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«Chega de saudade»: Cinquenta anos do disco que tornou célebre a bossa nova

Chega de saudade. Não é por acaso que a canção unanimemente considerada a primeira expressão desse particular género musical, inteiramente brasileiro, denominado bossa nova, faça referência à saudade. Um termo intraduzível nas outras línguas que descreve uma leve nostalgia, eivada de melancolia, mas terna e jamais radicalmente triste. Exatamente como a bossa nova, um estilo musical caracterizado pela incisão premente, mas não obsessiva, de tons delicados mas nunca descoloridos. Uma música que ao primeiro impacto pode parecer distante mas depois, lentamente, insinua-se e dificilmente se pode abandonar.

Transcorreram cinquenta anos desde quando João Gilberto publicou o álbum que continha Chega de saudade; meio século no qual esta canção, como outras do mesmo género, foi reproduzida inúmeras vezes por uma fileira infinita de artistas. Um sinal eloquente da resistência que a bossa nova – expressão da gíria carioca que significa mais ou menos moda nova – até hoje demonstra não obstante o passar do tempo e da capacidade de se difundir além das fronteiras do Brasil.

Contudo, o nascimento da bossa nova só podia ter acontecido no Rio de Janeiro, cidade a cujas histórias e atmosfera está profundamente radicada. A bossa nova nasceu no Rio do final dos anos cinquenta, ainda capital, onde se respirava a atmosfera do renascimento económico do Brasil de Juscelino Kubitschek, uma metrópole cosmopolita, aberta às influências europeias e norte-americanas.

E precisamente com um determinado existencialismo francês e o jazz americano a bossa nova permutou algumas das suas particularidades, revelando toda a sua natureza autenticamente brasileira, capaz como nenhuma de fundir culturas e sensibilidades diferentes numa realidade totalmente nova e original. Original como a especial técnica de violão inventada por João Gilberto – a batida – que, baseada na alternância dos baixos tocados com o polegar e do dedilhado das outras cordas, se tornou uma espécie de marca de fábrica da bossa nova. Desde aquele momento tornou-se reconhecível também graças à contribuição de grandíssimos artistas americanos, primeiro entre todos Stan Getz, convertido pelo guitarrista Charlie Bird que ficou fascinado após ter ouvido uma música de João Gilberto numa rádio americana. E juntamente com Bird, Getz gravou um disco que se tornou uma pedra angular do jazz-samba.

A bossa nova, radicada no samba, teve rapidamente um sucesso estrepitoso, conquistando grandes músicos de jazz, os quais, por sua vez, contribuíram para a elaboração do estilo. E também os grandes selos discográficos especializados fizeram uma disputa para se garantir as gravações dos músicos de bossa nova. A Verve – histórico selo jazz – contratou Tom Jobim, talvez o maior de todos entre os pais da bossa nova, e a quinze anos do seu falecimento, no Brasil ainda o chamam o maestro. Quem não conhece Garota de Ipanema – cujo texto é devido ao génio de Vinicíus de Moraes – ou Águas de Março?

A Jobim – autor juntamente com Vinícius de Moraes de Chega de Saudade – é preciso reconhecer a particular capacidade de se abrir às sugestões externas para realizar um produto musical de grande modernidade. O sucesso de algumas das suas canções deve-se certamente á incomparável voz de Elis Regina, cantora de extraordinário «feeling», sensibilidade quase agressiva, cuja morte prematura deixou um vazio que ninguém, nem a sua filha Maria Rita, que iniciou a carreira recentemente, foi capaz de preencher.

Jobim é certamente o autor que teve mais influência na música ligeira de qualidade da segunda metade do século passado. Músicos insuspeitáveis, de Wayne Shorter até Herbie Hancock, passando por Ivano Fossati e outros na Itália, executaram as suas canções. Inclusivamente um verdadeiro monumento como Frank Sinatra ficou fascinado, a ponto de gravar um disco com ele em meados dos anos sessenta.

Contudo, é no Brasil que a bossa nova tornou mais fecunda a sua herança. E não poderia ser diferente. As gerações sucessivas recuperaram o seu estilo, a técnica e poder-se-ia dizer também o espírito, dando vida a novos géneros, talvez nascidos em antítese mas que certamente sofreram influência de Jobim e outros. O tropicalismo, por exemplo, movimento musical assinalado por uma maior politização, não fez porventura próprias as técnicas iniciadas por João Gilberto e o modo de cantar particularmente rítmico? E na sua vontade de englobar experiências distantes – definida antropofagia cultural – não lembra a abertura da nossa nova ás atmosferas europeias e americanas?

Não é por isso uma surpresa que o máximo representante do tropicalismo, Caetano Veloso, com o passar dos anos se tenha aproximado sempre com mais frequência da bossa nova, tendo lançado há algumas semanas, em dueto com outra personagem eminente da música brasileira, Roberto Carlos, um disco inteiramente dedicado a Tom Jobim.

A bossa nova foi indiscutivelmente o impulso capaz de «desprovincializar» a música brasileira, um caleidoscópio de mil variações, coo é próprio da natureza e da cultura daquela terra: da sertaneja ao forró, do frevo à carambola, as tradições musicais populares do Brasil são inúmeras, exatamente porque são numerosos os países do mundo – do Japão ao Líbano, da Ucrânia á Itália – dos quais provieram os antepassados dos brasileiros de hoje. Mas só graças à bossa nova, e somente depois dela, a grande riqueza cultural da música brasileira começou a ser apreciada além das fronteiras.

Hoje a indústria discográfica do Brasil, juntamente com a americana e britânica, é a única capaz de exportar os próprios produtos em larga escala. Dão testemunho disto os recentes sucessos dos Tribalistas – animados pela voz incomparável de Marisa Monte – e de Vanessa da Mata. São prova disso também o sucesso inoxidável de Caetano Veloso e do seu «sócio» Gilberto Gil. Músicos brasileiros que gozam de uma fama mundial. Mas nada disto teria sido possível sem a bossa nova. Sem aquela música elegante e leve, surpreendente e meio inconstante. Como uma onda da Baía da Guanabara.

 

 

Giuseppe Fiorentino, Gaetano Vallini

in Osservatore Romano, 14.02.2009

02.03.2009

 

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