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Arquitetura

A beleza das cidades: um valor a partilhar

Nuno Teotónio Pereira, coautor do projeto da igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Lisboa, viu reconhecido a valor arquitetónico daquele espaço, que este mês foi elevado a Monumento Nacional.

O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura recupera o pensamento do arquiteto sobre os cruzamentos urbanísticos, estéticos e sociais das cidades portuguesas, transcrevendo uma conferência proferida em maio de 1993.

«Eu vou falar duma coisa com que lido há muito tempo, ou que tem sido a lida da minha vida, digamos assim, que é exatamente o tentar – embora através de pequenas intervenções – fazer mais belas as cidades. Ora a verdade é que as cidades foram desde a antiguidade o estabelecimento humano mais próprio para fazer emergir a beleza. Foi aí que se concentraram as elites, se concentraram os grandes criadores, se concentrou o poder do Estado, e à volta dele portanto, uma série de pessoas e de situações que tentaram sempre em todas as civilizações fazer aparecer a beleza, a beleza na cidade.

 

Do que é feita a beleza das cidades


Em primeiro lugar vamos ver de que é feita a beleza nas cidades, para depois estudar algumas implicações relacionadas com essa beleza. E quando falo de cidades, falo das grandes cidades e falo das pequenas cidades, porque todas elas, apesar de uma pequena cidade poder ter 5 mil habitantes e uma grande cidade poder ter 20 milhões, todas elas têm um certo número de particularidades comuns. Naquilo que se refere à beleza, àquilo que nós podemos apreender como beleza, vou aqui focar alguns dos aspetos que me parecem mais importantes, e um deles é a identidade própria de cada cidade, o chamado caráter típico da cidade: obedecer às características próprias, específicas dessa cidade.

FotoCastelo Branco (Jardim Episcopal). Foto: Miguel Lombo

Outra característica será, e esta perece-me que é particularmente importante, no caso de Lisboa por exemplo, é a sobreposição ou adição de diferentes épocas. A cidade é assim uma lição de história em que estão perante nós diferentes épocas. E aqui, por exemplo em Lisboa, nós corremos o risco, se as coisas continuarem como estão, de desaparecer uma parte importante da história da cidade, que são as Avenidas Novas.

FotoLisboa

Outra característica das cidades, e que é portanto um elemento da sua natureza, é a variedade tipológica dos edifícios, quer dizer edifícios de características e finalidades muito diferentes, que vão desde a habitação que evidentemente é primordial, aos serviços públicos, aos espaços de trabalho, aos espaços de cultura, e que dá às cidades uma complexidade muito especial. Nós conhecemos aqui os casos da área metropolitana de Lisboa, com Odivelas, Loures, Almada, Barreiro, etc., que são aglomerações muitíssimo grandes, com muitas dezenas de milhar de habitantes, e que no entanto não têm pelo menos todas estas características das cidades, e uma delas de facto, das mais importantes, é esta variedade tipológica, é haver edifícios de muitos tipos, com muitas finalidades.

FotoReboleira. Foto: Barra

A esta diversidade dos edifícios aparece uma outra diversidade, que é a dos espaços públicos. Os espaços públicos abertos, também os de caráter residencial, outros espaços que eu chamaria de espaços simbólicos ou de representação, onde se dão as grandes manifestações coletivas que são próprias das cidades; podem ir desde uma pequena praça em Guimarães até um Terreiro do Paço.

FotoGuimarães

Outro aspeto ainda a considerar vem reforçar a beleza das cidades: é a presença de um elemento natural importante geralmente ligado à água, um rio, que é o caso de Lisboa, Londres, Paris, etc., ou uma baía no caso do Rio de Janeiro, ou um lago. Estes elementos naturais associados à cidade dão-lhe uma particular beleza muitas vezes, e aqui chamava a atenção para um aspeto muito importante, que há por exemplo em Lisboa, que é a possibilidade de pontos de vista da cidade virados para a própria cidade: os casos dos miradouros de Lisboa, quer dizer, da cidade vê-se a própria cidade.

