Literatura e teologia
O poema de Deus
Edificar o poema de Deus / É construir a imagem de Deus para a apagar, / Apagá-la para conhecer Deus. (Maurice Bellet)
Em certa medida, ninguém é mais descrente do que um crente. A austeríssima proclamação “a Deus nunca ninguém o viu” é um livro sagrado dos cristãos que, tranquilamente, a profere (a Primeira Carta de João). É difícil imaginar um homem mais blasfemo do que Job, do qual se diz: “onde existe homem igual a Job, que bebe a blasfémia como quem bebe água?” (Job 34, 7). E, no entanto, a sua teologia protestativa inspira há séculos percursos e apropriações de radical assentimento para com a questão de Deus.
O Livro de Coeleth, esse niilista intransigente, não deixou de ser lido e comentado como modelo edificante para o conjunto dos crentes. Jeremias dizia que, se fosse possível, preferia esquecer-se de Deus; e a saga de Jonas relata os desmandos humorísticos de um profeta que mantém com Deus um conflito de opinião.
Um dos mestres espirituais do Ocidente, Santo Agostinho, é autor de uma poderosa, mas também desconcertante biblioteca sobre Deus, se atendermos ao que diz: “Melius scitur Deus nesciendo” (“Deus conhece-se melhor na ignorância”) ou “Si comprehendis non est Deus” (Se pensas tê-lo compreendido, então não é Deus”).
Os místicos de todos os tempos exploram infatigavelmente vias apofáticas, que desconstroem e ultrapassam a presumível estabilidade das representações. De Pseudo-Dionísio (fins do século V, início do VI): “Ousemos negar tudo a respeito de Deus para chegarmos a esse sublime desconhecimento que nos é encoberto por aquilo que conhecemos sobre os restantes seres, para contemplar essa escuridão sobrenatural que está oculta ao nosso olhar pela luz”; a Dietrich Bonhoeffer, morto em Berlim em 1943 por conspirar contra Hitler: “Perante Deus e com Deus vivemos sem Deus. Deus deixa-se empurrar para fora do mundo e até à cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exactamente assim, somente assim ele está connosco e nos ajuda.”
Em certa medida (numa misteriosa medida), ninguém é mais crente do que um descrente. O universo de Saramago é “um mundo às avessas” em relação ao mundo bíblico e cristão, como Eduardo Lourenço justamente o classifica. Mas nunca é de mais sublinhar que é sobre esse mundo que ele trabalha, com ira e sedução, afastado e, ao mesmo tempo, incapaz de alhear-se definitivamente. Recorrendo a tudo, epifanias e resmungos, preces e chistes, risadas e silêncios intensíssimos, em páginas que, umas vezes, alcançam uma religiosidade que se diria absurda e, outras vezes, incólume.
No último dos cadernos publicados, José Saramago escreveu: “Os ateus são muito capazes de aventurar-se pelos escabrosos caminhos da teologia.” Esperemos que existam também teólogos capazes de aventurar-se pelos caminhos escabrosos de uma literatura que, no limite, não desiste de ser desconstrução e construção do poema de Deus.
José Tolentino Mendonça
In Público, 26.6.2010
27.06.10
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