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Razão profunda da fé

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Razão profunda da fé

Sua Santidade, o Papa Francisco, acaba de oferecer ao mundo cristão e ao mundo não-cristão uma Carta Encíclica, que começa com os termos «Laudato si’, mi’ Signore». Ao longo de muitas e densamente informadas páginas quer do ponto de vista teológico quer filosófico e científico, Sua Santidade explica os motivos, verdadeiramente ecológicos, literalmente, para que Deus seja louvado. Este seu escrito, profeticamente diferente em muitos aspetos, que merecerão muitos estudos especializados, centra-se na intuição, aliás fundamental na épica teológica da criação bíblica, do absoluto da diferença entre haver ser e não haver ser.

É por causa desta intuição que o fito salvífico deste escrito se consubstancia – o que é evidente depois de se ler o texto – numa preocupação e num cuidado verdadeiramente ecológicos, pois o «oikos» em causa é o único «topos», o único lugar possível para o ser humano e para tudo o que, com ele, coexiste, sendo que nada é supérfluo ou dispensável, sobretudo ao nível antropológico: «cada um é necessário», diz Francisco, citando Bento XVI (Homilia no início solene do Ministério Petrino (24 de abril de 2005).

Nem de outro modo se pode compreender, de forma digna quer da grandeza divina quer da grandeza humana, da primeira derivada, o maravilhamento de Deus, no fim de cada dia da Criação, perante a bondade pura e cristalina beleza do criado, mesmo do criado no campo antropológico, na plenitude das suas características, por mais difícil que tal seja de entender, de acreditar ou de aceitar.

O encontro da revelação bíblica com a metafísica do absoluto do bem, de lavra platónica, permitiu entender melhor o que tal maravilhamento significa e implica. Nada que tenha em si algo do absoluto de ser é mau, isto é, tudo o que é, enquanto é, no que é, porque é, e apenas porque é, é um bem, mesmo que esse bem que é seja, no caso humano, utilizado não para aumentar, mas para diminuir precisamente o universo de bem existente em cada considerado instante. É, na linguagem religiosa, o pecado que surge.

Esta Carta é uma carta sobre o pecado, mas não se enamora dele: expõe-no precisamente como isso que, na ecologia geral de um universo criado para o bem e para que o bem nele possa florescer, mas não de forma automática, mecânica ou necessária, introduz o mal. E o mal é e foi sempre um mal ecológico.

Ecológico não na aceção comum, menor, de ecologia como ciência do ambiente, mas na aceção de «logia tes oikias», do «sentido da habitação», da «lógica da casa», se se preferir. Desta mesma lógica faz parte o seu sentido universal, que o Papa sublinha inúmeras vezes ao longo da Carta, o seu sentido omni-integrador, já aludido aquando da referência à absoluta necessidade da presença de todos, o seu sentido de bem-comum, também abundantemente referido.

Todos estes pontos merecem uma longa reflexão, mas queremos focar-nos no ponto fundamental introduzido pela seguinte afirmação (final do parágrafo 65. da Carta): «Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido!».

Após ter citado São João Paulo II sobre a «dignidade infinita», ontológica, de cada ser humano, conferida pelo ato do Criador, Francisco assenta aquele que é o eixo fundamental desta reflexão: a razão última da fé, o porquê, por quê e para quê da vida humana, da existência do «animal portador de sentido» (vénia nossa a Aristóteles).

Na Carta, chama-se a atenção para o ambiente não apenas intelectual, mas também existencial de que a chamada modernidade vive, e que, mais do que substituir nos altares Deus por ícones meramente humanos, mais do que ter “des-sacralizado” a natureza (processo que teria começado com o próprio cristianismo), eliminou o absoluto metafísico logicamente necessário para que qualquer ontologia possa, mais do quer explicada, existir. É este absoluto que a narração do Génesis nos dá. É em torno deste absoluto que, único verdadeiro «eixo do mundo», uma qualquer realidade se pode constituir e ter sentido. Sem este eixo metafísico, sem este absoluto, nada pode ter sentido, absolutamente.

Costuma dizer-se que o problema reside em que “agora é tudo relativo”. Ora, não é no relativismo sem mais que reside o problema, dado que nada é mais relativista do que a metafísica e a ontologia sua derivada que encontramos no Génesis, pois, aí, tudo é relativo à Criação e ao Criador, reside, antes, na ausência, precisamente, de um Criador, de algo de anipotético, de absoluto e, como tal, necessariamente, de atualmente infinito, único oponível eficazmente ao nada.

O ambiente intelectual e moral em que se vive não é relativista, mas absolutista da impossibilidade de sentido, o que é radicalmente diferente.

Dostoievski tinha razão, em seu Crime e castigo, ao levar a sério a questão fundamental que nem o próprio Nietzsche teve a coragem de levar: e se se matasse Deus? E se não houver mesmo um princípio absoluto?

