória. Vamos todos, sob esse signo bendito, construir o Portugal cristão, o Portugal melhor por que ansiamos”.

Antes da República, já um certo liberalismo teria querido inverter o destino do país, construindo-o ao arrepio da profecia. Fátima lembrou-a e a aventura recomeçou: “Desde então – escreveu-se na Voz de Fátima de 13 de Março de 1932 – a gloriosa Terra de Santa Maria, saindo do profundo letargo em que jazia havia quase cem anos, sem esperança de humano remédio, foi caminhando, com passos seguros e firmes, numa marcha verdadeiramente prodigiosa, até à fase presente de intensa vitalidade e pujança religiosa de que numerosos e consoladores episódios são ao mesmo tempo o sintoma e o expoente”.

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A Rainha jurada pela cortes de 1646 retomara o reino, Portugal reencontrara a sua alma: “Um dia houve em que Portugal pareceu renegar o juramento histórico da Nação (que era um modo de se renegar a si mesmo). Não esqueceu a Excelsa Padroeira quem A esquecia a Ela. E dignou-se descer à nossa terra, como Rainha que vinha reconquistar o reino”, disse por sua vez o cardeal Cerejeira em 8 de Dezembro de 1940.

Portugal reencontrado, Portugal transformado, continuou o mesmo prelado, dois anos depois: Há vinte e cinco anos que a Virgem Santíssima se dignou baixar do céu ao coração de Portugal, que fica na Cova da Iria, para assim renovar o corpo inteiro da Nação […] E o milagre fê-lo o seu Divino Filho. Também Portugal se transformou. A Fé e a Caridade – e, com elas, a paz, a confiança, a alegria, a virtude, refloriram no velho tronco ressequido e açoitado do Portugal cristão. Nasceram novas estrelas no céu das almas. Na antiga terra de Santa Maria levantou-se milagrosa luz de esperança, que começou a alumiar a Terra inteira”.

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Em Ourique, o Céu defendera o reino nascente. Em Vila Viçosa, a Padroeira garantira-lhe a independência. Em Fátima, a Virgem trazia-lhe a paz. – Não se via isso mesmo, quando a Segunda Guerra Mundial nos poupava?! Ainda o cardeal Cerejeira, nesse mesmo ano: “Desde que ela apareceu no Céu de Portugal, uma bênção extraordinária caiu sobre ele. Quem, acreditando na Providência, duvidará que é por graça da Senhora de Fátima que a paz tem sido mantida na nossa Pátria, e (esperamos firmemente) continuará a ser?”.

Mas, assim como o passado providencial de Portugal o fora para si e para o mundo, transformando-lhe a história em missão cristã, também as últimas graças do Céu seriam para si e para o mundo, profetizando na reconstrução e na paz portuguesas o que haveriam de ser a reconstrução e a paz de muitos mais: “Fátima ainda não disse a Portugal e ao mundo todo o seu segredo. Mas não parecerá excessivo dizer que o que já revelou a Portugal é sinal e penhor do que reserva ao mundo”, discernia ainda o mesmo purpurado.

Mais uma vez o país se transcendia, feito sinal e veículo duma promessa universal.

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, Presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
In 1810-1910-2010. Datas e desafios, ed. Assírio & Alvim
Fotografias: Mosteiro dos Jerónimos, Lisboa
09.06.12

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