FotoLisboa

 

A importância do espaço público

Portanto, isto são os ingredientes, digamos assim, que eu penso que são importantes para criar beleza numa cidade. Para além dos outros mais específicos que é os edifícios serem belos, por exemplo, as avenidas, as perspetivas também terem beleza, terem um traçado belo, bem feito.

Agora qual é o grande agente de uma partilha da beleza das cidades? Esse grande agente é o espaço público, digamos que é o espaço de todos; é aquele espaço onde se faz essa partilha, onde cada um, cada cidadão pode apreciar a beleza da sua cidade. O espaço público é o símbolo da cidadania, o símbolo da democracia, são as ruas, as avenidas, as praças, os jardins, os parques, as zonas centrais, que são extremamente importantes nas cidades, as zonas centrais dominadas pelo comércio, por edifícios públicos. Isto são os espaços abertos. Há também os espaços encerrados ou abrigados, que nós chamamos geralmente equipamentos urbanos, mas que são espaços públicos: as salas de espetáculo, as igrejas, os estádios, os centros comerciais, as repartições públicas, as escolas, as gares ferroviárias ou do metropolitano, aeroportos, etc..

FotoSerralves, Porto

E aqui é que se coloca o desafio de como é que se gere a beleza da cidade, como é que ela pode ser garantida. É através exatamente da preservação e do tratamento da beleza dos próprios espaços públicos. É aqui que se faz o teste à verdadeira democracia espacial, é da maneira como são tratados estes espaços públicos, que é uma responsabilidade, evidentemente, do Estado ou das Câmaras, e também uma responsabilidade de todos os cidadãos conscientes.

FotoÉvora. Foto: portugalvirtual.pt

 

Os grandes inimigos do espaço público

É um problema que nos interessa também ver, para podermos dirigir a nossa ação, para podermos orientar, concretizar a nossa vigilância. Vou apontar alguns deles, não vou ser exaustivo, os mais importantes por exemplo na Lisboa de hoje: Um desses inimigos é o sistema chamado de renovação urbana, da demolição e reconstrução de prédios; demolição de prédios antigos para reconstrução de prédios novos. Esse ciclo infernal que se abateu sobre Lisboa, e que tem destruído zonas muito importantes, nomeadamente aquelas zonas históricas sem as quais não há uma leitura adequada da cidade.

FotoFernando Jorge

Outro inimigo é evidentemente o automóvel, pelo menos na cidade que não foi feita para ele, porque há cidades que foram feitas para automóveis, como Brasília por exemplo, e aí já não se pode dizer que o inimigo seja o automóvel; mas nas cidades que não foram feitas para ele, é um grande inimigo no aspeto do trânsito, e sobretudo no aspeto do estacionamento; é um grande inimigo que nós temos que ter hoje em dia aqui na nossa cidade.

FotoAntónio Pedro Ferreira

Outro inimigo será a poluição visual; poluição visual que está a incrementar-se extremamente em Lisboa através da publicidade exterior; os cartazes que aparecem cada vez mais por todo o lado, cartazes eletrónicos, de todas as dimensões, de todas as cores, de todos os tamanhos, que estão nos espaços livres das zonas, verdes, nos viadutos - os viadutos que são obras de arte feitas por engenheiros; esses viadutos são cobertos, são tapados por cartazes de publicidade, e isto para não falar já dos elétricos, que eram muito bonitos quando eram amarelos e agora são transformados em cartazes, em geral até bastante feios. Eu penso que é o inimigo atual mais importante a abater; esta publicidade exterior.

Foto

Depois há os novos elementos do espaço público, aqueles a que nós não estamos habituados, ou não estávamos habituados, que vão aparecendo, mas que não podemos recusar, pois são tipologias novas diferentes, e que tendem a fazer parte também da paisagem urbana; são por exemplo os viadutos e os túneis rodoviários, as autoestradas urbanas, e os centros comerciais. Centros comerciais que se estão a tornar num fator da polarização extremamente importante do espaço urbano público, como são também as discotecas.