A resposta é evidente: não havendo tal princípio, não há uma bitola absoluta, não há um «metron» absoluto, pelo que qualquer «metro» serve e quem for o mais potente e eficaz no exercício de tal potência, besta ou homem, pode impor tal metro. Este é o drama da modernidade, a ausência de um metro absoluto transcendente ao movimento mundano e com ele inconfundível.

Mas a questão não é moderna, pois já a encontramos, por exemplo, em Gilgamesh, na civilização médio-oriental, recebendo, no Ocidente, tratamento muito claro em Heraclito, em Sócrates, em Platão e seu discipulado direto.

No mundo não humano, o que é que impera, o velho Caos, incompatível com a existência humana, uma aleatoriedade casualista de tipo da dos antigos atomistas, em que a ordem aparente das coisas mais não era do que a dos efémeros choques de partículas? Não é possível haver uma finalidade intrínseca ou extrínseca ao mundo? Ou ambas concomitantemente?

No mundo humano, impera o análogo Caos do interesse único do mais forte? As relações humanas são, também elas, ao modo dos átomos de Demócrito? Não há possível finalidade para a vida humana, absurdo consciente, abismado sobre uma angústia a que o torpor ilógico das bestas seria preferível?

Tem razão o Fernando Pessoa/Álvaro de Campos que diz, mantendo um vislumbre de esperança: «Muito mais morto aqui que calculas / Mesmo que estejas muito mais vivo além…» ou o mesmo Poeta, quando diz, no verso que dá nome ao Poema: «Se te queres matar, porque não te queres matar?», demonstrando, em seguida, a futilidade da existência humana, incontrovertivelmente fútil, não fora aquele «mais vivo além…», que a terrível lucidez do Poeta impõe, e impõe porque é possível?

Tocamos, aqui, o ponto fundamental, isso que, à luz da fé, que pode até ser “laica”, como a deste lampejo de lucidez lógica de Pessoa, nos dá a «certeza» de que fala Francisco.

«Certeza maravilhosa» porque é a única que pode impedir que, de facto, nos “matemos”. Sem esta certeza da fé, que, para o cristão, se alicerça no dom que foi a vida, morte e ressurreição de Cristo, tudo se resumiria ao que Sua Santidade desassombradamente põe como o destino de uma humanidade e de um mundo, um cosmos, puramente imanente, sem princípio absoluto transcendente, absurdo logo à partida pois sem possível explicação.

Toda a redução imanentista do cosmos a si próprio implica imediatamente torná-lo num absurdo, que, na melhor das hipóteses, a panteísta, é um absurdo deus de si próprio, falsamente infinito para dentro, se é permitida a inexata, mas sugestiva expressão.

Num tal mundo, nada tem ou pode ter autonomia axiomática própria, pois tudo se equivale e tudo equivale a um nada de sentido próprio, pois quer a repetição infinita quer a finitude absoluta impedem que possa haver sentido: em geometria, mesmo o mais ínfimo vetor, sendo parte de uma reta “suporte”, é infinito e é nessa infinitude que é possível pôr um sentido. O ponto não tem sentido e, sem um ato transcendente, não tem relação senão consigo próprio.

Esta má metáfora aplica-se ao caos que é a situação antropológica resultante das escolhas axiomáticas metafísicas da modernidade e suas consequências axiológicas.

A modernidade reduziu a ecologia antropológica a um pontilhado sem real relação possível. Sua Santidade vem lembrar que apenas o amor do Criador como axiomática constitutiva do tecido metafísico suporte do mundo permite que eu não me perca num caos de irrelação real, antes seja parte de uma casa comum, construída não sobre a areia-movediça do caos, mas sobre o sólido alicerce do «Logos», esse que, no nosso princípio, viu que tudo era bom, mesmo eu.

A ecologia começa, in illo tempore, no ato genesíaco da criação, continua como possibilidade de bem-comum, mas não tem outra garantia que não seja o meu ora et labora, aqui e agora, como ato de cocriação do bem, e, assim, ato de ação de graças pelo poder de laborar e de orar.

Sem tal, não haverá casa em que morar.

Palavras proféticas de Francisco.

Agora, não há mais desculpa.

 

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado em 08.09.2015 | Atualizado em 17.04.2023

 

 

 
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«Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido!»
Na Carta, chama-se a atenção para o ambiente não apenas intelectual, mas também existencial de que a chamada modernidade vive, e que, mais do que substituir nos altares Deus por ícones meramente humanos, mais do que ter “des-sacralizado” a natureza (processo que teria começado com o próprio cristianismo), eliminou o absoluto metafísico
Toda a redução imanentista do cosmos a si próprio implica imediatamente torná-lo num absurdo, que, na melhor das hipóteses, a panteísta, é um absurdo deus de si próprio, falsamente infinito para dentro, se é permitida a inexata, mas sugestiva expressão
A ecologia começa, "in illo tempore", no ato genesíaco da criação, continua como possibilidade de bem-comum, mas não tem outra garantia que não seja o meu "ora et labora", aqui e agora, como ato de cocriação do bem, e, assim, ato de ação de graças pelo poder de laborar e de orar
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