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Paulo - Um homem inquieto, um apóstolo insuperável

Lançado recentemente pelas Paulinas, a obra «Paulo - Um homem inquieto, um apóstolo insuperável», de Jerome Murphy-O'Connor, acompanha a vida daquele personagem bíblico desde a Galileia até Roma.

Os doze capítulos do livro têm a seguinte distribuição: "Os verdes anos"; "A conversão e as suas consequências"; "Aprendizagem em Antioquia"; "Uma viagem à Europa"; "A sul da Acaia"; "Antioquia e Jerusalém"; "O primeiro ano em Éfeso"; "O segundo ano em Éfeso"; "Conversações com Corinto"; "Macedónia e Ilíria"; "Adeus ao Oriente"; "Os últimos anos".

Apresentamos seguidamente a introdução à obra, que tem por título "A Teologia como romance".

A celebração dos dois mil anos do nascimento de Paulo de Tarso permitiu, para já, este facto absolutamente assinalável: a edição portuguesa de duas obras singularíssimas, de dois incontornáveis nomes para os Estudos Paulinos contemporâneos. Refiro-me a «Eu Paulo…», de François Vouga e a este maravilhoso texto de Jerome Murphy-O’Connor, que o leitor tem entre mãos.  Depois de ter escrito, nos anos sessenta, um ensaio biográfico marcante sobre Paulo, centrado fundamentalmente na informação que as Cartas do Apóstolo fornecem, Murphy-O’Connor regressa de novo a esse território, mas munido de uma intenção diferente. O seu livro anterior tem a grandeza e os limites da historiografia científica: afirma apenas o que consegue certificar, trabalha cada argumento com a paixão de um miniaturista, distancia-se criticamente do personagem que aborda, procura não opiniões, mas factos. Olhando para o resultado, à distância destes anos, Murphy-O’Connor não esconde uma deliciosa ironia: «Agora vejo esses “factos” como partes de um esqueleto bem preservado: estão lá o crânio e cada um dos ossos: foram medidos e classificados, são fortes e fiáveis, e, o entanto, não se mexem». O que ele vai procurar fazer neste livro é o reencontro com o sopro da vida, com os seus detalhes, a sua topografia, a sua emoção, o seu enigma, a sua cor. Não se trata propriamente de um romance histórico. Trata-se sim de uma reescrita narrativa do imenso conhecimento especializado em torno a Paulo e ao seu mundo que o autor acumulou ao longo de uma brilhante carreira de investigador. 

Paulo é o homem das encruzilhadas. Viveu e operou em diferentes mundos, línguas e culturas. Desenvolveu uma presença, mais esporádica ou mais continuada, em centros urbanos importantes e disseminados como Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia Menor, Filipos, Corinto e Atenas na Grécia, culminando a sua obra no coração do império. Um verdadeiro corre-mundos do Tempo Antigo!    

Quando Paulo morreu, o primeiro Evangelho provavelmente não tinha sido ainda escrito. O que faz dele o primeiro autor cristão. E não apenas isso.  Possuímos de Paulo várias cartas, e é possível seguir a evolução do seu pensamento nos quinze anos que dura a sua produção epistolar. No Novo Testamento é caso único! Em década e meia de actividade intensa e reflexão, o seu pensamento evolui, as motivações amadurecem, alteram-se os destinatários e as situações que enfrenta. A própria forma literária na qual ele se exprime torna-se cada vez mais poderosa. Se os seus primeiros escritos são cartas simples, sem especial elaboração, o apóstolo passa a conhecer os recursos da oficina literária e maneja-os com firmeza, tornando-se um verdadeiro escritor. São, por isso, justíssimas as palavras de George Steiner:  «Paulo de Tarso é simplesmente um dos maiores escritores da tradição ocidental. De entre todas as obras literárias, as suas Epístolas continuam e continuarão a ser uma obra prima de retórica, de alegorias usadas para fins estratégicos, de paradoxos e de um sofrimento corrosivo… Raras são as personagens históricas capazes de […] igualá-lo na intuição que tem de que os textos escritos podem transformar a condição humana». Esta evolução é ainda mais interessante – e é certamente um factor que confere ao pensamento de Paulo um potencial de sedução muito forte - se tivermos em conta que o mundo paulino tem um centro que permanece imutável: Jesus. Um centro fixo num pensamento móvel – assim se poderia descrever em grande parte o génio do apóstolo que inaugura o cânone cristão.

Percorrendo a sua biografia e o seu pensamento podemos definir Paulo com o adjectivo que os antigos gregos utilizavam para descrever o sábio. O sábio é um methórios, “aquele que está sobre a fronteira”. Permanecendo judeu, ele foi também o cidadão de Roma e do mundo, com todas as condições para efectuar uma das operações mais criativas, geniais e complexas: a acção de tradução da mensagem cristã na cultura corrente do seu tempo. Paulo situa-se na dependência do acontecimento pascal protagonizado por Jesus de Nazareth e coloca-se, por inteiro, ao serviço do anúncio da novidade cristã. Mas fá-lo numa língua nova, recorre a novos conceitos e imagens, ousa o contacto com novos espaços. O cristianismo no tempo de Jesus era sociologicamente uma realidade campesina. Com Paulo ganhou a amplidão que o próprio Jesus prometera: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, baptizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt 28,19-20). Tornou-se uma realidade urbana, cosmopolita, sem fronteiras.

Um elemento do maior interesse é, hoje, a multiplicação de ensaios e leituras sobre Paulo, por parte de algum pensamento contemporâneo. Se é verdade que, de Santo Agostinho a Lutero, de Karl Barth ao nosso Teixeira de Pascoaes, na teologia, na filosofia, nas expressões iconográficas ou na literatura, a pessoa e o pensamento de Paulo nunca deixaram de ser referenciais, também é verdade que há algo de inédito na efervescência actual. O filósofo Alain Badiou publicou, no início dos anos 90, uma reflexão entusiasta sobre a figura de Paulo a que intitulou “A fundação do Universalismo”. Giorgio Agamben escolheu comentar a Carta aos Romanos, porque, segundo ele, a hora da plena legibilidade dos escritos de Paulo finalmente chegou. O esloveno Slavoj Žižek tem tornado a Paulo, em várias das suas obras. Ele classifica o tempo actual como de “crença suspensa”, pois a Fé passou a ser vista como um segredo pessoal e quase obsceno, do qual é incorrecto falar. E contudo, escreve Žižek, a pergunta corriqueira, “és ou não um verdadeiro crente?”, tornou-se «talvez mais do que nunca» uma questão fundamental. Fascina-o em Paulo o cristianismo como ruptura, processo, tomada de posição. 

Um outro facto curioso é a aproximação de estudiosos vindos do judaísmo. Jacob Taubes, que se define como um “paulino não-cristão”, talvez seja o autor da abordagem mais importante: encontra em Paulo os traços de uma revolucionária alteração dos valores em que o nosso mundo se funda. Passados dois mil anos do seu nascimento, Paulo confirma e adquire um significado cultural do maior relevo.  

José Tolentino Mendonça

01.07.2008

 

 

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Capa

Paulo - Um homem inquieto,
um apóstolo insuperável

Autor
Jerome Murphy-O'Connor

Editora
Paulinas

Páginas
344

Ano
2008

Preço
€ 18,00

ISBN
978-972-751-923-1












































































































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