Foto

 

As grandes tarefas atuais

Ia agora falar do que parece ser a grande tarefa atual em relação a estes problemas da beleza na cidade. Há tarefas todos os dias, há coisas relacionadas com isto que acabei de dizer; o combate à poluição visual, o tentar que o automóvel não destrua a cidade; há uma série de coisas a fazer nesse domínio. Mas a grande tarefa para esta época, para esta fase, parece-me que é fazer cidade das periferias.

FotoAlmada. Foto: Al-Madan

As periferias metropolitanas, as cidades que estão à volta de Lisboa por exemplo, ou à volta do Porto, que são maiores que muitas capitais de distrito, têm mais habitantes, e no entanto não têm aquelas características básicas que eu referi ao princípio. Não têm aquela poliformia dos tecidos urbanos, não têm os espaços de representação, não têm espaço de contemplação e de lazer, não são uma adição de várias épocas históricas, porque elas são recentes; e penso que é esta a grande tarefa que há nos nossos dias a fazer para conseguir defender, ou pôr beleza nas cidades; parece-me que é um tratamento nas periferias, de maneira a que elas possam ter essas características que são essenciais, e uma delas é a criação de novos centros.

FotoAlgés

Porque o centro da cidade é qualquer coisa de fundamental para a vivência da própria cidade, a zona central onde convergem as pessoas em momentos mais importantes, onde há o encontro, onde estão os grandes estabelecimentos comerciais, os grandes edifícios públicos. Ora bem, essas zonas da periferia, não têm essas zonas centrais, por isso, é preciso criar novas centralidades nessas zonas para que elas possam ter uma identidade própria. E aí por exemplo, vejo como importante a construção de edifícios públicos representativos. Há concelhos, que estão a fazer os novos 'Paços do Concelho' - o símbolo do poder local democrático depois do 25 de Abril - é o caso de Matosinhos por exemplo, que construiu uns belíssimos Paços do Concelho numa zona da cidade e que são um símbolo do que eu chamo exatamente esses espaços da representação.

FotoCâmara Municipal de Matosinhos

E temos aqui tentativas, obras interessantes, aqui à volta de Lisboa - nesse aspeto eu conheço algumas - por exemplo o que se tem feito em Almada: por um lado preservar a reabilitação do núcleo histórico que é relativamente pequeno em relação à dimensão da cidade, mas o trabalho de reabilitação de núcleo histórico, não deixar destruí-lo, não deixar apagá-lo na presença da cidade e depois, por outro lado a construção de zonas verdes por exemplo; há um cemitério muito bonito que foi feito em Almada, há um parque que está em projeto, já em princípio em construção, a criação de novas centralidades, de novos centros, as atividades culturais; tudo isso são elementos importantes para se conseguir transformar essas periferias deserdadas em verdadeiras cidades.

FotoParque da Paz, Almada

Há ainda mais outro aspeto que me parece importante e que é também ligado à atualidade entre nós, e esse diz respeito aos núcleos históricos das cidades, que é a sua reabilitação, porque parece que muitas vezes, é um insulto às populações quando nós vemos grupos de turistas estrangeiros a visitar bairros antigos de Lisboa, e sabemos que as pessoas vivem em condições miseráveis dentro desses bairros. Os habitantes não têm casa de banho, há infiltrações de humidade, há ameaças de derrocadas, falta de conforto. É uma tarefa que foi agora iniciada pela Câmara de Lisboa, que é a reabilitação desses bairros antigos, com gabinetes locais próprios; parece-me também que é uma tarefa fundamental nos nossos dias, ao nível já das cidades existentes. Portanto, reabilitar o centro, sobretudo as zonas antigas e fazer das periferias novas cidades. Isso parece-me que são os grandes trabalhos que temos que desempenhar nesta fase da vida das cidades em Portugal.»

 

Nuno Teotónio Pereira
Arquiteto
In Reflexão Cristã
05.12.10



Foto
Porto

 

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