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História

O catolicismo português cerca de 1910

O centenário da República tem dado azo a várias alusões ao papel da Igreja Católica na altura, bem como a indagações sérias e circunstanciadas sobre o que realmente terá ela dito e feito, dentro de si mesma e na relação com a sociedade, a cultura e a política nacionais, que a seu modo integrava, aliás.

A tónica ideológica ou convicta da história que se escreve, como das histórias que se contam, origina frequentemente leituras apressadas das memórias que restam, mais para legitimar posições atuais e futuras do que para compreender, quanto possível, a realidade passada, também irrecuperável, em termos absolutos.

Deparamos, então, com duas dificuldades maiores, provinda uma da natureza irremediavelmente ultrapassada do que aconteceu e devida outra à extrema complexidade das realidades religiosas, propriamente ditas. Destas últimas podemos acrescentar que quase só é apreciável a superfície; e a superfície que cada época enxerga dum passado total e indefinível. Em tempos recentes, a historiografia detinha-se muito nos movimentos coletivos de tipo social e económico; mais proximamente, interessa-se sobremaneira pelo particular, os sentimentos e os costumes, aqui evidenciando a resistência pós-moderna às meta-narrativas.

Era “política” a relação que se apresentava entre a República e a Igreja Católica, negativa ou positivamente, quase só referida a espaços perdidos, conquistados ou reconquistados, por uma ou outra. Negativamente, diziam uns, porque o catolicismo português, eivado de clericalismo ou “jesuitismo”, se ligara tanto à monarquia que caíra com ela. Positivamente, diziam outros, porque, apesar de tudo, o mesmo catolicismo demonstrara uma notável capacidade de resistência às medidas republicanas de 1910-1911, pela ação espontânea ou conjugada de clérigos e populações.

A esta redução “política” do sucedido, juntavam-se outras congéneres. Era o caso da redução “cultural”, quer afirmando que a visão católica das coisas – mais até do que o sentimento católico das mesmas – não resistira ao impacto do positivismo teórico, que impusera a ultrapassagem da religião pela ciência, quer realçando, bem pelo contrário, que as elites culturais tinham manifestado, confessionalmente ou não, uma grande propensão neorromântica pelas sondagens mais profundas da “alma portuguesa”, onde os tópicos cristãos estavam presentes, mesmo que ao modo de cada um. Aí estavam os últimos anos de Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Raul Brandão e outros mais, para o demonstrarem.

O certo é que, reducionismos ultrapassados, fica muito por entender no que ao catolicismo português da altura diz respeito. Alguma concomitância sociológica e cultural prefere apurar as persistências de motivos pré-cristãos na religiosidade popular, relativizando o impacto da doutrina católica propriamente dita. Não é difícil verificá-las em parte, mas fica por explicar a incapacidade das sucessivas tentativas de implantar uma religião “cívica” entre nós, mesmo que com ritos de passagem e simbolismos laicizados; bem como a permanência – pouco sistemática, aliás – de motivos propriamente cristãos. Cem anos depois, continua a ser problemático substituir cruzes por árvores, ainda que se possa juntá-las.

Detalhando mais, deparamo-nos com vivências e contornos dificilmente quantificáveis do catolicismo português de então, quando reparamos em famílias e ligações pessoais ou de grupo, em percursos biográficos, em relações diretas ou indiretas com a instituição eclesial, no âmbito nacional ou internacional: apuramentos difíceis e ainda incipientes.

Estão apurados muitos factos e debates. A partir do “5 de Outubro” somam-se as medidas laicizadoras, da supressão da vida religiosa ao esvaziamento público de qualquer referência confessional (no casamento e na família, no registo “civil”, nas escolas e estabelecimentos do Estado…). A religião ficaria para o íntimo de cada um, cada vez mais superada pelo ideário civil, patriótico e progressista.

Sobreveio o novo enquadramento legal da religião organizada, conforme a “Lei de Separação do Estado das Igrejas” de 20 de abril de 1911. Ou nem tanto, dada a resistência da Igreja Católica a integrar-se nesse quadro; e com as consequentes desavenças entre o Governo e o Episcopado, seguido este pela grande maioria dos clérigos e “fiéis”, que redescobriram a substância deste apelativo, com reiterado estímulo pontifício.

Poucos anos passados - e sobretudo a partir da Grande Guerra, que relativizou os debates anteriores e consolidou convicções e sentimentos católicos, quer em torno da assistência religiosa aos militares, quer na ligação das aparições de Fátima ao fim do conflito -  esboçar-se-ia com o Sidonismo (1917-1918) um novo tipo de relação Igreja – Estado, rumo à separação mutuamente aceitada, com a primeira a requerer liberdade de expressão e atuação confessional e os católicos a inserirem-se mais claramente na cidadania ativa e na participação política, dentro do sistema vigente. Aí defenderiam a liberdade da Igreja e das suas organizações, no campo cívico e parlamentar, como no Centro Católico Português, de 1917 em diante.

