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Diálogo entre culturas e religiões: entre o fascinante e a ameaça

A identidade não é estática, fixa, determinada de uma vez para sempre. Claro que cada um, cada uma, é ele, ela, de modo único e intransferível - a experiência suma desse viver-se cada um como único e irrepetível dá-se frente à morte, na angústia do confronto com a possibilidade do nada e da aniquilação do eu; 'ai que me roubam o meu eu', clamava M. Unamuno - mas fazendo-nos uns aos outros, de tal modo que ser e ser em relação coincidem».

Anselmo Borges, num pequeno livro acabado de publicar pela Imprensa da Universidade de Coimbra (“Religião e Diálogo Inter-Religioso”, 2010) interroga-se sobre o diálogo religioso e cultural e põe o dedo no essencial do tema, que é controverso e tem gerado muitas dúvidas e perplexidades.

É que muitas vezes, ao falar-se de identidade, há a tentação de dar ênfase ao que é próprio, em lugar de olhar o outro e de procurar compreendê-lo. José Mattoso, ao refletir sobre a identidade histórica não se tem cansado de insistir na necessidade de vermos o que nos caracteriza e o que nos distingue, como sinal de abertura e não de fechamento, como exigência de diálogo e de compreensão. No entanto, a tentação do fechamento e da uniformidade assalta a cada passo. Por isso, o multiculturalismo tem sido por vezes empobrecedor - não pelo apelo ao pluralismo, mas pelos caminhos paralelos que tendem a ignorar-se e resistem a intersetar-se e a influenciar-se mutuamente.

Charles Taylor, o filósofo canadiano, autor de “A Secular Age” (2007), que tem feito uma investigação exaustiva sobre o dialogo entre culturas e religiões, chama a atenção para que a compreensão e o respeito mútuo são fatores fundamentais para que haja diálogo efetivo, reconhecimento do lugar dos outros e da diferença, coesão social e confiança - elementos cruciais para que exista democracia.

«Os ateus precisam de falar com os crentes, os crentes precisam de falar com os ateus, e as religiões têm de falar umas com as outras». O diálogo é a chave para a solidariedade nas comunidades plurais do século XXI. A identidade faz-se, desfaz-se e refaz-se nas sociedades abertas e complexas e o grande apelo do presente é no sentido de a globalização não se tornar uma marca de indiferença e de uniformização. É fundamental que haja diferença, que cada qual seja ele próprio, mas também que a identidade seja cosmopolita, compósita e planetária, «com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de complexidades e possíveis ruturas».

Como lembra Anselmo Borges, «o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça» - «porque o outro é outro como eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu». Esta é a ambiguidade e a dificuldade suscitada pelo outro. Hóspede e hostil têm, afinal, a mesma etimologia, como hospitalidade e hostilidade. Eis a ironia da vida das palavras.

Se o tema da identidade é atualíssimo, a verdade é que ele contém a ambiguidade que resulta da dificuldade e das resistências que há sempre na relação com o outro. A relação da Europa com a imigração hoje é ilustrativa dessa contradição. Os medos que se acumulam são disso mesmo demonstração. O mesmo se diga do tema da paz: Hans Küng tem dito que só o diálogo entre as religiões pode criar bases seguras para a paz («sem paz entre as religiões não haverá paz entre as nações, e essa paz supõe o conhecimento e o diálogo entre as religiões»).

E lembre-se ainda o tema da violência, no qual o homem julga poder apoderar-se de um Deus infinito e omnipotente para compensar o seu carácter finito e mortal. Anselmo Borges insiste na ideia de que o nome de Deus não pode ser invocado como motivo de violência: «é intolerável que Deus se revele de muitos modos, quando cada um o considera propriedade exclusiva». E importa acrescentar o tema dos fundamentalismos, tão referido, mas tão pouco entendido. Os fundamentalismos de diversas índoles ligam-se à tentação de cada um se julgar possuidor da verdade toda. «Quem é o homem, um ser finito, para considerar-se senhor do Fundamento?».

E daqui temos de seguir até ao tema da necessária dessacralização da política e à consequente separação das igrejas do Estado, que torna os cidadãos «livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma», em virtude da desconfessionalização do espaço público. Por exemplo, quando lemos o Tratado de Lisboa, verificamos que se fala de um diálogo aberto, transparente e regular com as igrejas e as comunidades religiosas. No fundo, a sociedade aberta precisa de uma relação cooperativa e de respeito diante do fenómeno religioso. Como diz Júrgen Habermas: «os cidadãos secularizados, no exercício do seu papel de cidadãos, não podem negar liminarmente um potencial de verdade às imagens religiosas do mundo nem pôr em causa o direito de os seus cidadãos crentes contribuírem, na linguagem que lhes é própria, para as discussões públicas». (...)

O diálogo autêntico é, porém, difícil, por isso Juan Masiá refere cinco pontos que nele devem estar presentes: conhecimento mútuo e partilha do que é comum; consciência do que aproxima e do que afasta e é incompatível; sentido autocrítico e reconhecimento do lastro da história que transportamos; capacidade para começar a construir um horizonte comum de linguagem e diálogo, não confundível com qualquer sincretismo ou esperanto das religiões; e entendimento de uma espiritualidade para além da perspetiva de cada religião. (...)

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Presidente do Centro Nacional de Cultura
In Jornal de Letras, 3.11.2010
03.11.10

Foto
Sebastien Desarmaux/Godong/Corbis






















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