Mas alguma sensação persiste, de que não captamos o catolicismo português na globalidade, antes e além do institucional. Como continuamos a detetar alguma restrição “política” do seu significado, ficando-nos mais pelo exterior do que pelo interior desse mesmo catolicismo, como seria vivido e convivido em vários níveis de crença, popular ou ilustrada.

Podemos lembrar, é certo, a restrita capacidade do nosso catolicismo oitocentista em ser recetivo e proponente nos grandes debates culturais coevos, entre filosofia e ciência, tradição e progresso. É um facto, e mais por limitação externa do que por escolha própria. A Igreja Católica ficara muito reduzida naquilo mesmo que lhe permitiria acompanhar o movimento das ideias. Em 1759 deixara de contar com os colégios dos Jesuítas, então expulsos por Pombal; desde as Invasões Francesas (1807-1811), ficara ainda mais depauperada com a desorganização geral do país e os seus reflexos negativos nas instituições religiosas; em 1834 desapareceram casas, bibliotecas e centros de estudo monásticos e conventuais; os seminários diocesanos estavam reduzidos ou fechados, e foram reabrindo em meados do século, muito limitados em geral; a Faculdade de Teologia de Coimbra nunca conseguiu colmatar tais lacunas nem formar as elites católicas ou influenciar por aí além as que se afastavam… Algumas iniciativas pessoais, de prelados, sacerdotes ou leigos, não foram bastantes para sustentar uma presença cultural católica à altura daqueles tempos e circunstâncias. A constatação disto mesmo encontra-se em sucessivos depoimentos de várias figuras da Igreja, até à República.

Digamos, porém, que aquelas mesmas circunstâncias, imediatamente negativas, acabariam por ocasionar uma das novidades marcantes do catolicismo português “contemporâneo”. Precisamente no campo do laicado militante -, acompanhado por alguns clérigos atentos -, sucederam-se, depois de 1834, as iniciativas que alentaram um novo modo de ser católico, com maior intervenção no espaço cívico então aberto pelo ideário e a política liberais.

Da Sociedade Católica (1843 ss) ao jornalismo confessional, ou às Associações e Congressos Católicos (1871 ss), sucederam-se factos e nomes reveladores duma nova atenção e outra presença católica no campo sóciocultural. Até à República e depois da sua implantação, o catolicismo português foi contando com novos protagonismos, cuja dimensão mais avulta com o tempo. Quando a legislação de 1910-1911 e a respetiva concretização agravarem as limitações da vida eclesial, confrontar-se-ão como uma nova militância crente, alimentada pelo “movimento católico” assim surgido.

Não esqueçamos, aliás, que as limitações de 1910 e seguintes agravaram outras, que o liberalismo já impusera à Igreja. Assim quanto à tutela estatal das nomeações eclesiásticas, ao beneplácito régio dos documentos pontifícios e pastorais, ao escasso apoio aos seminários diocesanos, às sucessivas expulsões e condicionamentos da vida religiosa… O próprio Afonso Costa, logo a seguir à revolução, repôs expressamente em vigor as medidas de Pombal contra o jesuítas e as de D. Pedro contra os religiosos em geral.

Não havia grande novidade neste ponto, nem podemos tomar essas medidas como especificamente “republicanas”. Acontecia, porém, que a Monarquia tinha o catolicismo português como coisa sua e assim justificava o controlo que exercia sobre a Igreja, enquanto a República oficialmente o deixava de reconhecer, devendo, em princípio, abster-se de intervir na vida interna do que não tinha por coisa pública. Concordemos, porém, que tal seria difícil para juristas formados no regalismo coimbrão, por mais agnósticos ou ateus que se apresentassem.

Por outro lado, a diversidade verificada nos meios políticos e culturais do século XIX teve correspondência e reflexos no movimento católico português, que consentiu igualmente uma grande variedade interna, no que à relação com o Estado respeitava. As divisões entre católicos legitimistas e constitucionais continuarão durante a República, entre os que não aceitavam o regime e os que francamente se integravam nele, tentando convencer os responsáveis políticos de que a República teria na Igreja uma colaboradora autónoma e leal, em tudo o que ao bem comum dissesse respeito.

Ainda nos anos imediatamente anteriores à mudança de regime os católicos se tinham dividido entre os que tomavam o Partido Nacionalista como obrigatório para os crentes e os que defendiam a possibilidade de votar em partidos diferentes; repercutindo-se esta divisão num certo estreitamento partidário do movimento católico de 1903 a 1910, que alargou a dissensão com o republicanismo em ascensão. Como o Partido Nacionalista era apoiado por uma revista dos Jesuítas, foi mais fácil chamar “jesuitismo” a toda a tentativa católica de intervir politicamente no país.  

Entretanto – e ainda mais do que já sucedera na segunda metade do século XIX – o catolicismo português e ocidental como que se redefinira nalguns pontos maiores e mais especificamente religiosos, como o culto eucarístico, o cristocentrismo, o marianismo e a ligação mais direta ao papado. Em torno destes pontos foi mais fácil unir os católicos e relançá-los num “apostolado” comum, designadamente depois do Apelo que os bispos lhes lançaram em Santarém, em julho de 1913: dentro da ordem política vigente, defenderiam a liberdade religiosa da Igreja e trabalhariam pela cristianização do país. Não foi imediato nem fácil, mas criou uma plataforma ajustada onde o futuro pôde começar.

A geração mental que fez a República e determinou o seu devir imediato dificilmente compreenderia o catolicismo português, nas suas específicas motivações religiosas. Estivesse ou não convencido que ele acabaria em poucas gerações, Afonso Costa e os seus indefetíveis não participavam dessa realidade, que imaginavam e combatiam. Ainda se contam histórias vividas das positivas surpresas do ministro Afonso Costa, ao visitar certas instituições católicas que queria encerrar, acabando por permiti-las de algum modo.

O ministro e os seus, ou nunca tinham sido praticantes, ou cedo abandonaram uma religião em que não tinham sido propriamente iniciados. Escassamente – ou de modo algum – tinham convivido com autores e obras católicas anteriores à mudança de regime. Ou então o único contacto tinha sido polémico e sem disponibilidade para ouvir e entender.

Por seu lado, o movimento católico não contou com elites cultas e académicas em quantidade e à altura dos desafios intelectuais que eram feitos. Posições pessoais das últimas décadas de oitocentos e primeira de novecentos, como as de Samodães no Porto, Henrique Barros Gomes em Lisboa ou Sena Freitas um pouco por toda a parte, obviamente não chegavam.

E não foi tanto um “diálogo de surdos”, mas de escuta pré-definida, pois dum lado e doutro se ouviam muito mais os correligionários estrangeiros, do que os nacionais que pensassem diferentemente. Deparamos nas apologéticas da altura com interrogações e increpações que decerto não apareceriam, caso se tivesse realmente ouvido ou lido o que já provinha do “outro lado da barricada”. Como se ninguém esperasse nada de ninguém, a não ser a rendição absoluta. Quando, por evolução da vida e das ideias, se mudasse de campo, tal podia significar cortar laços e deixar amigos e mesmo admiradores entusiastas: a conversão de Gomes Leal ao catolicismo, nas vésperas da República, acarretou-lhe abandonos generalizados, a ele mesmo que tão aclamado fora pelos radicais.

Em tão grandes contrastes, o catolicismo português não podia entender o anticatolicismo de tantos republicanos, nem estes podiam entender a legitimidade da crença tradicional. As análises e propostas sobre a religião que mais se ouviram no campo republicano, em geral, antes e depois do 5 de Outubro, ainda que não fossem as únicas, evidenciavam o desconhecimento do catolicismo moderno, de Rosmini a Newman, por exemplo. Mesmo as encíclicas de Leão XIII (+ 1903), de matéria social e política, não foram lidas e compreendidas como mereceriam, como se já nada se esperasse do papado.

E, se assim acontecia em relação ao catolicismo erudito, não se melhorava em relação ao popular e espontâneo. É certo que, desde o romantismo à Chateaubriand ou Garrett, se dera outra atenção às tradições locais, plenas de conotações religiosas; certo é também que o século XIX desenvolvera a etnografia e mesmo uma antropologia onde a dimensão religiosa da existência era vista como algo mais do que mera sobrevivência de estádios rudimentares da humanidade. Mas, se lermos a crítica anticatólica pré e pós-republicana, deparamos quase só com a recusa intelectual dum catolicismo que pouco merecera a atenção disponível dos seus críticos, facilmente quedados na ironia displicente ou caricatural. Reciprocamente, não foi fácil ao catolicismo militante destrinçar e valorizar alguma alusão mais certeira dos seus abundantes críticos.

Não basta, porém, esta linha de análise. Temos de complementá-la com outra dificuldade comum, que teve graves consequências político-religiosas. Refiro-me à apressada avaliação que alguns responsáveis católicos fizeram da religiosidade popular, valorizando-a exageradamente. De facto, tal realidade não se mostrou politicamente redutível ou aproveitável, quer a favor quer contra o catolicismo pátrio.

Aprenderam-no tarde os que avaliaram em alta as grandes manifestações marianas de 1904 (cinquentenário da definição dogmática da Imaculada Conceição), tomando-as como sinal de crença segura e consequente. Também se enganaram os que minimizaram a convicção profunda de muitos outros, pronta a resistir às dificuldades que a imposição forçada da Lei de Separação trouxe à vida habitual e comunitária das populações crentes: assim se constatou no fracasso da sua vigência; como ressaltaria também na exigência popular da assistência religiosa aos militares durante a Grande Guerra, ou na rápida adesão ao testemunho dos Videntes de Fátima, em 1917 e seguintes.

Diremos para terminar que, entre tantas referências de sinal contrário, acabaram mais distintos os campos, no sentido contemporâneo do termo. E creio que, neste ponto, o catolicismo português de há cem anos se revelou mais consistente do que muitos presumiam na altura.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé, que podem ser lidas aqui.

 

D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais
Intervenção no "Colóquio sobre a República", Lisboa, Universidade Católcia Portuguesa, 17.2.2011
18.02.11

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